segunda-feira, 29 de maio de 2017

Venezuela (EI)

Que possa brincar
com a #Venezuela
parti-la, desfazê-la,
a ela.
Vene, zu...
o que fazes tu,
e em que mundo?
A falar sózinha,
no fundo,
no fundo

Yemanjá (EI)

Emerge ou não
#Yemanjá
sem provocar
movimento
na superfície da água? ...
E veste ou não
um vestido azul,
em que os véus são azuis,
e já agora,
também os mantos.
Ou violeta,
dependendo da incidência
do sol.
E o tecido?
Será que é mesmo
impermeável?

Alternativa

O dia era de abril, com os primeiros calores do ano, o céu limpo e azul. O mar, visto da janela, espelhava a claridade desse céu, a vila branca acordava tranquila e vagarosa, com o som de um ou outro automóvel, uma ou outra gaivota planando, e as andorinhas no seu rápido e alegre bater de asas, acabadinhas de chegar.
A mulher chegou-se à varanda, para melhor observar. Era seu objetivo absorver o máximo possível do luminoso da manhã, dos barquinhos de pesca, lá longe, pespontando a imensa mancha de água.
Todos os anos era assim. Um tempinho livre, a marcação de um hotel, uma varanda.
Antes, as viagens infinitas na areia, a buscar baldinhos de água para construir castelos, para encher os fossos, as preocupações com eles adolescentes, ou com alguma doença mais persistente.
O amor, o ódio, a raiva, o tempo, tudo ali contido, no irrisório do seu corpo, ou, em alternativa, em segredos lançados ao mar.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Ninho

Era uma vez uma cegonha daquelas que transportam os recém nascidos.
Um dia, numa das suas viagens, apaixonou-se pelo bebé que trazia dentro do lençol atado em concha, e bem preso pelo bico.
Então resolveu ficar com ele, e não o colocar, como habitualmente, em frente a uma porta principal.
Era muito gorducho e bonito, e, ao contrário dos outros, não dava aqueles gritos agudos, não cantava portanto, como não cantam nem as cegonhas, nem os cegonhos, nem os seus filhos.
Pousou-o no ninho, desatou o nó difícil de quatro pontas, dobrou o lençol, que prendeu entre dois cabos elétricos, colados à sua casa redonda e sem teto, a vinte metros do chão.
Quando teve que o alimentar, não foi fácil. Ele não comia as minhocas tão boas que lhe trazia, teve que roubar leite quente que transportava no bico.
Com o passar dos meses a criança conseguiu finalmente pôr-se de pé, e, quando o fez, chegou-se à beira daquelas paredes de palha para, curiosa, espreitar os campos de trigo à sua volta, e toda aquela imensidão de espaço.
Cá em baixo, num carreiro de pedra por entre a folhagem, passava, montado na sua bicicleta, o Manel Boné.
Quando olhou para cima e viu a cabeça do miúdo, chamou de imediato os bombeiros, que o resgataram com sucesso

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Orientação


 Era uma vez uma formiga, que carregava uma espiga muito maior que o tamanho do seu próprio corpo.
Apesar de não ser muito pesado, aquele pedaço de erva seca ocupava muito espaço, e prendia-se em todo o lado.
De forma que a formiga perdeu a orientação completamente, e andava à nora, parecia uma baiana sob o efeito do alcool, a dançar no muro onde eu estava sentada, a observá-la.
Como muito me afligem as aflições, vi-me na obrigação de lhe dar uma ajuda, mas não é fácil ...ajudar uma formiga, por ser muito pequenina.
Abordei-a, ela espantou-se, é claro. Nunca lhe tinham falado diretamente, mas agradeceu, num português quase perfeito.
Muito obrigada.
Não tem de quê. Gosto de ajudar formigas desnorteadas.
E dei-lhe a mão, para a levar de volta ao carreirinho

Neutro

Um grito bonito
impercetível, escarlate
o vento em brisa
que sopra tão lento
quase neutro
num sonho em sépia
carregado de pontos
de outra cor.
Qualquer.
O dia intenso
desajustado do tempo
infinito
que se leva
a adormecer.

Rato (EI)

Ninguém soube ao certo como as coisas aconteceram, mas parece que, quando a montanha pariu um #rato, as dificuldades foram enormes.
Primeiro, a montanha nunca tinha parido, e por isso custou-lhe horrores.
Segundo, o suposto pai, um monte altíssimo e apaixonado, percebeu que tinha sido enganado assim que viu o filho nos braços da mãe.
"Eu não sou o pai desta criança!" bramou enfurecido. Claro que a nós, singelas criaturas da natureza, nos pareceu uma simples trovoada.
Mas ...como as montanhas, os montes e os vales, duram eternidades, e o tempo tudo cura, a questão acabou por ser esquecida.
O problema, e foi-me revelado por fonte segura, é que a montanha está agora grávida de um cão vadio.

Termalismo

Um casal meu conhecido era adepto fervoroso do termalismo. Os senhores iam de férias, muitas vezes, precisamente para umas termas, já que é disso que estamos a falar, e não tendo, evidentemente, qualquer interesse mencionar quando passavam quinze dias na Praia da Rocha, ou iam comprar caramelos a Badajoz.
Este casal, conhecia-os bem, gozava de perfeita saúde, mas os anos foram passando e acabaram por morrer de velhice, que, como sabemos, acaba por ser um acontecimento inevitável.
E mais. Não tendo, por teimosia, frequentado nenhumas termas que ajudassem à sua saúde mental, na verdade também não há muitas, e nem toda a gente consegue passar uma semana com a cabeça debaixo de água, os seus últimos dias foram de gritos, literalmente, chamando ele por uma tal de Aurora, completamente desconhecida para a família, e ela por um tal de Asdrubal, que ainda se conseguiu associar a um padeiro da aldeia, do tempo da Grande Guerra

Venezuela (EI)

Que possa brincar
com a #Venezuela
parti-la, desfazê-la,
a ela.
Vene, zu...
o que fazes tu,
e em que mundo?
A falar sózinha,
no fundo,
no fundo...

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Joaninha ( ou Otto)

  Subiu as escadas com cuidado. Primeiro um pé, depois o outro no mesmo degrau, enquanto que, com a mão direita, inesperadamente forte, segurava com vigor o corrimão.
  Abriu a porta de casa, fechou-a, rodou a chave, devagar, em três voltas, e estava a dirigir-se para a televisão, com a intenção de a ligar, mas a sua atenção foi despertada pela luz que iluminava a sala.
  Do outro lado da rua, #Otto foi surpreendido pelo enorme clarão que  apareceu na janela.
  Abriu a porta da rua, desceu os quatro degraus, e saíu pelo portão, encaminhando-se apressadamente na direção da luz de fogo.
  A uma distância razoável a multidão observava, comentando:
  Não estava ninguém lá dentro, felizmente! Começou no piso dois!
  Furou por entre as pessoas, parou o mais próximo que lhe foi permitido, e olhou, com a luz refletida nos olhos respeitosos.
  "O piso dois..., só labaredas..." Uma azáfama de corajosos bombeiros, a polícia marcando a área, e as imponentes chamas, deusas escarlates, soberbas, a iluminar aquele pedaço de noite sem vento.
  Um calor medonho!
  O velhote puxou uma cadeira, sentou-se, e encostou a cabeça ao caixilho da janela, olhou para baixo e percebeu, satisfeito o movimento do vizinho. Deixou-se ficar ali sentado, queria ver o espectáculo, e podia demorar uns minutos, ou horas. Nem sabia quanto tempo faltaria para que regressasse a paz, e com ela as libertadoras colunas, voláteis rolos de fumo, densos e negros.
  Mais tarde Otto fez o caminho de volta, com a fuligem no ar e sobre os carros, transfigurando as magnólias, os plátanos, sujando os quatro degraus e a porta.
  Quanto a ele, levantou-se e arrumou a cadeira no sítio. Verificou que nos dois copos sobre a mesa ainda havia algum brilho refletido, pelo menos assim o desejava, e deixou-os ficar, assim bonitos.
  " Hoje não, que já é tarde, mas amanhã Otto virá cá, para me contar tudo".

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Tempo de inclusão

Escuta,
porque no tempo das joías
pulseiras em prata
em pulsos
que caíem\ nos punhos brancos
braços e braços
pescoços de cisne.
Movimentos destemidos
tecidos em tule
e em luta
nos nervos, nos músculos
dançando elegância.
Rodando, rodando....

E o relógio, tic tac
o espetáculo,
e cabeças e corpos, cansados
esmorecidos
e o gato pendurado
nas cortinas.