sábado, 30 de dezembro de 2017

A bicha pede-me, imagine-se, que eu continue a sua história. O argumento mais forte que utiliza é o facto de não haver leitor que não a reconheça,  com o seu chapelinho, muito elegante e colorido, sentada em cima da mesa.
Para além de que, diz ela, se afirmas que eu entro e saio, a toda a hora, pela tua janela, se  sou tu cá, tu lá, contigo, se privamos, e se tens o direito, até, de relatar a forma como eu enrolo a cauda à volta das patas, ou de como encostei o corpo no vidro para tu me veres pelo lado de dentro, é óbvio que, por muito misteriosos que os gatos sejam, e eu não sou exceção, tem que haver uma explicação para essas visitas. Para além de que, deixaste por desvendar o misterioso número inscrito na parte interior do chapéu.

Amanhã, tenho um chapéu de que cor?
Azul petróleo. Queres com flor, ou sem flor?


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

A casa

Nem parecia ter tido um começo, caminho infinito , porque não lhe conhecemos o fim , só caminhamos por ele porque assim tem de ser.
Talvez por isso a mulher ficava tão triste com tristezas que magoam, ou alegre com coisas sem importância, como um telefonema de um filho, lá longe na sua vida, numa casa de coisas novas, no princípio da estrada.
A sua, a sua casa era pequena, mas tinha um portão verde e o jardim, onde cresciam plantas de flores às cores, que ela tratava com amor.
Se chovia, que chovesse durante a noite, era melhor, depois de dia, a terra mole permitia arrancar as ervas daninhas, que cresciam incontroláveis, e era necessário fazê-lo  periodicamente, porque se o não fizesse, transformar-se-ia o que era belo num matagal.
É claro que os anos iam passando, dezenas deles que se contam para trás, ou se vislumbram quando se olha de esguelha, nunca diretamente, para não se perder a alegria de continuar, mas ela fazia aquele trabalho sem tão pouco usar umas luvas para proteger os dedos e as unhas, só porque lhe sabia bem mexer na terra, só que depois as unhas negras, o traço escuro à volta da pele, pareciam aos outros uma porcaria  qualquer.
De qualquer forma, aquela força impulsionadora, nada mais do que reações fisico-químicas, metabolismos  relacionados com a uma energia decrescente e absolutamente natural, que se ia desgastando, e é claro que, como já disse, tudo tem um começo, e não lhe conhecemos o fim, mas percebê-mo-lo, quando, de visita, abrimos o portão que range, e por entre as pedras nascem malvas e outros chás naturais.
Lá dentro poderá não estar ninguém,  mas está, porque vejo a sua silhueta recortada na janela. Agora o que eu não sei, é se será efetivamente uma pessoa, ou apenas a sombra curva daquilo que ela já foi.
Haverá um dia em que alguém pegará na casa, que nessa altura estará em ruínas, com buracos no telhado, a câmara municipal já enviou umas notificações, pode cair, põe em risco todos ao mesmo tempo, os que passam na rua despreocupadamente e  os vizinhos que têm infiltrações, e nessa altura far-se-ão obras de reabilitação, e ficará tudo muito bonito, o jardim voltará a ser uma alegria, quem sabe se não terá, na altura, duas ou três buganvílias em flor.
Para mais tarde o tempo, inevitável, colocar os anos sobre as costas de outra mulher.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Pombas

De manhã,
bem cedo,
uma garrafa rolou
pela ruela
inclinada.
Foi um ruído
tão intenso
no silêncio
da madrugada,
que lhes pareceu
partir-se
o enorme coração
de vidro
da cidade calada.
E então,
levantaram vôo,
em bando,
abandonando
os telhados
onde esperavam
o primeiro sol
que haveria
de secar
a telha molhada.


quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Azevia (EI)

Os pássaros aproximam-se
cada vez mais.
Se alguém se encosta ao
tronco de uma árvore,
numa pausa distraída,
eles confundem as coisas
inanimadas.
pensando que se trata
da mesma matéria
orgânica,
por causa do silêncio
ou da imobilidade.

Ainda hoje vi um
quando
atravessei o jardim.
Traçou uma perpendicular
àquele segmento do meu
caminho.
Não voava. Corria
com as asas fechadas
utilizando as patas,
numa corrida rápida.
Era um melro
e chamava-se  #azevia,
e eu achei graça
ao bichinho.





terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Yasuhito (EI)

#Yasuhito, esse malandro que nem sequer me ensina a pronunciar o seu nome, apesar de eu já lhe ter pedido vezes sem conta, resolveu instalar-se entre o Alto Alentejo e Lisboa.

Agora queixa-se que não aprecia torresmos e de migas.

Não gostasse eu de palavras, ainda ontem apanhei um saco cheio delas, que o vizinho deitou fora, e que já encaminhei para a oficina com o fim de serem reutilizadas, e assim enriquecerem os meus dias,  pelo menos as mais vulgares, não gostasse eu de palavras, também as apanho quando são só uma ou duas, não desperdico nada, a oficina é a poente, essa certeza eu tenho, desde a primeira frase do texto, e tem um cofre, onde guardo as mais raras que só utilizo em ocasiões especiais, não gostasse eu de palavras, não lhe diria para ir ver as amendoeiras em flor, lá do Algarve, que ele tanto gosta.




sábado, 16 de dezembro de 2017

Viena (EI)

A Viviane vai
de visita
aos avós.
Na viagem,
o vento
que envolve o avião
varia,
e ela, lá dentro,
não o sente
nem o vê
porque é o avião
que voa
e não ela.
Verifica,
vezes sem conta,
quando viaja,
por esse vasto
horizonte,
e ao observar os
vários
indivíduos que
varrem
exorbitantes volumes
de violetas
velhas
e de "vês"
verdadeiros
das varandas,
que vivem livros
falantes
tanto em #Viena
como em Veneza
como em Varsóvia.
Ainda te perdes, Viviane,
volta!







sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Urze (EI)

Se estiveres perdido na mata há muitas horas, longe da civilização,  que tipo de planta, ou plantas, deves tentar encontrar primeiro?
1- Estevas
2- Giestas
3- #Urze
4- Fetos
5- Coelhos

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Loja (EI)

Primeiro apontamento,
para um planeamento a curto
prazo:
primavera é profusão de flores.
Seguinte:
estava frio na #loja, as batatas
ao canto, num  estrado,
as ferramentas do outro lado,
o chão era de cimento,
húmido,
e havia umas pipas
de madeira.
Terceiro, já na oitava página:
quando vejo um buraco,
invisível, de céu,
situado entre as folhas instáveis
do outono
(há-de desaparecer, por completo),
salto sempre lá para o meio.
Em quarto, umas impossíveis
ímpares, cinco, em monte de
papel prensado,
sem nada lá dentro.
Em quinto afirmava,
escrevendo,
que a ordem estaria,
muito provavelmente,
trocada.
Em sexto, outra vez nada,
e por último, e em sétimo,
uma impensável recomendação:
passear pelo pontão
evitando as falhas entre as rochas.
De repente,
nem se esperava,
portanto ainda por classificar
como imagem,
uma  casinha térrea,
de paredes de cal,
com um banco à porta.
Entretanto,e como é óbvio,
preencheu-se por completo
o cadernito, muito bonito,
e era o mar azul e a  capa azul,
e as contas.







sábado, 2 de dezembro de 2017

Hiena (EI)

Era já noite cerrada, e não havia ninguém nas ruas, àquela hora em que  saíu do bar.
Já tinha bebido bastante e resolveu ir para casa, que era mesmo ali, no Largo do Camões, quando lhe pareceu ver a silhueta de alguém que se dirigia a ele.
Ao aproximarem-se um do outro, confrontou-se com um indivíduo muito bem vestido, de fato e gravata, mas, por outro lado, a sua fisionomia fazia lembrar um animal selvagem.
Pareceu-lhe tratar-se de uma #hiena, mas, não tendo a certeza, resolveu contar uma anedota para confirmar.
Toda a gente sabe que as hienas têm uma maneira de rir muito particular. Quantas vezes não usamos esse subterfúgio para distinguir uma hiena do Pai Natal. A primeira ri-se hihihi, e o segundo, houhouhou, o que é completamente diferente.
A verdade, é que, depois de acabar de contar a anedota, a criatura não se riu, pelo contrário, ficou muito séria, com cara de aborrecida.
"Bom...," pensou, "pode ser uma hiena sem sentido de humor, ou seja, o que acabei de fazer não me dá segurança nenhuma", e resolveu usar da sinceridade porque estes animais são tidos como os mais sinceros das estepes, perguntando-lhe:
Se eu, por mero acaso, já estivesse morto, tu eras capaz de me arrancar uns pedaços para fazeres uma bela duma refeição"?
"Ó pá...! Anda lá, Aníbal! Eu vi logo que estavas a emborcar demais!"

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Cão (adap. EI)


Passeavam dois irmãos por terras cor de terra e raízes,
no #Zimbabwe, talvez, pode bem ser...,
quando, de repente, distraídos com a apreciação da beleza do local,
caíram num buraco.

O buraco também não era assim tão profundo. e,
sem nenhum osso partido, e com os olhos ao nível do chão
podiam, facilmente, sair dali.
A questão é que,
fosse ou não por  se tratar de uma história absurda,
uma espécie de sonho de uma noite mal dormida,
não estavam a conseguir.

Então começaram a pedir ajuda a quem por lá passava,
pouquíssima gente, junto ao palácio que se via tão bem,
quando ainda estavam à superfície,
mas agora completamente tapado pela  folhagem.

A chuva descendente, fazia brilhar a velha estrada,
estreita e escura, e, depois da última curva,
havia um pequeno parque de terra batida,
onde se estacionava, eventualmente, e,
entre os carros e as rosas cor de rosa
havia o tal buraco.

Cansados de pedir auxílio aos enfatuados
que por ali passavam,
mas que pareciam nem ouvir os gritos,
tentaram a sorte com o homem velho e nú,
no seu tempo imóvel,
sentado silencioso num bloco,
uma cadeira, arredondada pelo vento
a bater insistentemente no granito.

Nem sou eu que tenho a força, mas tenho ouvido.
E ouço respostas ao vosso apelo. Vejam!
Ao fundo, alinhados entre si, corriam, determinados,
precisamente naquela direção
três enormes cães, de pelo branco e amigo.


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Rapunzel (adap. EI._ Xinjang)

Circula Rapunzel
com a sua trança
serpente adormecida
mangueira sem préstimo,
desaguada,
enrolada no braço
para que não lha pisem
Rapunzel,
ela e a trança, imaginadas,
enroladas no braço
tão apressados vão e vêm,
Rapunzel.
Terias que subir à torre
perder o medo das alturas
amar
os  príncipes #Xinjang,
os malvados,
Rapunzel, e a tua trança que canta
para ti,
e que não  te engana
enrolada no braço,
imprestável,
com a corda enrolada no
braço,
para que não ta pisem.
e não te reconheçam as bruxas.
Rapunzel, a trança...,
Cuidado!



terça-feira, 21 de novembro de 2017

Weinstein (EI)

#Weinstein apanhou um resfriado e não se sentia nada bem.
A mulher, que vivia em Lisboa há muitos anos, mas que era oriunda de Mértola, preparou-lhe um chá de poejo, o que o fez melhorar substancialmente, quanto mais não fosse pela influência do aroma e sabor magníficos daquela erva do campo.
Até se sentiu aliviado daquela tosse irritante.
Então, para não perderem as delícias de uma tarde fria, mas soalheira e amena, por causa de uma simples constipação, que até parecia estar a querer ir-se embora, vestiram os dois uns casacos quentinhos, ele ainda se protegeu melhor com umas luvas e um gorro, e foram caminhar pela calçada junto ao Tejo.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Voltaire


#Voltaire,
quantas voltas tu dás,
a imaginar para trás,
no lugar te lembrares
de tudo muito direitinho.
Agarravas numa fotografia
e verias que o desenho
no papel vegetal
da tua cara atual
é sobreponível,
e é isso que se pretende.
Até a tua  mãe antiga
de séculos passados
que já nem é para cá chamada,
se põe a gritar:
tens a casa cheia de gestos
supérfulos,
sobras de tudo,
sempre a enfrentar  cataclismos
de brincar,
a despensa a abarrotar
sabe~se lá de quê!
Pões-te a inventar. desfasado,
vais perder o direito
que te reservei,
o espaço de uma estrela
no espaço
e tudo por causa da indisciplina.


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Saramago

Todos os dias passava na Estrela, passava no Largo do Rato, no Rossio, com o filho muito direito ao seu lado, de mochila e boné.
Levava os braços atulhados de compromissos, de um lado a mão do miúdo, pequena e quentinha, do outro, a sua mala, a lancheira dele, e o livro do momento, preso entre a ilharga e o ante-braço.
O livro, com os movimentos do corpo e o trepidar do autocarro, ia inclinando, cada vez mais instável.
Num instante se chega ao destino, e assim foi, desceram os degraus com todo o cuidado, mas o livro lembrou-se de resvalar definitivamente, caindo logo na primeira poça de lama, mesmo ali à sua frente, entre o pé de um candeeiro e uma roda de carro.
"Ah, vida! Agora esparramou-se-me o Saramago no passeio!"
O miúdo, solícito, agachou-se para o apanhar, e agarrou-o por meia dúzia de folhas, salvo erro, da página cinquenta e dois à noventa e quatro, e entregou-lho assim, sujo e desconjuntado.
Vamo-nos sentar naquele banco, e limpá.lo. Empresta-me um guardanapo dos teus.
Quando chegaram à porta de casa, tinha  as mãos tão frias que rodou a chave com dificuldade.
Lá dentro , o gato cumprimentou-os, de cauda no ar, contorcendo o corpo, tentando passar o seu pelo cinzento, suavemente, pelo aroma da chuva que traziam agarrado aos sapatos.










quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Quaker (Adap. EI)

Sentei-me no arredondado da pedra que envolvia o fundo do tronco da tília.
Pareceu-me ouvir um bichanar, um zumbido, que tanto podia ser a luz dos candeeiros a incidir sobre as coisas, como um #Quaker, que, como sabemos, é um pássaro solitário, dos que gostam de conversar a meio da noite.
De facto, e depois de me pôr em pé, para tentar ouvir melhor, percebi quem era, e o que me dizia.
Mas que grande sermão que tinha para mim:
"Ou colocas nas letras algo que as transcenda, ou mando varrer isto logo pela manhã, e vai tudo juntamente com as outras folhas!"
"Francamente! Então não posso gastar o tempo como eu quero, a  brincar, como fazem as crianças, com os papeís, e a tinta solvente das aguarelas?
Não  sujo nada, não altero as cores, nem derramo água!"
Não disse mais nada. Levantou vôo e desapareceu, como faz sempre, e fiquei outra vez sózinha, com o meu  misterioso e confortável casaco pelas costas.





terça-feira, 14 de novembro de 2017

Panteão

Enterrou os bolbos na terra
distantes uns dos outros
mais ou menos dez centímetros.
Quando chegasse a época
haveriam de florir, e,
alguns anos depois
de cumprirem a sua missão
de alegrar a varanda,
todas as primaveras,
haveriam de morrer.
Nessa altura, pegava neles
e atirava-os para o lixo.
como fazia sempre,
quando deixavam de existir.
Não havia Panteão
nem uma simples lápide
ou mesmo uma vala
só para eles.
Eram frésias insignificantes,
ou lírios sem importância,
renovados no super mercado
a quatro euros e noventa e nove
cada embalagem de meio quilo.

sábado, 11 de novembro de 2017

Magusto


Compare-se o mês de novembro
a determinado padrão de roupa colorida,
ou ao trautear de uma melodia,
ou ao magusto, de água pé e castanhas.

Por um motivo qualquer,
e numa atitude involuntária,
aquela específica conjugação de cores,
ou de sons, ou de cheiros, faziam-me lembrar...

Era a tábua de engomar
a chiar aos movimentos ordenados do ferro,
e um ou outro sopro mais ruidoso do seu vapor,

Voltando a novembro,
dava por ele a entrar, fresco, pela janela,
e via-o misturar-se  na roupa das camas,
na manta que me cobria as pernas,
na superfície dos móveis.

Ajudava-me a recordá-la, circulando pela casa
na sua silenciosa produção de calor.








quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Internacional

Depois de confirmar,
muito bem,
o significado da palavra
percebi, inequivocamente,
que é internacional
a manifestação das flores.
Todos os anos,
num fenómeno
que é comum a vários países,
as flores, duma
vulgaridade horrível,
insistem em "eclodir"
sempre com as mesmas cores.

Para além do efeito
intenso e policromático
de mais umas manchas,
sazonais e intermitentes,
que somos induzidos a ver,
ainda transportam consigo
uma noção de tempo
infinito
associado às páginas
do segundo volume
da obra prima
ou da coisa nenhuma
que estamos a ler.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Harpa (EI)

Pois se. no momento,
nada ouço
a não ser o canto dos
pássaros
e um ou outro zumbido.
mas que provém
do meu ouvido (esquerdo),
e, para mais, o sol,
fortíssimo, mas silencioso
me faz lembrar, apenas,
o ritmo alucinante daquela
específica bateria
(que maravilha, graças a Deus!),
e o pensamento me tende (irrequieto)
para a nêspera
do Mário Henrique Leiria,
como posso,
e logo hoje,
apreciar as cordas (vocais)
da #harpa da hárpia,
amestrada,
que me ofereceu
a minha tia?

domingo, 5 de novembro de 2017

Goscinny (EI)

Depois de estudos intensivos sobre o fenómeno, verificou-se que o planeta, sobretudo nos países mais desenvolvidos, estava a atingir níveis preocupantes de criatividade.
Em todas os grupos relacionados, excluindo as áreas tecnológicas cuja inovação é sempre benvinda, havia uma tal profusão de obra, que, nem o mercado suportava, nem os indivíduos conseguiam assimilar tanta imaginação, correndo graves riscos de sáude. Era, portanto, e também, um problema de saúde pública.
Para além destes tremendos inconvenientes, essa sobrelotação de coisas novas impedia, também, que as pessoas se debruçassem sobre o que já estava feito, valorizassem o que já tinha sido inventado, desconhecessem o que tão sublimemente já tinha sido criado, o que é, obviamente, uma má gestão dos recursos.
 A situação foi considerada tão grave que foi decretada a proibição de qualquer manifestação artística,
Acontece que muita gente, uns talvez por doença, outros talvez por rebeldia, não deixaram de produzir, sabendo de antemão, da ilegalidade dos seus atos. e aquilo que parecia ser de fácil resolução, era, afinal, um esquema tão complexo que parecia não ter fim. Havia sempre quem, clandestinamente, criasse, e maugrado, sempre quem quisesse usufruir daquela invenção diferente, por ser fresca e por estar viva.
 Foi então que vários países aderiram áquela que foi designada como operação #Goscinny, e que mandava prender todos os presumíveis artistas e confiscar todo o seu material.
Só algumas décadas depois se entendeu, com satisfação, a relevância deste controlo. O mar estava outra vez repleto de sardinha.



quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Defunto (EI)

Dois passos no
passeio.
Devagar.
Primeiro,
concentrar-se para não
caír.
Depois, já em marcha,
e com a ajuda da
bengala,
recordar, vagamente os
#defuntos.
Restava-lhe, ainda o
tempo
suficiente
(ainda nem sequer
chegara
à curva)
para que calculasse
com a maior
precisão
possível,
a distância elástica e
razoável,
que o separava dos
filhos
adultos.



quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Caridade


E era então
que se contorcia
para que todo
o seu  corpo
de mil léguas
entrasse,
rapidamente,
na terra.



Uma conversa parva

Ela, que todos sabiam ser de poucas palavras, veio-me um dia com a conversa parva de que havia pessoas que, com os olhos  viam as cores dos outros.
Eu, que sou precisamente o oposto, muitas palavras preciso eu dizer, caramba, expliquei-lhe exaustivamente o meu ponto de vista, que olhos e cores eram o mesmo, sem os primeiros  não havia os segundos, e vice-versa, tudo fazia parte de um conjunto fechado, de números finitos, e frisei muito bem esta última parte, que era matematicamente importante,e, para além disso, era a primeira vez que tinha uma camélia, ainda por cima estava cheia de botões, e, se os gatos, nas suas travessuras, não os estragassem, iria ter , então, uma camélia em flor nesse ano.
Ela fez o gesto de se ir embora, mas eu, melosa, prossegui.
"Espera..., por #caridade ouve-me! Referes-te às cores dos olhos de cada um ou à cor da pele, ou á cor das suas camisas, ou à cor dos seus braços sujos? Pois, se calhar nem te ouvi bem, porque estava a olhar para alguns pontos cintilantes fora da minha zona de conforto, o que é que queres, distraío-me com tudo. mas também, repara, tanto podem andar por aí, a brilhar,  memórias recentes, veados, por exemplo, frescos e verdes, como outras mais antigas, repescadas lá mais para o fundo, se calhar até mais quentes, e como sabes,cabe-me a mim unir esses pontos de luz.
E assim, em catadupa, fui perguntando e respondendo, enquanto a olhava, e ela, que nem se mexia, durante todo o tempo em que falei, apenas uma vez levantou, ligeiramente, uma sobrancelha, e outra semicerrou os olhos, condição necessária para que as suas longas pestanas se movimentassem, embora impercetivelmente.






terça-feira, 31 de outubro de 2017

Bruxa (EI)

No reino imaginário de que vou falar, não era nada incomum ser-se #bruxa ou bruxo. Era, inclusivamente, coisa muito natural. Havia muitas e muitos, até em maior número do que as pessoas consideradas normais, e todos viviam tranquilamente, comungando aquela forma de estar, que misturava o mundo real com a fantasia.
No entanto havia uma, pelo menos uma, que não conseguia atingir qualquer felicidade. Pelo contrário. Procurava destacar-se das outras com os seus feitiços maléficos, treinava ao espelho esgares horríveis e gargalhadas atrozes, e tentava a todo o custo que as suas maldades superassem quaisquer outras , para reconhecerem nela a bruxa mais malvada de sempre, ou, no mínimo, uma grande bruxa malvada da atualidade.
Mas, como isso não acontecia, todos teimavam em considerar as suas patifarias dentro da média habitual das dos outros, e, tanto assim era que até comentavam  os seus feitos utilizando bastas vezes aquele sufixo irritante e redutor: "Olha, que bruxedozinho mais catita, ou então: bem fixe, o feitiçozinho que usaste contra a D. Deolinda, ela enchia-se de raiva, e, à medida que o tempo ia passando, tornava-se cada vez mais rezingona e azeda.
Não fossem os velhos amigos, que mantinha  há muitos anos, ainda do tempo da escola que tinham frequentado juntos há dois séculos atrás, e ninguém, mas mesmo ninguém, quereria saber de bruxa tão convencida, e da sua relativa importância.
Um dia, daqueles em que estava particularmente raivosa e inspirada, olhou para o mar, e com a ajuda de meia dúzia de palavras incompreensíveis e de uma varinha mágica, conseguiu deslocar a água do oceano atlântico para outro lugar, e aí sim, conseguiu provocar espanto, e todos comentaram: "A bruxinha moveu o mar, a bruxinha moveu o mar!"

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Abóbora (EI)

Debaixo da #abóbora, que eu apanhei do chão logo pela manhã ainda escura, estava uma minhoca.
Era bem bonita, e os seus olhos grandes e pestanudos olharam para mim, enquanto se espreguiçava esticando o corpo segmentado até conseguir equilibrá-lo no ar.
"Que horas são"?
Não é nada hábito que, quando vou apanhar abóboras, se ouçam vozes a saír da terra. Nada havia, por ali, que tivesse a capacidade de falar. Estava rodeada apenas das ditas abóboras e das suas folhas secas, um pouco mais à frente meia dúzia de tomateiros, uma oliveira, e um carreirinho de alfaces.
"Que horas são"?
Voltei a ouvir a mesma pergunta, mas desta vez a voz pareceu-me diferente, e provir de um outro lugar qualquer.
Confesso que comecei a ficar assustada.
Não via ninguém,  a pergunta, a essa altura, já se repetia por todo o quintal, e, estando completamente sózinha, comecei a ficar muito desconfortável.
Foi quando ouvi umas risadinhas, e, ao olhar para trás, consegui distinguir com alguma dificuldade uma sombra que me era mais do que familiar.
"Ah, és tu! Assustaste-me! Não tínhamos combinado já que só podes assombrar à noite? Não se pode confiar em fantasmas. Eu já sei isso há tantos anos, e continuo a insistir..."
"Não vês que estou baralhado com as horas? Que mau feitio"!
Desapareceu, e. pelo que me apercebo agora, muito zangado, porque nunca mais o vi.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Sintra, Outubro de 2017

Não consigo terminar o que tenho para te dizer.
Já tentei duas ou três vezes, mas, e presumo que este verão interminável tenha alguma coisa  a ver com isso, nem sequer consigo, competentemente, transmitir a nossa conversa aos outros e, de cada vez que o tento, arrependo-me alguns minutos depois,
A verdade, o facto inegável, embora eu possa ter alguma dificuldade em  explicá-lo, é que estou aqui sentada e tu estás à minha frente, e é por isso, e só por isso, que o meu pensamento deveria agora estar virado para uma qualquer coisa de maior utilidade, mas não me consigo abstrair.
Numa das situações, relatei, muito claramente, pensava eu, como é que os pássaros, que se escondem em ti, cantam alguns dos meus versos.
É claro que, quando reli o que tinha escrito, percebi como isso era uma teoria, para além de ridícula, completamente impossível. e eliminei tudo, confesso que até um nadinha envergonhada.
Também tentei mostrar o meu ponto de vista em relação áquela frieza que manténs no inverno. Parece~me lógico que estejas a concentrar as tuas forças para fazer frente às intempéries, e assim o disse, mas entendo agora que o expliquei muito mal.
Houve uma noite, já muito tarde, em que me apercebi de que que todos dormiam, menos nós. Então tratei logo de documentar o acontecimento, e relatei-o, mas não tinha interesse para ninguém, o que é perfeitamente compreensível, e acabou por se dispersar nos dias seguintes.
Se não acabamos a nossa conversa, antes que fiques silenciosa e cadavérica como é teu costume, não há possibilidade, sequer, de insistir nesta estúpida ideia de que as tuas aves se entrelaçam nas minhas palavras, e esse  fenómeno, tão bonito, não vou consegui nunca que alguém o ame com igual entusiasmo, e, obviamente, é daí que me ocorre uma certa tristeza e um certo sentimento de impotência,.
A janela fechada nunca constituiu, para nós, qualquer impedimento, por isso não entendo tanta falta de oportunidade, pelo que presumo que tenha a ver com o período de seca.
Ou então estás zangada, e não queres partilhar mais nada, só porque eu não sei transmitir convenientemente a tua beleza ao mundo.
Prometo, ficará tudo entre nós. Concordo, até, com essa solução,
Encaixa-se muito bem na  tua postura rígida, de árvore velha, imóvel há dezenas de anos, espreitando, insistentemente, pela minha janela da sala de estar.









quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Pássaro (Literatura e Ciência)

Ouço-te daqui!
Aproveitas a árvore frondosa
escondes-te na sua copa
e recitas aí um poema
com essa voz maviosa...!
Não me encantas, pássaro.
Nada de novo.
Esses versos que cantas
conheço-os bem,
eu mesma os escolhi.
Tu é que,
muito desajeitadamente.
te infiltraste nas linhas
incompreensíveis
da minha prosa,
o que, convenhamos, pássaro,
não é nada bom para ti.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Utente

Caíram tão rápido que já não os consegui apanhar.
Os dois #utentes que a minha avó me tinha dado ainda em vida, sim,porque tudo o que lhe tenho pedido ultimamente me tem negado, resvalaram pelo cano do lavatório abaixo, num remoínho de água, e pior ainda, o anel ficou ridículo, com dois pequenos buracos.
Aqueles utentes estavam avaliados nuns bons milhares de euros. Eram uma joía de família duma família sobejamente conhecida precisamente por não possuir quaisquer joías, dado o estado de pobreza permanente, portanto foram avaliados pelo valor sentimental, pelo menos assim me disseram, "atenção que estes utentes têm um valor sentimental muito grande", e eu agora, inadvertidamente, deixei-os ir pelo cano abaixo.
Esse descuido, o dos utentes rolantes rolantes, brilhantes, coloridos e muito mais, mergulhando em espiral descontrolada até ao fundo de um tubo de metal, quem sabe  a acabar aonde, fará com que, um dia eles andem pela praia, imunes a qualquer tipo de erosão e, muito naturalmente, serei eu a apanhá-los outra vez, depois de pesquisar nuns bons milhões de grãos de areia,
Nessa altura os utentes já não terão grande valor, a não ser para quem colecione fotografias antigas, e as emoldure em molduras antigas, e, mesmo sem reconhecer ninguém, a não ser o tal do anel incompleto que encontrou sem pedras num passeio à beira mar, resolva contar essa história.






segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Sem Abrigo.

Reza a história que uma vez um homem muito endinheirado  passeava pela Av. da Liberdade, logo pelo fresco da manhã.
Tinha por hábito, àquela hora tranquila, parar debaixo das arcadas para dar uma olhadela à roupa elegante dos expositores,  e assim fez, prestando particular atenção a um belíssimo blusão de cabedal.
Pôs-se então a apreciar a montra, quando lhe pareceu  sentir movimento, num canto, onde estava um monte de cartões.
"Olha os cartões a mexer...",, e, intrigado, ficou a observar.
Qual não é o seu espanto, quando  das placas de cartão, que se abriram lentamente, como as pétalas de uma flor, emergiu um sem abrigo!
Um não, uma. Uma mulher sem abrigo e sem  dentes, mas ao mesmo tempo tão linda! Foi amor à primeira vista, porque, é claro, também ela  se deixou fascinar por ele, que isso do amor é coisa para dois, e fez o que nunca fazia com ninguém, ofereceu-lhe um golo da sua garrafa.
Ele aproximou-se um pouco, sentiu melhor um odor que até então os seus sentidos desconheciam, mas tão poderoso, dir-se-ia que quase vivo, quente, e estendeu a mão para aceitar a bebida. Foi quando ela lhe pegou na outra mão,e, aproveitando o impulso, se levantou e começaram a dançar no meio da rua, sem conseguir controlar a  felicidade.
E tanto dançaram, que foram parar aos Restauradores, onde se sentaram a descansar, e a dar milho às pombas.
A verdade é que ainda hoje a praça está cheia dessas aves.



















domingo, 22 de outubro de 2017

Rádio

A mãe contava-lhe uma história para
crianças todas as noites.
Sentava-se na beira da cama
e começava, com aquela voz doce:
Era uma vez uma mãe
que contava histórias ao seu filho
numa noite tranquila.
Sentava-se na beira da cama,
fazia-lhe uma festa no cabelo
e começava
a ler-lhe o seu conto predileto:
Havia em tempos uma mãe, que,
amando deveras os seu filho,
 lhe contava todas as noites
uma história de encantar.
Segurava no livro com a mão esquerda,
e com a direita, distraídamente,
passava as pontas dos dedos
nas contas redondas do colar,
enquanto lia:
Algures num país distante
uma mãe contava uma história
ao seu filho,
primeiro encostava a porta,
para abafar o som do rádio
Depois sentava-se na beira da cama
e começava, com aquela voz doce...

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O Ouriço

Hoje, logo pela manhã, recebi um telefonema da senhora que é vizinha da minha avó, e que também vai olhando por ela.
Disse-me que ela não estava nada bem, e que era melhor levá-la ao hospital..
Pedi à patroa para sair, prometendo que compensava as horas noutro dia. Fez um ar contrariado. Podia sair, mas acabava o que estava a fazer, e depois sim, que fosse à minha vida.
Apanhei o autocarro, e quando vagou um lugar sentei-me a comer o pão com manteiga que trazia na mala.
Fui a pensar que sei muito bem que ela precisa de mim. Pior, só me tem a mim, por isso tenho a obrigação de tomar conta dela. Também os meus filhos me têm a mim,o meu homem me tem a mim, e a minha mãe, que já não é muito nova, me tem a mim. Todos me têm menos eu. Eu não tenho nada de mim.
Quando cheguei lá a casa, percebi que a velhota não estava nada bem, mas algo me impediu de chamar uma ambulância, e resolvi gastar um bom dinheiro num táxi, para a levar ao hospital.
À entrada da urgência sentei-a numa cadeira, na sala de espera, com a cabeça apoiada a uma parede lateral, para que ficasse amparada, porque me pareceu muito fraca, e fui fazer a inscrição.
Não sei o que tinha, na altura, em mente, mas a verdade é que inventei um nome para ela e outro para mim. Queriam os documentos, mas eu fiz um choradinho, roguei que me inscrevessem a senhora, e esse exercício de vestir outra pele soube-me muito bem. Assim fizeram, mediante a promessa de atualizar os dados logo que fosse possível. Confirmei e agradeci..
Nos hospitais não querem que ninguém morra, não sei porquê.
Ficou internada, com uma pneumonia, segundo-me disseram, já cheia de complicaçôes. e recomendaram-me antes de eu sair: " se ela resitir, precisará de cuidados especiais. Pode assumir esses cuidados"? "Claro que sim"! respondi.
Ainda consegui chegar a tempo à casa onde trabalho de tarde. Pelo caminho vi um ouriço esborrachado na estrada.
Vou fazer de tudo  para que não consigam decobrir quem eu verdadeiramente sou.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Irão (EI)

Aqui em Sintra, os duendes deixam-se ver no Outono.
Aproveitam uma manhã misteriosa como a que está hoje, e aparecem, saídos das suas casas
Portanto, quando passei por baixo daqueles enormes plátanos que perdem, nesta época, as suas folhas mais castanhas, não me espantei quando um deles me interpelou saído detrás dos troncos das árvores.
Dirigiu-se a mim, enigmático, e perguntou-me:
"Sabes o que são palavras mágicas?"
"Fosga-se! Não saiba eu outra coisa...", resmunguei.
"E sabes a de hoje?"
E, ao mesmo tempo, como se estivéssemos muito bem ensaiados, dissemos: "#Irão!"
E rimo-nos, claro! Os duendes também acham graça quando se fala em coro aleatoriamente.
Ainda conversámos  mais um pouco, porque ele, num gesto muito delicado, me acompanhou em grande parte do caminho.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Garrafa (EI)

Estava já deitada, a preparar-me para dormir, quando me pareceu ver, pela janela, uma bruxa a passar.
Até aí, tudo bem. Todos sabemos que as bruxas circulam mais à noite quando a maioria dos pássaros estão a dormir, para evitarem colisões desnecessárias. Acontece que me pareceu que a bruxa ia montada numa #garrafa e não numa vassoura como é habitual.
Levantei-me, coloquei os óculos que estavam sobre a mesa de cabeceira, a primeira coisa que me me ocorreu foi se não estaria a ver mal_ os míopes vêem muitas vezes coisas a mais, precisamente pela falta de visão_ e fui espreitar pelo vidro para tentar perceber o que realmente se passava.
Lá em baixo, no passeio, lá estava ela a tentar pôr a garrafa a trabalhar.
Eh! Ó bruxa! Então uma vassourinha não era melhor?
Roubaram-ma. Estive aqui ontem, estacionei para ir comprar tabaco, e quando cheguei já não estava cá. Foi um transtorno. Tive que ir para casa de autocarro, e deixei uma série de maldades por fazer. E era eu que estava de serviço às maldades noturnas. Um azar.
Queres que eu te empreste uma?  Ou uma esfregona, talvez. Sempre têm alguma semelhança.
Ó pá! Sinceramente! Então tu achas que eu vou voar de esfregona? Parece que não andas nisto há séculos, como eu. Vais logo à noite à reunião?

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A Família

Ao jornalista tanto lhe fazia uma calamidade com inúmeros mortos, como um fabuloso espetáculo de circo. Debitava todos os assuntos com igual entusiasmo.
A verdade é que também não lhe  prestava muita atenção. Estava concentrado na meticulosa tarefa de cortar com os dentes a pele de uma unha.
Via perfeitamente o ecrãn por entre os pés, que repousavam sobre a mesa de apoio, e a barriga, assim deitada ao pé do gato, também não lhe retirava a visibilidade.
Na cozinha, a mulher a arrumar as compras, deu com o vermelho dos morangos, lembrou-se duma marca de baton, mas logo a seguir lembrou-se que se esqueceu de comprar um ou dois pares de luvas de borracha, e também se deu conta de que o som da televisão estava demasiado alto.
O filho,  alheado no seu quarto, coisas de adolescente, como que desativado naturalmente daquele espaço que ocupa uma casa, e de todo o seu conteúdo. Era bom rapaz, só não lidava bem com os cabelos brancos do avô. Pareciam-lhe sempre um desastre inevitável e antigo. De resto, quando era necessário, punha e tirava a mesa, e era por isso, e só por isso que não apreciava tanto assim os almoços de domingo, passados em #família.















domingo, 8 de outubro de 2017

Eletricidade

Há muitos, muitos anos atrás, quando o planeta parecia muito maior do que parece hoje, as distâncias eram quase intransponíveis, e ainda faltaria muito para a utilização da eletricidade, um homem de grandes barbas, sentado em frente a uma  secretária, passava os seus dias a escrever.
Não escrevia nada de muito especial, nada que mudasse verdadeiramente o mundo, ou que ajudasse a resolver intrincados problemas da sociedade.
Sómente ia molhando, num ato contínuo, a pena na tinta, e com ela preenchia as folhas com maravilhosas e mirabolantes histórias de encantar.
Às vezes parava, buscando a melhor palavra, ou a melhor frase, e para isso fixava os olhos nos barcos atracados no porto, visíveis pela janela que lhe dava a luz necessária para a continuação do seu ofício, ou, ainda que não fosse um ofício, seria pelo menos, aquilo que mais apaixonadamente sabia fazer.
O homem não tinha a noção, sequer, se as suas histórias seriam alguma vez lidas, nem tinha qualquer perceção de que elas atravessariam fronteiras, e, sobretudo, transporiam o tempo, como só a arte o consegue transpôr.
Apenas olhava os barcos no rio, e molhava a pena, repetidamente.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Zélia

Se podes entrar?
Não, Zélia, não podes.
De momento não se encontra ninguém no miradouro a contemplar a cidade.
Até é suposto que uma qualquer sonhadora encoste os seus antebraços à grade de ferro, que há-de estar quente pelo calor daquele dia de verão, mas isso será mais tarde.
E também não te estou a ver, por uma qualquer circunstância, a descer a avenida apreciando os bancos de jardim, o passeio largo, os desenhos da calçada.
Ou então, dar de caras com um dia bem chuvoso e escuro, e serem os teus olhos a toparem, refletido, o brilho das luzes dos carros.
E depois, com que sentimento verias a colisão de dois chapéus de chuva, um azul, outro amarelo, Estarias atenta, por acaso,  a essa mera casualidade?
E, se por uma predisposição qualquer da minha cabeça, ali, bem no meio do mau tempo,  viesse a acontecer o abraço de velhos amantes?
Terias tu capacidade para assumir esse papel?
O mais que consigo para ti, Zélia, é que compareças,  ocupando um lugar sentado no autocarro que irá cheio, em direção ao Largo do Rato, mas promete que passas sem dizer uma palavra.
Melhor ainda. Tenta dormitar, logo na primeira paragem, e acordar mesmo na última, para não interferires em nada neste lapso de tempo de uma pequena história.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Diversões ( Adaptado para EI) Sela.

Foi por um acaso que o comboio entrou naquele túnel.
Até ali tinha tido um destino  incerto, mas os seus olhos de comboio perceberam-no quando ainda era apenas um pequeno ponto de referência no céu, e assim dicidiu encaminhar-se para ele.
Entrou então, ansioso por ver o que lhe reservava aquela escuridão inicial, sem qualquer medo de que fosse duradoura ou mesmo eterna.
As pequenas carruagens encaixaram-se nos carris,e, logo depois da primeira curva, à sua direita, Adriana apercebe-se dos cantos iluminados, com figuras articuladas, que sabe tratarem-se de bonecos de madeira. Soldadinhos, bailarinas que bailam sobre o si próprias, numa dança encantadora e comovente, sapos que falam. guerreiros montados a cavalo, muito direitos nas suas #selas.
Mas, por um imprevisto qualquer, o comboio, naquela viagem louca e rápida, a deslizar sobre um eixo, estanca o movimento,
Adriana esperou tanto tempo pelo reinício da viagem, que acabou por se desembaraçar da trave de segurança, e desceu, ágil, por aqueles mecanismos, até junto da Rainha de neve, que acenava com ar triste aos seus subdítos.
"Estou com alguns remorsos de pensar sempre pelo melhor, mas não agir em conformidade."
"Alguma coisa de bom hás-de ter feito."
Noutro patamar uma sereia chamou-a, e ela, com alguma dificuldade, a saia atrapalhava-a constantemente, trepou até lá procurando apoio nas reentrâncias da engrenagem.
"Tens as mãos frias, sereia, É por seres a única de bronze."
Nisto, Adriana olha para cima e vê os grandes olhos do comboio, que se mantinham estáticos e mortiços há um tempo. começarem a avivar lentamente. Primeiro abriram um pouco mais, e logo começaram a rodar sobre as órbitas loucamente, até se acalmarem para os gestos cordenados e naturais dos olhos encantados.
Depois foi rápido. Nuns segundos desapareceu, acompanhado pelo seu ruído de comboio virtuoso, a  diminuir no espaço fechado.
A míuda assustou-se, é claro, sózinha, sem forma de sair de um mundo encantado, nem para uma criança se revela fácil, mas o seu medo durou pouco tempo, porque ainda não tinha passado no recanto das fadas, e cujas vozes acabou por, concentrando-se,ouvir nitidamente,
" Não há qualquer dificuldade para ti em saíres daqui. Adriana, usa, em vôos curtos, as tuas pequenas asas."




sábado, 2 de setembro de 2017

Um Tinto Reluzente

Da minha janela vê-se com bastante nitidez a sala de um andar do prédio em frente. É o quarto andar, logo abaixo do meu.
Percebem-se muito bem os móveis, e até quaisquer objetos que possam estar sobre eles.
Às vezes, em cima da mesa, que é o que melhor se vê daqui, repousa louça suja. Outras está tudo pronto para uma bela refeição, os talheres alinhados com os pratos, tudo a casar com uns bonitos copos de pé alto com o vinho a reluzir lá dentro. Outras vezes ainda, a mesa não tem nada em cima dela, Aparentemente, porque não garanto que esteja livre de algumas migalhas, isso já é pedir muito aos meus olhos, daqui, parece estar tudo limpo e arrumado.
Hoje, pelo que consigo vislumbrar, vão comer um belo naco de carne, acabadinho de preparar,  quase consigo  sentir-lhe o cheiro.
Ando pela casa a cirandar. coisa de fim de semana, e ainda agora espreitei, traída pela curiosidade. A mesa estava  na fase prévia da refeição, muito bem arranjada para receber as pessoas  ao almoço.
E estes aqui do lado a garantirem-me, constantemente, que o apartamento está vazio há anos, e que nem sequer mobília tem...!
Estive quase para perguntar, mas não quis ser indelicada:
"Então à noite não veem  aqueles lustres acesos, luxuosos e brilhantes,lá de vossas casas?"


sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Sino (EI)

Agora em Setembro há-de passar aqui à porta a procissão da Nossa Senhora que no momento não me lembro quem é, mas que sei muito bem de quem se trata.
Gosto de os ir ver à janela.
 Eu sei que lá vêm, porque são precedidos pelo som, que se aproxima, da banda a tocar, e são também os elementos da banda que aparecem primeiro no meu raio de visão.
 A seguir começam a surgir as figuras das santas, sempre da maior para a mais pequena, muito lentamente, e transportadas por homens que as elevam no ar.
Depois das santas, e das pessoas que as envolvem, ainda segue uma vasta muitidão de gente pela estrada fora.
Da procissão  constam, ainda, vários elementos da polícia local, e por último uma fila interminável de automóveis praticamente parados, apanhados pelas contingências do trânsito.
Durante esse período os #sinos da capela ouvem-se muito bem daqui: Dão badlam! Dão badalam!

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A Rã

Já há uns dias que andava meio aborrecido com a esposa, mas nessa manhã, quando acordou e se virou para o lado, verificou que a mulher se tinha transformado numa rã.
_Ahhhh!_
_O que foi, querido? Tiveste um pesadelo?_ e a senhora estendeu a sua pata verde e húmida para lhe fazer uma festa.
Levantou-se de um pulo, vestiu-se o mais rápido possível, e saíu sem sequer fazer a barba ou tomar banho.
Na rua circulavam rãs do tamanho de pessoas, e no café onde foi beber uma bica, também só se viam rãs. Umas liam o jornal, de perna traçada, outras estavam sózinhas e silenciosas, e outras ainda coaxavam animadamente.
"O que é que se passa, meu Deus? Será que me fez mal o caldo verde que comi ontem ao jantar?"
Foi então que ouviu uma voz que lhe disse o seguinte:
_ Como vês, depressa ficamos no lodo. Para saíres desse charco terás que "amar pelos dois"_
_Mas quais dois? Não estou a perceber nada!_
_Quaisquer dois. Não te faças de estúpido! Por seres assim é que te acontecem essas coisas!_
Passou então o dia a pensar no assunto, e verificou que a voz, fosse lá de quem fosse, tinha toda a razão,devemos sempre fazer as coisas por dois, seja amar, ou odiar, ou o que  fôr, e, foi com esta convicção profunda que chegou a casa, ao fim do dia. Talvez por isso,a mulher, felizmente, já tinha adquirido o seu aspeto normal.
Mas quando, aliviado, se chegou ao pé dela para a cumprimentar, reparou que dos óculos ainda lhe pendiam meia dúzia de limos.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Quebeque (EI)

A cinco passos da porta,
chove.
Lá dentro, vinte e poucos graus,
mornos.
E que belas imagens do #Quebeque
e dos Açores
nas páginas centrais
de uma revista,
de viagens, obviamente,
aberta sobre o colo,
e, claro, sobre os pés traçados.
Somente
o tempo a mudar de minutos
para horas
e a mudar
de impecável para belíssimo,
e, às vezes
uma chávena
de café quente,
sempre um café quente...
Grande coisa prever,
agora,
que os candeeiros acenderão
ao fim da tarde
e perpetuarão artificialmente
o casaquinho no saco para
o fresco da noite.


.
.


terça-feira, 29 de agosto de 2017

Pinto (EI)

A galinha Fricassé sempre desconfiou daquele ovo.
Mas, apesar de apresentar um aspeto completamente diferente, resolveu chocá-lo, também a ele, uma vez que fazia parte da meia dúzia que trouxe do supermercado.
É claro que não se espantou absolutamente nada quando os animais eclodiram e lhes encontrou diferenças.
Olhou para os seus meninos e verificou que quatro eram pavões, um outro era um belo sapato em pele genuína, que calçou entusiasmada, e por último uma pequena avestruz, qual deles o mais fofo e ternurento.
A verdade é que quando cresceram e se tornaram adultos, os seis prosseguiram a sua vida o melhor possível, as tartarugas ainda hoje trabalham nos correios, o Pipas é gestor de uma grande empresa e o #Pinto está a acabar a faculdade, e embora toda a gente o confunda com um limão, o que é natural, isso não o incomoda,



segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Ombro (2015 publicado em EI 017)

A cabeça a mil, inconstante e livre, e á nossa volta tudo permanece incompreensível e tranquilamente no seu lugar.
Nem damos por isso, nos momentos em que os astros saem do sítio, e a nossa visão inquieta confunde a escuridão com a luz do sol, e o mar é água e terra, e nuns minutos pequenos, a vida encantadora e leve, e ás vezes inútil, e às vezes fecunda, equilibra com o peso da morte.
Depois é esperar um pouco, calma, haverá um tempo em que tudo poisará suavemente e ocupará o seu espaço devido, o corpo entrosado com os seus átomos finitos, o desassossego sossegado por momentos, e há quem faça isso, que ofereça todo o peso que carrega nos #ombro(s) e diga: levem! Levem as minhas folhas soltas. Este é o meu grito, o produto da minha inquietação.
Se quiserem deitem para o lixo.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Lima (EI)

_Foi com esta #lima das unhas, da vossa avó que Deus tem_ contava ele pela centésima vez_ e que ela me levou enfiada numa banana, antigamente não se comiam lá essas merdas! Agora é tudo à fartazana, tv por cabo, mangas, papaias..., que eu e o Zé Porco serrámos as grades da cela. Dez anos naquilo! E os guardas a perguntarem que barulhinho era aquele, e nós moita carrasco, nem uma palavrinha! Que devia ser do vento, ou uma bicheza qualquer, o caruncho xô guarda, deve ser o caruncho.
Hoje é que me arrependo. Deixei a lima lá dentro, e a vossa avó, que tinha muita estimação naquela coisa, tinha-a comprado em Fátima, diz que era a lima da Nossa Senhora, obrigou-me a ir lá buscá-la, e eu fui, mas já não estava lá. Devem tê-la fanado_.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Kelly

Num cantinho inspirador
e cheio de pó
vivia projetada
a sombra
do cadáver de um aranhiço
de pernas longas
e corpo minúsculo.

Diametralmente opostos,
tendo em conta a reta que tracei
(infinita, pelo que sei),
e que servia, por assim
dizer, de espelho,
apercebi-me, olhando
deste ponto,
que o animal estava
morto,
tanto de um lado como
do outro.

Antes de morrer
o bicho Kelly
segurava um livro
nas patas enroladas
(o único que lhe esgotou
a probabilidade matemática
de mais junções
de palavras),
que permaneceu inerte
naquela prateleira
empoeirada.

Mas no momento
em que eu reparava
na sua imagem
invertida
(a do livro, claro está)
a tender, agora,para um
ligeiríssimo
movimento circular,
pôs-se o gato a discursar
forçando, abusadoramente,
a realidade.
.



quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Iodo

Aromas precisos
sentidos apurados
à beira-mar,
com os olhos fechados
excluindo quaisquer outros...
ruídos
que não sejam os do sol,
e do sal,
e dos búzios rolando
na espuma
traduzindo afinal o silêncio
das rochas molhadas,
e altas,
ou a falácia do iodo
contido nas algas.

Juan

Porque os miiúdos ouvem tudo, percebendo a maioria das coisas, #Juan tinha a perfeita noção do que os adultos faziam quando viam um desenho de criança. Agarravam nele, olhavam-no demoradamente, primeiro diziam, está muito bonito, estava sempre bonito mesmo quando não estava, e depois ficavam atentos e concentrados numa avaliação mais rigorosa dos pormenores.
Por isso se entretinha a ludibriá-los, desenhando, nuns dias, árvores e flores coloridas com um sol disparatadamente amarelo na parte superior da página, e noutros, monstros abomináveis, de garras e presas afiadas, e, ao finalizar os últimos, preenchia-os enchendo  o papel com uma chuva de riscas cinzentas, carregadas até quase partir o bico do lápis.
Um dia, apenas por questões de variação, resolveu misturar o feio com o bonito, e ao lado de uma árvore de copa verde, mas vazia, colocou a família de mãos dadas, substituindo um dos elementos por um ser horrendo, mas inexpecífico, como, aliás, eram todos, por estarem mal desenhados.
Como cada um deles deduziu tratar-se não de si, mas de outro, sendo que havia uma tendência maior, por motivos obvios, para reconhecerem naquela figura traços da avó paterna, Juan foi considerado, finalmente, um puto equilibrado.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Uma Barata

Este é o caso particular de uma barata que não era nojenta.
Arranjava-se, muito bem arranjadinha, usava maquilhagem e belas fatiotas compradas em lojas de alta costura, e passeava-se, vaidosa, mas sempre no seu perímetro de confiança, dentro da sua zona de conforto.
Um dia, curiosa, resolveu subir uma parede, mesmo ali, motivada pelo odor maravilhoso de um caixote do lixo do primeiro piso, e cujos donos eram um bocadinho desleixados.
Lá se atreveu, a escalada era, como previra, bastante fácil, e foi por ali fora, ao som do tilintar de milhentas pulseirinhas que trazia nas patas, e que batiam umas nas outras com os seus rápidos movimentos.
Quando finalmente atingiu o chão da cozinha em questão  viu uma senhora, um bocadinho desgrenhada, que preparava comida com a sua grande barriga encostada ao lava louça.
A mulher nem reparou como ela estava bonita. Deu logo um enorme grito e chamou o marido para a vir ajudar.
O homem lá veio, contrafeito, porque teve que interromper um debate televisivo sobre as pífias da política internacional, aproximou-se, e o nossa princesa inseto só teve tempo de ver uma sola de chinela a crescer desmesuradamente sobre ela, até lhe tocar nas antenas e formar uma sombra tenebrosa em todo o seu redor, e muito rapidamente o seu exoesqueleto estalou, fazendo aquele ruído asqueroso característico dos exoesqueletos a estalar, e ela morreu esborrachada, o que constituiu para aquela família, bem como constituiria para maioria das pessoas, mais uma estrondosa vitória.

domingo, 13 de agosto de 2017

Vanuatu

Sentado,
enrolado sobre si próprio
num canto do universo
sob uma nesga de céu
foi assim que adormeceu...
num corpo desconfortável,
e sonhou tremendos pesadelos
de relatos impossíveis
porque ninguém para os contar,
e neles, morria aos poucos
sem verem nunca os seus olhos
Vanuatu ou Zanzibar.

Sofia

Sofia todos os dias atravessava o salão.
Não podia pisar os mosaicos brancos.
Era um jogo que fazia sempre.
Andava com o máximo cuidado
acertava o passo, concentrada,
para não pisar sequer as arestas ou os cantos,
e, quando se cansava,
a distância entre as portas,
a primeira, por onde entrava,
e aquela por onde tinha de saír, era enorme,
sentava-se no chão.
O vestido, rodado, encarnado, formava um balão.
As paredes eram altas, muito altas,
preenchidas por quadros, e Sofia
primeiro ajeitava a saia,
de forma a ficar redonda,
e escondia as pernas lá dentro
só deixando visível a ponta dos sapatos,
e era dali que observava o vitral ao seu lado,
o zénite nas cores vítreas dos anjos e dos santos.
Depois, levantava-se e prosseguia o seu caminho,
sempre a evitar os mosaicos negros,
mas todas as manhãs, invariavelmente, a mãe,
a acordava deste sonho, beijando
a sua pequena cabeça de cabelos brancos.



sexta-feira, 28 de julho de 2017

James

Não era porque não teimasse que não conseguia concentrar-se no que dizia a professora.
Esforçava-se, tentava, mas uma abelha insistia em chamar-lhe a atenção, ao querer sair pela fresta da janela, até já a tinha aberto um pouco mais, devagarinho, para ninguém reparar, mas o bicho, nitidamente, não percebia a diferença entre a transparência do vidro e o caminho para a liberdade.
Por causa da abelha, que saíu, finalmente, da situação de perigo, olhou lá para fora tentando localizar  onde estavam pousadas as pombas. Tinham de estar muito perto, porque ouvia, nitidamente, o seu arrulhar.
James!_ Chamou a professora, atenta, _Não podes estar ao pé da janela. Muda de lugar._
Sentou-se em frente ao quadro, e olhou, o mais fixamente  que sabia, tinha já aprendido o ano passado, na escola, a fixar o olhar, sobretudo na boca que mexia verbalizando a explicação.
A menina que se levantou, e passou ao seu lado, tinha marcado nas pernas um traço avermelhado, provocado pelo facto de estar muito tempo sentada na cadeira. Quando ela começou a falar admirou-a por saber a lição toda, reparou no seu cabelo, deu conta dos seus ténis cor de rosa, e do anel da professora com uma pedrinha encarnada, e então, apercebeu-se de que, dali, ficava numa posição estratégica para observar muitas cores, e lembrou-se de fazer uma espécie de jogo, procurando objetos na sala primeiro azuis, depois amarelos, e depois cor de laranja.


domingo, 23 de julho de 2017

Elisa (EI)

#Elisa ia sentada no banco de trás do automóvel.
Entretinha-se, como sempre, assim sossegada, observando o correr da paisagem, ao seu lado, metódica, do outro lado do vidro.
Até à periferia viam-se as fábricas ao fundo, com as suas chaminés, altas e esguias, expelindo rolos de fumo, e no chão, grandes espaços que milhares de flores das azedas ao cobrirem o chão de amarelo, faziam-no parecer um cobertor macio, um tapete para os gigantes pisarem com as suas grandes passadas.
Mas Elisa sabia muito bem que eram apenas uma enorme quantidade de pequenos e persistentes pontos móveis em função da velocidade do carro.
Outras coisas  seguiam, rápidas, como linhas segmentadas ao seu lado.
O céu, imediatamente antes de as dissipar por completo, formava, com as nuvens, novas imagens de coisas efémeras, reais, mas breves,com uma duração média de vida, talvez, de quatro ou cinco segundos.
No entanto, e sabia-o, ia-lho dizendo a mãe, sentada à frente, com o seu descomunal penteado a tapar toda a visibilidade possível para a velocidade da estrada, era inevitável, à passagem do sinal indicativo de proximidade a um excesso de azul no horizonte, e  alertando, também, para outros perigos desmedidos das vias rápidas.
Mas, enquanto a mãe falava,  a sua voz ia ficando abafada por outros ruídos, e ela acabava por se recostar e adormecer, embalada pelo seu próprio pensamento.

sábado, 22 de julho de 2017

Bicicleta II (EI)

Li, faz pouco tempo, um estudo sobre os estudos que revela que a maioria deles são um enorme disparate.
Para além desse ,também li um sobre os benefícios de andar de #bicicleta enquanto, e ao mesmo tempo, se comem cerejas.
Segundo a informação que me foi disponibilizada, este hábito contribui para o bem estar geral, físico e psíquico, do indivíduo.
As cerejas são transportadas em apetrecho próprio, que se prende ao guiador, devendo o primeiro ser comprado em lojas da especial...idade, e o seu preço pode variar entre cinquenta e duzentos euros, sendo que os mais caros possuem um pequeno recipiente onde se vão colocando os caroços, evitando assim que se atirem para a berma da estrada, o que pode provocar o assassinato involuntário de formigas e outros pequenos rastejantes.
Não vejo porque não acreditar neste estudo, já que decorreu num intervalo de tempo de dez anos, e nele participaram mil indivíduos, entre os quais se encontravam dez ouriços caixeiros e quarenta lagartixas.
Parece-me, portanto, da maior credibilidade.

A Bicicleta

Todos os dias, à mesma hora, um homem passa de bicicleta  pelo caminho das cabras.
Não se lhe veêm as feições, o sol incide sobre a sua silhueta, recortando-a entre o rio e os milheirais.
Ninguém sabe quem é a estranha figura, e todos nos conhecemos nesta pequena aldeia, bem como conhecemos os habitantes das povoações que por aqui existem espalhadas pela serra.
Diz o povo que poderá ser a assombração de um homem que caíu ao rio e morreu, quando pedalava, desesperado, em busca da mulher desaparecida.
Não digo que não.
Estes campos e pinhais são plenos de fantasmas. Sei porque os vejo, grandes figuras na sombra, movendo-se silenciosamente para a maioria das pessoas, mas não para mim, que tenho um ouvido apurado, e os ouço, nitidamente, por entre as folhas.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Simplificando


Simplificando,
estamos com sorte.
Aqui por Sintra
depois de umas horas
de chuva miudinha
e de um cenário cinzento
o tempo parece querer
abrir

(Quando abrir
maquilhará de novas
cores
as transformações
involuntárias
de tecidos como
a derme e a epiderme,
o interior e o
exterior da pele,
mas isso não interessa.),

e manter-se
assim, aberto.

São tão lindas,
muito grandes,
e perigosas, eu sei.
Podem e devem
as copas frondosas
destas árvores
molhadas
pois se têm lá dentro luz,
e elas, enormes, lavadas,
é certo que brilharão,
e podemos passear.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Zulu (EI)

Tanto podia ter sido em #zulu como noutra língua qualquer, a verdade é que os miúdos gostaram de ouvir o som das suas próprias vozes a ecoar nas escadas.
Gostaram do efeito produzido, e então, repetiam incessantemente o riso em guincho, muito desagradável, contrariando o habitual e mavioso riso das crianças.
Mas tudo é bonito na infância, tudo cresce e floresce, e os petizes sentiam-se felizes, até que um deles começou a choramingar, no segundo andar, nunca atingindo, felizmente, o choro a plenos pulmões, não estou certa de que tenha sido para o eco não me incomodar.
Também os ouvi a tinir, estridentes, os talheres de alguém que almoçava na cozinha.
Nesse dia, não sei porquê, tudo afrontava o meu desejo de silêncio.

XVI ( Escrito para EI com ideia exterior)

As suas visitas são imprevisíveis. Sobe a árvore com destreza, percorre, em passos rápidos, o galho virado para a janela, e, num salto elegante, projeta-se para dentro do quarto, indo cair em cima do tampo da cómoda.. Aí, cheira desinteressadamente o perfume ou um livro abandonado que por lá esteja, e senta-se, em pose altiva, com a cauda enrolada à volta do corpo.
Quando a janela está fechada, equilibra-se no parapeito, e arranha uma ou duas vezes o vidro, para que a deixe e...ntrar.
Usa sempre um chapelinho colorido, e muito fora de moda, que tanto pode ser em rosa vivo, e cujo acessório são duas margaridas, como em verde garrafa com violetas, ou em azuis, turqueza e petróleo. Neles prende, por vezes, com um alfinete próprio, não umas flores quaisquer, mas sim as de cada época.
Já me explicou porque são os chapéus de dimensões tão reduzidas. Para que não lhe prejudiquem os movimentos. Tem que atravessar passagens muito estreitas, dar saltos acrobáticos, fazer aterragens difíceis sobre a humidade dos telhados.
Hoje estava muito elegante. Tinha um chapelinho redondo, cor de mirtilo, com uma flor de cera, que é o nome vulgar dado às belíssimas flores da Hoya.
Contrariamente ao habitual, normalmente conta histórias extraordinárias de becos e vielas, rixas violentas, ou paixões noturnas, que só ela vê com os seus olhos apetrechados,
hoje, como dizia, não falou. Limitou-se a tirar o chapéu com uma das patas dianteiras,e estender-mo, para eu ver o que lá dentro estava escrito: #XVI.
Colocou-o, de novo, sobre a cabeça, e saíu por onde entrou.
Quando voltar, espero já ter decifrado o enigma, e espero que mantenha a indumentária, porque tem umas cores mágicas e bonitas

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Quarteirão II (EI)

Não cabia mais nada
na estante vergada
onde estava o livro
que retirou para ler.
Pegou nele...
soprou-lhe sobre a lombada
e o pó,
muito naturalmente,
dispersou no ar.
Depois,
usando a precisão
de um papel qualquer
que estava
metido entre as páginas,
abriu-o.
Foi quando encontrou
umas palavras
escritas a lápis :
Deixa-te de absurdos.
Ass. #Quarteirão

Quarteirão I (EI)

Apesar de viverem no mesmo #quarteirão,e atravessarem todos os dias a praceta que ele formava, nunca se tinham encontrado.
O destino, ou o acaso, não sei, quis que um deles tropeçasse numa das galinhas que, às vezes por ali andavam a debicar.
No momento em que isto ocorreu, a senhora do segundo andar andar do número 28, sobressaltada com o barulho, deixou cair da janela o tapete que estava a sacudir.
Atordoado, mas inteligente, o animal percebeu ser aquele o tapete voador de... que tanto se falava, e deu mais uma corridinha atabalhoada, saltando-lhe para cima.
O galináceo tinha, obviamente, razão. O vôo ainda durou uns largos segundos e foi muito bom. Teve oportunidade de espreitar uma pessoa a secar o cabelo, duas a verem televisão, e uma outra a esquartejar o que lhe pareceu ser o seu irmão Domingos,
Não se sabe, entretanto, o que aconteceu, a verdade é que o tapete perdeu a sua energia propulsora, e caíu aos pés do casal.
Tanto o homem, como a mulher, assistiram o bicho no local, percebendo assim terem ambos profissões dentro da área da saúde, o que gerou a descoberta de muitas outras afinidades entre os dois.
Acabaram por casar.

Simpatia (EI)

Ai! Eram uma #simpatia,
uma simpatia!
Tão simpáticos, tão simpáticos!
Que maravilha!
E lindos, lindos...! Ai! ...
Tão bonitos e frescos,
eram maravilhosos, uma simpatia,
...uma simpatia!
Ai tão bons, tão leves, tão suaves.
E a simpatia deles?
Uma coisa...!
Espectáculo!
Simpatiquíssimos, amáveis,
Corretíssimos!
E tantos!
Foi incrível!

Rede (EI)

Após anos de trabalho
minucioso e persistente
conseguiu abrir
um buraco na #rede.
A seguir, ...
supostamente livre,
atravessou-a
para se sentar
do outro lado,
e lá ficou
com os braços a envolver
os joelhos,
e as costas apoiadas
nos arames.
Porque não andou
não correu
para se afastar
do objeto
que, quase eternamente,
o privou
da liberdade?
Porque tinha um só
desejo
dos mais simples.
Eliminar
da belíssima paisagem
aqueles horríveis
quadrados.

Aladino (adaptado para EI -Urtiga)

Complicando, assumindo o risco
quero lá saber
dei por mim a desejar,
imitando descaradamente
Aladino maravilhoso e a sua lâmpada....
Foi só ao que vim.
Áquela música extraordinária
bem capaz de me pôr a....
Sempre o mesmo
apenas um desejo e não três.
Não há lei nestas frases, Aladino, eu aviso.
Cobrem as folhas só até ao dia da reciclagem do
papel.
E aí, iremos os dois às #urtiga(s),
e seremos outra vez bloco de notas
envelope grosseiro
marca de livro,
mas eu não quero, sequer,
saber!

sábado, 8 de julho de 2017

Bom Tempo (EI)

O #bomtempo opera, naturalmente, modificações na estrutura simples de um jardim por onde, por rotina, passo.
Altera-lhe os contornos e os aromas.
Suspeito, que, num aproveitamento miserável desse fenómeno, alguma entidade se esconde, entre a claridade da manhã e o parque das crianças.
Mesmo ali, a meio do caminho, entre a humidade das folhas, e o silêncio habitual dos arbustos de flores brancas.

Droga II (EI)

Debaixo da tília cheirosa
permanecem personagens
(olha a Camila e a #droga, por exemplo)
e brincadeiras de palavras
propositadas
e tu vais dançando, dançando...
Depois vem a noite, ...
e a noite sempre acaba
onde o cão ladra
infinitamente longe
do papel.

Drogas (EI)

Era uma vez uma avózinha,que vivia num lar, e que era muito bem disposta.
Quando era nova, estava sempre a fazer sorrisos de orelha a orelha, e a produzir aquele som do riso. Esse som, também gostava de o ouvir nos outros, e, melhor ainda, se o fizessem em uníssono, fortes, sonantes, e expontâneos.
Gostava de rir e sempre gostou, e então ria, na sua cadeirinha em frente à televisão do quarto.
... As senhoras que tomavam conta dela todos os dias, à hora certa, davam-lhe um copo de água, depois de, invariavelmente lhe aconchegarem o cobertor aos pés, mesmo que as suas pernas já estivessem completamente sufocadas.
Claro que isso era ridículo, mas, mesmo que não fosse, a velhota, astuciosa, não deixava de soltar sonoras gargalhadas.
Então, a senhora ajudava-a a segurar no copo com a sua mão firme.
"Vá, agora as #drogas:
Uma para a dor, outra para o sangue fluir, outra para reter o fluxo de sangue que flui, outra para dormir descansadinha, e esta, que a senhora parece apreciar tanto, D. Gertrudes, para parar de rir."

Favas

O míudo estava sentado à mesa, com as mãos a apoiar a cabeça.
" Tira os cotovelos de cima da mesa!"
O miúdo tirou os cotovelos de cima da mesa.
" Só sais daí quando comeres tudo! Temos que gostar de todos os alimentos. Come!"
" Estou aqui com um problema", pensou a criança." Eu não vou comer esta porcaria. Tenho de arranjar uma maneira de me livrar disto"! Já tinha experimentado dar ao cão, q...ue estava deitado aos seus pés, também ele com a cabeça entre as patas. O cão cheirou, atraído pelo aroma do chouriço, mas também não comeu.
Olhou em volta, não viu nenhum esconderijo possível para despejar o conteúdo do prato, sem, mais tarde, ser apanhado, só lhe restava a janela.
Quando a mãe saíu da cozinha por uns instantes, o miúdo, rapidamente, atirou a comida para o espaço.
Alguém que ía a passar na rua a tirar fotografias a tudo, um hábito bem comum hoje em dia, conseguiu apanhar as #favas em queda livre, e mandou, de imediato, as as fotos para um jornal.
Ùltima hora: Chovem favas a sul!

Golfinho

A mãe golfinho ia a conversar com a filhota que ia ao seu lado.
Um pouco mais à frente iam o avô do pequenote, o pai e a tia. O seu filho mais velho, e o seu cunhado, de quem ela não gostava nada porque andava sempre a mirá-la, vinham atrás.
"Agora prepara-te, Pinguita, vamos saltar todos ao mesmo tempo para ficarmos fora de água. Aproveita, e olha para o lado da praia. Quero-te mostrar os humanos"!
A um sinal sonoro dado pelo marido, um sinal que era a coisa mais linda, saltaram todos, formando com os seus corpos uma elegante curva projetada contra o céu.
"Viste-os, Pinguita? São engraçados, não são"?
"Sim!
E dão para comer, mamã"?
Dão. Mas ninguém os come, Pinguita! Têm um sabor horrível"!

Jogo (EI)

Voavam palavras no espaço.
Primeiro saíam em letra.
Depois juntavam-se na fenda
que normalmente existe
entre o ar condicionado,
muito direito,
e a parede. ...
Lá para o fundo,
um pouco abaixo, não muito,
os sórdidos terraços
das traseiras de um hotel.
Talvez os respiradouros por dentro.
E uma linha de mar
disparatadamente longe
quase impossível de ver.
Tremiam como asas de borboleta,
instáveis vírgulas, pois é.
Instáveis e incoerentes, quase todas.
Próximas.
Carentes de sal
corantes de sol e sabe a fel
ou falta um til,
seja o que fôr.
#Jogos de palavras....
O espaço
em
completa
liberdade!

Keil (EI)

#Keil pintava,
papagueava e morreu.
Teve a sorte,
a tremenda sorte,
de existir um kapa no abecedário ...
equidistante
do jota e do ele.
Nós, que tantas vezes
passeamos
à beira Tejo
naquela vila tão linda, Constância,
linda para não variar,
onde viveu e passeou
Camões,
precisamos do kapa
como do pão para a boca
para pescar
universais peixes de rio
e outro tipo de
salmões.

Ágora

Quando vi ágora
confesso,
tive um certo
descontentamento.
Então, ...
(e apesar do pedido expresso),
retirei-lhe devagarinho
o acento.
Ah, agora sim,
uma belíssima palavra
usada,
e o seu encantador
movimento

Movimento

Em breve a árvore crescerá, e a sua copa tapará por completo o troço de estrada de onde eles, nos dias mais relevantes, me dizem adeus.
Só nos meses do verde, porque os meses do verde transportam consigo, referentes a si e aos outros,a noite, que acaba onde o cão ladra, já o disse e insisto, a noite acaba onde ladra o cão mais distante.
Nestas vilas de calor diurno, entra pela janela uma brisa fresca, movimento impercetível nas repetidas noites do ladrar do animal.
De ...manhã, as pessoas sentam-se a descrever o vazio, umas no seu décimo computador, outras no seu milionésimo caderno.
Normalmente explicam trivialidades, como, por exemplo, a solução engenhosa do ambidestro para resolver o seu problema com a concavidade dos esses.
Muitos pedem desculpa da sua desconfortável e incondicional admiração pelo maravilhoso e absolutamente fantástico, outros relatam como rodearam obstáculos, ou os saltaram com a maior perícia exequível.
Quanto a mim, podiam ter feito melhor. Demasiados suspiros e rasuras na mesma linha, e muitas, muitas incongruências.
Em breve a árvore crescerá, e a sua copa tapará por completo o troço de estrada de onde eles, nos dias mais relevantes, me dizem adeus.
Eles, e o corpo quente do falar do cão.

Nu (EI)

A expressão "estava todo #nu", neste caso não se pode aplicar. O homem tinha calçadas umas meias brancas.
Umas horas depois, começou a ter frio e enfiou-se no resto da roupa.
Quando se vestiu totalmente, perdeu o direito de se transformar em post para o dia de hoje.
Tive pena, mas não pude fazer nada. Já o tinha avisado vezes sem conta:
De peúgas e/ou boné talvez se dê um jeito. Agora, se te vestes mesmo, estamos lixados! Já não passas!

Preconceito

Abriu a caixinha de música, e qual não é o seu espanto quando vê, no lugar habitual da pequena bailarina, um tomate.
De olhos arregalados, quase colados ao intruso, tentou perceber o que tinha acontecido.
O tomate sorriu-lhe, mas ela não retribuiu o sorriso.
"O que é que estás a fazer no lugar da minha bonequinha?"
O tomate, perante a reação da miúda, deixou de sorrir. Ficou até com um semblante muito triste, e começou a fungar....
A menina era muito boazinha, e não gostou nada de o ver assim. Meteu a mão no bolso e tirou de lá um preconceito que lhe ofereceu para ele limpar o nariz, enquanto o sossegava, dizendo-lhe que podia permanecer ali, sem qualquer problema.
Desde esse dia, quando recebia a visita dos seus amiguinhos da escola, a menina abria, orgulhosamente, a caixinha de madeira.
As outras crianças ao verem que, onde devia estar uma pequena bailarina, estava um tomate a rodar, e para mais ao som de tão suave melodia, ficavam encantadas.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Vieira

O cinzeiro improvisado
era uma concha de vieira
que recebeu
para um alojamento de meses
um pequeno papel,...
sobras de uma embalagem
de sedoso sabonete.
Nem sabíamos se daria para escrever.
Guardou-nos,
aquele tempo todo,
uma palavra solta, muito normal
escrita em tinta vulgar,
mas naquela altura
suspeitámos
provir de um mundo diferente.
O sol,
teimosamente a incidir
sobre o parapeito,
assimilou-a
deixando-a praticamente invisível
para percebermos,
de uma vez por todas,
que aquela palavra
e os seus átomos instáveis
são a medida de um tempo
inexistente.

Urgência (EI)

Não tenho nada, assim,
com muita #urgência
para fazer.
Por isso
vou ficar aqui esparramada ...
a escrever
(o que me apetecer)
e verifico, satisfeita,
que
com duas ou três palavras
apenas,
transformei
o imediato da urgência
na lentidão do lazer.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Quarta dois (EI)

Porque coxeia, a centopeia?
Danificou a #quarta pata
do lado direito
de quem olha para ela.
Do outro lado, ...
diametralmente oposto
mas de algum modo
aleatório
a mesma pata, a quarta,
só que desta vez
facilmente observada
pela própria.
Donde,
sem grande esforço
se entende a relevância
da obrigatoriadade
de usarem as centopeias
espelhos retrovisores

Quarta

Não foi quarta-feira,
lamento,
foi sim no sábado
que, de olhos abertos
projetou no teto...
branco (como a maioria dos tetos),
uma floresta
de faunos encantados
de felinos silenciosos
de árvores sussurrando
o mesmo
que vem nos livros,
folhas falantes
discursos incompreensíveis
e água invisível
de forte corrente
transparente
no teto branco.

Rimini

  Não fosse o caso da menina ter uma estatura tão pequena, bem esticadinha media apenas um centímetro, Rimini, assim era o nome dela, demonstrava ser uma criança em tudo normal.
  A maior parte das vezes usava um vestidinho encarnado, e, quando chovia, abrigava-se debaixo de uma das múltiplas folhas que profusamente existiam naquele quintal.
  Até aqui nada de extraordinário, quantas vezes já nos deparámos, nas histórias para crianças, com personagens minúsculos, ou, pelo contrário, gigantes transfigurados, partindo sempre da nossa base mais que sólida, assente numa estatura dita normal, não havendo, portanto, para esta criança, qualquer desproporção.
  A verdade é que a realidade era daquele tamanho, e não se espantava, como nos espantaríamos nós, se as gotas de chuva, fossem muito gordas e altas, e contivessem reflexos de aurora boreal.
  Certo dia, em que mais uma vez observava o enorme pingo pendurado de forma instável, na pontinha da folha de borragem, por baixo da qual se encontrava abrigada, Rimini, muito a medo, não fosse aquele enorme depósito de água rebentar e a levar na enxurrada, esticou uma perna, e, com o pé, bateu devagar na parede cristalina.
  Mas aconteceu o que a inocente criança não esperava, e ainda para mais assim tão pequenina. A cápsula de água não ofereceu qualquer resistência, e, a miúda, curiosa, acabou por entrar.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Lustre (EI)

Quando eu era miúda havia um #lustre lá em casa.
De vez em quando calhava-me limpá-lo, uma espécie de tortura chinesa que me inflingiam, sem qualquer necessidade, já que havia uma pessoa paga para limpar.
Era, portanto, pura maldade, e eu olhava para o teto e via aquele pequeno monstro, com dezenas de penduricalhos e outras pecinhas malvadas.
Mas como, e muito justamente, os estudos estavam naquela casa sempre em primeiro lugar, meia hora depois de iniciada a tarefa, já eu estava sentada em frente à escrivaninha ( ninguém se senta frente a uma coisa destas, hoje em dia, é mesmo do tempo dos lustres), com um livro aberto à minha frente, e não raras vezes, sobre a matéria obrigatória, disfarçado, um outro livro dos meu interesses.

Mátria

Eu bem o vi,
imóvel,
apoiado
numa só perna
esguia
e alta.
Rodava o pescoço
cento e oitenta
graus
como as aves
enquanto cantava,
convenhamos,
divinamente:
Celina pátria
nodosa,
ureia e creatinina,
e mátria polpa
pomposa
e sátira à música
lírica,
e pânico satânico
do muito medo
merdoso.
Lá lá lá
Lá lá lá!
Repetiu, cantando,
vezes sem conta,
o mesmo,
e de repente desapareceu.

Nívea (EI)

Sentado na toalha, apoiado nos braços, com o sol a incidir sobre toda a superfície da sua redonda e lustrosa barriga, observava um jogo de voleibol que umas catraias e uns catraios se entretinham a jogar.
De um dos lados, a esposa, esticada de costas, quase a dormir, naquela letargia provocada pelo calor, do outro, o creme solar #Nívea, com fator de proteção 30 Plus, meio enterrado na areia.
"Joca", chamou suavemente a senhora, quando acordou daquela sonolência, por se te...r lembrado do problema da escolha do jantar.
O Joca olhou para o lado, gesto que não passou despercebido a uma das jogadoras, talvez a mais habituada a jogos com bolas, e também de exímia pontaria.
Calculou a distância do mirone, o efeito do vento na trajetória, e vai de lhe acertar com o projétil em cheio.
"Fds"
"Francamente, Joca, nunca se pode falar contigo!"

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Kai

  Mais visíveis à noite, os anúncios luminosos, placas de néon, números atómicos de cores vivas, que mudavam a cada três segundos.
  A televisão publicitava a toda a hora, e hologramas enchiam os estádios no intervalo dos jogos.
" Nova livraria. Magnífica livraria universal abre já este mês. Grande inauguração no dia 21."
  Como pode ser? Como não vê #Kai, neste negócio, um nado morto? Porquê?
  Pareceu-me de bom tom, meu dever, até, avisá-lo do prejuízo latente, falar-lhe do dinheiro já gasto, desperdiçado, deitado fora.
  Os écrans enchiam-se de frases, curtas, com o propósito de facilitar a leitura. Frases mágicas, enigmáticas, e usavam todo o tipo de palavras, umas rugosas, outras macias, mais ou menos consistentes.
  Havia até um concurso a decorrer: "Se fosse sua, que nome lhe daria, à nossa livraria?"
  "Livraria de todos."
  "Partilhe connosco os segredos da imaginação do homem!", e as letras negras sobressaíam sobre um verde incandescente.
  "Venha!", e o "venha" era forte e intensamente laranja.
  Oh! Como não vê a morte anunciada? O espaço sem ninguém logo nos primeiros dias?
  "Sabia que os livros protegem do calor e do frio?"
  "Viva outras vidas para além da sua!"
  "Atendimento personalizado. Diga-nos quem é, e dar-lhe-emos o livro que o mudará para sempre!"
  Mas como não vê Kai, que nem sequer ele existe?

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Venezuela (EI)

Que possa brincar
com a #Venezuela
parti-la, desfazê-la,
a ela.
Vene, zu...
o que fazes tu,
e em que mundo?
A falar sózinha,
no fundo,
no fundo

Yemanjá (EI)

Emerge ou não
#Yemanjá
sem provocar
movimento
na superfície da água? ...
E veste ou não
um vestido azul,
em que os véus são azuis,
e já agora,
também os mantos.
Ou violeta,
dependendo da incidência
do sol.
E o tecido?
Será que é mesmo
impermeável?

Alternativa

O dia era de abril, com os primeiros calores do ano, o céu limpo e azul. O mar, visto da janela, espelhava a claridade desse céu, a vila branca acordava tranquila e vagarosa, com o som de um ou outro automóvel, uma ou outra gaivota planando, e as andorinhas no seu rápido e alegre bater de asas, acabadinhas de chegar.
A mulher chegou-se à varanda, para melhor observar. Era seu objetivo absorver o máximo possível do luminoso da manhã, dos barquinhos de pesca, lá longe, pespontando a imensa mancha de água.
Todos os anos era assim. Um tempinho livre, a marcação de um hotel, uma varanda.
Antes, as viagens infinitas na areia, a buscar baldinhos de água para construir castelos, para encher os fossos, as preocupações com eles adolescentes, ou com alguma doença mais persistente.
O amor, o ódio, a raiva, o tempo, tudo ali contido, no irrisório do seu corpo, ou, em alternativa, em segredos lançados ao mar.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Ninho

Era uma vez uma cegonha daquelas que transportam os recém nascidos.
Um dia, numa das suas viagens, apaixonou-se pelo bebé que trazia dentro do lençol atado em concha, e bem preso pelo bico.
Então resolveu ficar com ele, e não o colocar, como habitualmente, em frente a uma porta principal.
Era muito gorducho e bonito, e, ao contrário dos outros, não dava aqueles gritos agudos, não cantava portanto, como não cantam nem as cegonhas, nem os cegonhos, nem os seus filhos.
Pousou-o no ninho, desatou o nó difícil de quatro pontas, dobrou o lençol, que prendeu entre dois cabos elétricos, colados à sua casa redonda e sem teto, a vinte metros do chão.
Quando teve que o alimentar, não foi fácil. Ele não comia as minhocas tão boas que lhe trazia, teve que roubar leite quente que transportava no bico.
Com o passar dos meses a criança conseguiu finalmente pôr-se de pé, e, quando o fez, chegou-se à beira daquelas paredes de palha para, curiosa, espreitar os campos de trigo à sua volta, e toda aquela imensidão de espaço.
Cá em baixo, num carreiro de pedra por entre a folhagem, passava, montado na sua bicicleta, o Manel Boné.
Quando olhou para cima e viu a cabeça do miúdo, chamou de imediato os bombeiros, que o resgataram com sucesso

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Orientação


 Era uma vez uma formiga, que carregava uma espiga muito maior que o tamanho do seu próprio corpo.
Apesar de não ser muito pesado, aquele pedaço de erva seca ocupava muito espaço, e prendia-se em todo o lado.
De forma que a formiga perdeu a orientação completamente, e andava à nora, parecia uma baiana sob o efeito do alcool, a dançar no muro onde eu estava sentada, a observá-la.
Como muito me afligem as aflições, vi-me na obrigação de lhe dar uma ajuda, mas não é fácil ...ajudar uma formiga, por ser muito pequenina.
Abordei-a, ela espantou-se, é claro. Nunca lhe tinham falado diretamente, mas agradeceu, num português quase perfeito.
Muito obrigada.
Não tem de quê. Gosto de ajudar formigas desnorteadas.
E dei-lhe a mão, para a levar de volta ao carreirinho

Neutro

Um grito bonito
impercetível, escarlate
o vento em brisa
que sopra tão lento
quase neutro
num sonho em sépia
carregado de pontos
de outra cor.
Qualquer.
O dia intenso
desajustado do tempo
infinito
que se leva
a adormecer.

Rato (EI)

Ninguém soube ao certo como as coisas aconteceram, mas parece que, quando a montanha pariu um #rato, as dificuldades foram enormes.
Primeiro, a montanha nunca tinha parido, e por isso custou-lhe horrores.
Segundo, o suposto pai, um monte altíssimo e apaixonado, percebeu que tinha sido enganado assim que viu o filho nos braços da mãe.
"Eu não sou o pai desta criança!" bramou enfurecido. Claro que a nós, singelas criaturas da natureza, nos pareceu uma simples trovoada.
Mas ...como as montanhas, os montes e os vales, duram eternidades, e o tempo tudo cura, a questão acabou por ser esquecida.
O problema, e foi-me revelado por fonte segura, é que a montanha está agora grávida de um cão vadio.

Termalismo

Um casal meu conhecido era adepto fervoroso do termalismo. Os senhores iam de férias, muitas vezes, precisamente para umas termas, já que é disso que estamos a falar, e não tendo, evidentemente, qualquer interesse mencionar quando passavam quinze dias na Praia da Rocha, ou iam comprar caramelos a Badajoz.
Este casal, conhecia-os bem, gozava de perfeita saúde, mas os anos foram passando e acabaram por morrer de velhice, que, como sabemos, acaba por ser um acontecimento inevitável.
E mais. Não tendo, por teimosia, frequentado nenhumas termas que ajudassem à sua saúde mental, na verdade também não há muitas, e nem toda a gente consegue passar uma semana com a cabeça debaixo de água, os seus últimos dias foram de gritos, literalmente, chamando ele por uma tal de Aurora, completamente desconhecida para a família, e ela por um tal de Asdrubal, que ainda se conseguiu associar a um padeiro da aldeia, do tempo da Grande Guerra

Venezuela (EI)

Que possa brincar
com a #Venezuela
parti-la, desfazê-la,
a ela.
Vene, zu...
o que fazes tu,
e em que mundo?
A falar sózinha,
no fundo,
no fundo...

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Joaninha ( ou Otto)

  Subiu as escadas com cuidado. Primeiro um pé, depois o outro no mesmo degrau, enquanto que, com a mão direita, inesperadamente forte, segurava com vigor o corrimão.
  Abriu a porta de casa, fechou-a, rodou a chave, devagar, em três voltas, e estava a dirigir-se para a televisão, com a intenção de a ligar, mas a sua atenção foi despertada pela luz que iluminava a sala.
  Do outro lado da rua, #Otto foi surpreendido pelo enorme clarão que  apareceu na janela.
  Abriu a porta da rua, desceu os quatro degraus, e saíu pelo portão, encaminhando-se apressadamente na direção da luz de fogo.
  A uma distância razoável a multidão observava, comentando:
  Não estava ninguém lá dentro, felizmente! Começou no piso dois!
  Furou por entre as pessoas, parou o mais próximo que lhe foi permitido, e olhou, com a luz refletida nos olhos respeitosos.
  "O piso dois..., só labaredas..." Uma azáfama de corajosos bombeiros, a polícia marcando a área, e as imponentes chamas, deusas escarlates, soberbas, a iluminar aquele pedaço de noite sem vento.
  Um calor medonho!
  O velhote puxou uma cadeira, sentou-se, e encostou a cabeça ao caixilho da janela, olhou para baixo e percebeu, satisfeito o movimento do vizinho. Deixou-se ficar ali sentado, queria ver o espectáculo, e podia demorar uns minutos, ou horas. Nem sabia quanto tempo faltaria para que regressasse a paz, e com ela as libertadoras colunas, voláteis rolos de fumo, densos e negros.
  Mais tarde Otto fez o caminho de volta, com a fuligem no ar e sobre os carros, transfigurando as magnólias, os plátanos, sujando os quatro degraus e a porta.
  Quanto a ele, levantou-se e arrumou a cadeira no sítio. Verificou que nos dois copos sobre a mesa ainda havia algum brilho refletido, pelo menos assim o desejava, e deixou-os ficar, assim bonitos.
  " Hoje não, que já é tarde, mas amanhã Otto virá cá, para me contar tudo".

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Tempo de inclusão

Escuta,
porque no tempo das joías
pulseiras em prata
em pulsos
que caíem\ nos punhos brancos
braços e braços
pescoços de cisne.
Movimentos destemidos
tecidos em tule
e em luta
nos nervos, nos músculos
dançando elegância.
Rodando, rodando....

E o relógio, tic tac
o espetáculo,
e cabeças e corpos, cansados
esmorecidos
e o gato pendurado
nas cortinas.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Otomanos (Encic.)

Alguns homens desse povo de que falamos, viviam dentro dum livro de história universal, numa prateleira de sala. À noite, quando toda a gente dormia, saíam do livro e iam dar um passeio. Voltavam ao anoitecer.
Acontece que numa noite se enganaram e, ao regressar, meteram-se dentro de um livro de culinária.
A mãezinha, depois da cozinha arrumada e tudo limpinho, passou as mãos pelo avental, e procurou no livro a receita de entremeada que queria preparar no dia seguinte, com... o intuito de verificar se tinha todos os ingredientes.
Qual não é o seu espanto quando vê na fotografia da página vinte e três, dois #otomanos a espreitar por trás de uma chávena.
A senhora, que não bebia, nem fumava, nem comia qualquer espécie de cogumelos, precisamente com medo das alucinações, percebeu que só podiam ser coisas da sua cabeça e resolveu, conscientemente, tomá-los por azeitonas.