segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Casas

 Casas. 

Monstros solitários espalhados pela serra, espreitanto, 

envelhecidas pela floresta imparável, 

essa que cresce em sintonia com as décadas e com as coisas abandonadas. 

Um dia,

resolvem ganhar vida através das imperfeições que o tempo lhes concedeu. 

Um buraco no telhado, a intensidade da chuva de inverno batendo com a força de um Hércules, 

nos telhados, 

nas portadas de madeira, 

que cedem pelas dobradiças e quase tombam no chão. 

Entra uma brisa em círculos imutáveis pelos fios das aranhas

encontra-se por todo o lado. 

acumula-se no orvalho impenetrável da manhã, 

deixa-se bordar por entre os galhos indomáveis,

onde brilham as suas gotas no desconforto das folhas desconfortáveis,

até  o céu se tornar de um cálido azul impossível.

Casas

que suportam, ainda, milhões de passos fantasmagóricos, 

comidas cheirosas em panelas de ferro, 

vassouras que varrem o chão novo e encerado,

as paredes negras de cinza negra, 

as arcas de sotão nos cantos, 

e as nascentes límpidas e frescas dos caminhos, 

rios de salgueiros perseguindo um troço de riacho, 

como uma roupa envolvente e protetora.

As pedras, blocos de granito mudos  há muito, 

pois não sentem nenhuma vida dentro delas, 

não as há, as crianças cristalinas,

nem os resmungos do velho impaciente para as aquecer,

 nem se recordam, tão pouco, de quem ali os colocou, uns sobre os outros 

até ao sotão  das patas dos pássaros a crepitar nos silêncios da telha seca.

Casas.

 As auras dos felizes habitantes foram

as promessas de uma luz sem fim e de um calor proveniente dos cabelos de uma criança,

enfeitados com violetas bravas presas à bandolete.

Até os dois  pinheiros perderam  a pose toda,

invernos de vento cíclico  espalhando por todo o lado as gotas de água acumuladas nas rendas do seu vestidos verdes,

atingindo as gabardinas de quem passa.

Admiravam as últimas flores, aquelas que o inverno se ia esquececendo de levar.

Casas

permeáveis, 

sensíveis às estações do ano, aos soís abrasadores,

aos temporais e aos jardins arrancados das memórias, intactos,

como se o tempo não  existisse assim.







domingo, 22 de novembro de 2020

 _Sabes o que é, Celeste, é que as pessoas são curtas de vista e franzem os olhos para nos ver, e às vezes até param um bocadinho para se concentrarem melhor. Quanto mais olham, mais curiosas ficam. Esta gente é  muito curiosa, realmente, Celeste. Não têm que fazer, se tivessem não ficavam tão entretidas connosco. Mas deixa lá. Olha ali._

Isilda apoiou-se numa das canadianas e levantou a outra para apontar na direção que pretendia.

_Aquilo não são #demagogias? Olha que são... Eu conheço a árvore.  A minha avó tinha uma. E se eram boas! Era a única na aldeia, ninguém mais conseguiu, por causa da geada. Queimavam todas. Mas aquela estava ali num canto, protegida, e ia-se safando. Agente sentávamo-nos lá debaixo e era com cada barrigada, que nem te conto. Frescas, sumarentas! Cruzes! Que maravilha!

Vamos lá perto, para eu ver melhor.  Anda daí, olha, pois são. Prova lá. Ah! Vês? Até reviras o pescoço para trás. Ó Celeste, calma. Espera lá. Olha que te magoas. O pino ainda podes fazer, mas um mortal à retaguarda, já não tens idade. Pára lá, por favor. Levas com a canadiana! Se isso te acalmar, não hesito Não comas mais! Pareces  louca. Se calhar é alguma  alergia. Lá estão eles a olhar. Não percebo. Coscuvilheiros, pá... É lá, meninos, estão a ver o quê? Ajudem-me a agarrar a minha amiga. Ó Celestino, também aí estás? Ajuda-me aqui a segurar a tua avó. Não? Ok... Eu também não quero saber, então. Olha onde ela já vai, no fundo de vila, E eu ralada. Tu é que és família. Pronto, claro, tinha que ser. Ficou presa nas silvas. Assim, acaba por sossegar. Vou para casa.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

 Sempre fora assim. Lá fora rastejavam criaturas cinzentas camufladas pelas sombras da noite e ele, sentado à secretária, olhando-me por cima dos óculos.

_Então, menina? O que foi hoje?__

_Os cavalos selvagens dormitam debaixo do salgueiro grande, os ratos atravessam o caminho de terra batida, o cão do Anselmo ladra  à passagem do fantasma da casa branca, enquanto o fantasma segue a sua vida, indiferente ao nervosismo do animal causado pela sua presença. Os pirilampos tentam, em vão iluminar as ervas,  a aldeia dormita sem grandes precalços, tudo está pousado tranquilamente na página doze, nem uma página para trás, nem uma para a frente, Só um livro é que ficou na beira da cama e a criança, ao mexer o braço, bateu-lhe com o cotovelo e ele caíu ao chão, mas nem se abriu, nem se estragou, impecável. Amanhã alguém o há-de apanhar e colocar no sítio._

Depois de acabar a explicação, senti-me um pouco nervosa. Intuía que não lhe ia agradar a incorreção do procedimento, sabia, por ocasiões idênticas, que bastava um pormenor para desiquilibrar a sua suavidade, o seu ar bondoso, a total disponibilidade que demonstrava no seu papel de guardião, 

De facto, não podia ter sido mais expressivo, nos pequenos trejeitos, no levantar quase impercetível de uma das sobrancelhas, no lábios que pareciam tornar-se  mais finos, talvez pela contração involuntária dos cantos da boca. 

Endireitou um pouco os óculos num tique que já lhe conhecia, óculos esses que, aliás, acabavam por ficar quase sempre na mesma posição, e perguntou secamente

_Porquê? Porque não trataste logo de corrigir essa situação, não desfizeste o erro?_

_Não tive tempo._ Justifiquei-me como pude,_ Ainda voei até cá, no nosso mais veloz cavalo alado, galopei até sobre as nuvens, mas não cheguei a tempo. Vai ter de ficar assim para amanhã de manhã. As minhas desculpas._

_Atentas contra as nossas vidas, deixando a possibilidade de deitarem o livro fora, ou de o estragarem de alguma forma. Viste qual era? Nem importa, isso. Se não formos nós, será pelo menos um do nossos,

_Acaso queres desaparecer do planeta? Onde estiveste? Imagino. Junto ao riacho zumbidor, conversando com os faunos, perdendo tempo, distraída, e em todo o lado tudo a poder acontecer. Tens que estar mais atenta. É só o teu papel. Está explicado na página vinte, acompanhado de umas das mais belas ilustrações que já vi. E estamos lá, embora muitas vezes a nossa existência permaneça nas folhas, ou se esconda atrás das árvores e das aguarelas do rio, e ninguém dê por nós._

_A estátua de bronze da praça da aldeia não parece descontente por acordar durante a madrugada e estar umas horas bem viva, os gatos pretos  vieram, em conjunto, dar-me os parabéns pela liberdade. Desacorrentá-los das folhas não me pareceu nada mal._ respondi, sem medos, irritada com a sua prepotência.

Levantou-se bruscamente da cadeira. O seu aspeto débil e envelhecido não faria supor movimentos tão ágeis, mas, a verdade é que no espaço de um escasso segundo estávamos frente a frente. Falou-me com a voz alterada, o meu atrevimento era imperdoável, Nada era, afinal, mais importante do que preservar a eternidade dos personagens.

_Sais agora mesmo e vais colocá-lo no sítio. Acordas alguém naquela casa, pode ser a criança, pode ser um dos pais, ou o irmão, e farás com que passem pelo livro e o apanhem do chão. Se vires uma menina de laçarote vermelho armada em curiosa, bisbilhotando todos os cantos, agarras nela e conduze-la para dentro das páginas. É lá que ela pertence. Só tens que te introduzir sorrateiramente nos sonhos de um deles. Tu sabes fazer isso. E até muito bem._

O elogio amansou-me um pouco. Anuí em sair outra vez para  rondar as criaturas adormecidas, as paredes cinzentas dos edifícios, até chegar ao quarto, apanhar o livro de alguma forma, e procurar a criança intocável e eterna que não deve abandonar a sua história.  Percebi, do que me fez entender, que o meu papel como seu braço direito, não podia falhar, ainda que para isso prescindisse da minha própria liberdade.

Esfumei-me em neblina e  percorri as ruas e os caminhos do lugar. Entrei pela janela semi aberta da cozinha, passei pelas fresta entre a porta e o chão, e provoquei um pequena corrente de ar que içou o livro nas alturas como se tivesse adquirido asas no lugar das folhas. Após um esvoaçar hesitante pousou na beira da cómoda, onde havia um retângulo vazio, e onde haveria de esperar, depois de devidamente apreciado, pelo regresso ao espaço na estante que lhe era dedicado.

_Não te esqueças, apanha a rapariga do laçarote._tinha-me gritado ainda, da porta da rua. _ Não se pode perder por aí, e logo ela, que sofre de curiosidade compulsiva. Apanha-se neste mundo, do lado de cá. E para mais com aquelas vestes impróprias, num instante dão por ela e caçam-na com uma rede de caçar fadas, que ainda é o que têm de mais eficaz._

A um canto escuro ao lado da janela, algo se moveu. Nesse movimento, um laço encarnado ficou visível, surpreendido pelo luar que entrava, opaco, pela janela. 

Os olhos inquiridores da menina encontraram, redondos, a inexistência dos meus, no meio da neblina artificial que me dava corpo.

Percebeu, sem quaisquer palavras, não eram necessárias, que alguém a iria privar da liberdade, obrigando-a a recolher à sua dimensão, e que esse alguém era eu, efémera e volátil, sem qualquer sentido ou noção de justiça, ou partilha da sua felicidade pela descoberta. A sua vida podia, afinal, não estar presa às garras de um livro.

E eu, não fui capaz de lho impôr o degredo, chamei, assobiando, o recém nascido dragão vermelho e pedi-lhe para a esconder, o tempo necessário até eu vencer o velho guardião. 


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

#  Visualizar   AtualizarUrucubaca ou Feitiçaria

 Recebeu-me com os modos que sempre lhe conheci.

 Polida, sorridente, evasiva, com um sorriso franco, não tão franco que não lhe reconhecesse uma certa invulgaridade, ou um segredo bem guardado, escondidos subtilmente naquele sorriso aberto, na voz límpida e serena, semelhante em tudo à das pessoas que nada têm a esconder. 

Tínhamos subido, eu atrás dela,  umas escadas estreitas e bonitas que davam acesso à habitação propriamente dita e que conduziam quase diretamente, apenas se atravessava em dois passos um pequeno hall iluminado artificialmente e que fazia brilhar o ambiente envernizado, a uma sala de grandes janelas que nos ofereciam a cidade inclinada deslizando até ali.

Eram tão enormes, as janelas, que me senti dentro de uma gota que tivesse levantado da terra, ou de uma folha pendente, devagar, desafiando as leis da gravidade, e pudéssemos viver dentro dela para ficarmos ali pendurados o tempo que nos aprouvesse, no meio de um sonho inquieto.

Curiosamente, e apesar de o edifício se encontrar na baixa da cidade, apenas a geometria dos telhados intercetava a paisagem que trespassava a transparência espessa do líquido das paredes, nada de portas que se vissem abrindo e fechando, nada de gente passeando, nada de árvores,  só as aves tocavam as pontas dos candeeiros nos seus passeios e  as pontas dos candeeeiros arredondavam de luz as telhas até ao topo do outro monte.

E havia uma cor violácea no céu, como nos países das noites invadidas pelos dias, esses países em que os dias engolem a escuridão deixando-a num tom indefenível.

Reparava eu que as lâmpadas elétricas ponteavam os vidros e todas as superfícies refletoras, reverberando pela encosta acima, potenciando a paisagem sonolenta pintada de ambar por todo o lado, ou em minúsculos pontos, ou com grandes pinceladas  sobre  o fundo azul e sobre as  cores do ocaso, roxo e cor de rosa,  enquanto ela me oferecia um chá, ou um café e deixava as suas pegadas silenciosas marcadas no chão impecavelmente macio.

O chá veio fumegante, duas mini piscinas de água quente e ocre em chávenas redondas dentro de um tabuleiro, aproximou-se do meu olhar pela janela, viu a minha curiosidade nas telhas refletidas no líquido da tisana, cujo aroma se insinuou pelo espaço.

O vidro transparente da água era tão fino, sem qualquer aresta, que me era impossível tirar os olhos delas, dessas cores oníricas que entravam e saíam da casa da mulher de sorriso aveludado.

Uma gaivota destacou-se da imagem por não lhe pertencer, não se misturava bem na miscelânea de tons violáceos e acinzentados, e tal como ela em dias de tempestade, ou pousada, ou andando na praia, na nossa real praia, cheia de sol, nas minhas noites escuras e amedrontadoras,em que se encostava a um beiral, ou dormitava ao sabor da ondulação do mar calmo, com as asas bem encostadas a si, os olhos fechados e as patas recolhidas, por isso se destacava, por lhe ser necessário o mar para viver feliz.

Quando falava, quando falava, a mulher dissemelhante salientava-se tal e qual como a ave, a sua voz inumana tilintava nos cristais. o chá substituía a falta de sol, a ausência da escuridão da noite mais escura, a madrugada sem sombras ponteadas e revivificadas pelos remorsos dos eternos amantes, crueís e em chamas, abraçados para lá do visível.

O céu teimava, em apoderar-se do quotidiano dos outros, a casa pingava brilho do primeiro andar daquela sala, não eram quaisquer águas furtadas, com diminutas entradas de luz, que nos propiciavam aquelas cores, 

Por ali, ela cirandava, sorrindo, como se a sua história fosse a mais importante de todas, e as suas cintilações elétricas fossem únicas, e os alaranjados fossem apenas seus, como se ninguém os tivesse verdadeiramente visto por outros lugares, 

Sensível às tonalidades invulgares da atmosfera e à acústica da sua voz, eu olhava, pasmada, para as linhas horizontais riscando as colinas e para a ausência de amarelo, recorria aos mais variados sentidos para entender a luz artificial, deixava-me encandear pelo extraordinário que brevemente  me encantou.

As flores vibrantes do seu vestido branco substituíam com exatidão as velhas flores do campo, inúteis e desaparecidas, não havia nenhuma em toda a região, podíamos comprová-lo ao rodarmos o corpo sobre nós próprios, trezentos e sessenta graus, e não encontrando uma só em todos eles.

Quando a gota de água não conseguiu suportar por mais tempo tamanhas impossibilidades, desceu, vertical e vagarosamente até ao chão.


 





 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Maquilhagem

 Eu focava os olhos nelas, naquela mancha viva e verde 

que bamboleva conforme as correntes de ar, 

via-lhes os movimentos infligidos pelo vento, 

via-lhes as caras de árvore, tristes no inverno.

e pesarosas no outono.

Via o chão repleto de folhas incómodas e multicoloridas, 

que as pessoas preferem, malogradamente, não pisar, 

não encher as sarjetas de mantos castanhos, 

que entopem as saídas de água, 

para os automóveis não avariarem nos charcos, 

para que a cidade de cimento não desapareça. 

Eu tinha as raízes iguais, por empatia com o seu silêncio, 

por simbiose com a sua seiva que parecia 

fluir-me nas veias sob a forma viscosa de sangue.

Distinguia-me da sua imponência 

 não porque não tivesse a terra presa aos pés, como elas, 

e as flores selvagens e miúdas espalhadas em meu redor, 

distinguia-me apenas quando, excecionalmente, 

dava uns passos curtos, incertos e particulares.

Revia-me na sua força, que rebenta as estradas, 

serpenteava com elas debaixo das construções 

na busca de minerais imprescindíveis para a minha subsistência.

Eu mirava-as, tornava-as meus ídolos, amava tudo quanto lhes respeitasse, 

os pássaros que as agitavam levemente, 

sentia-me tão prisioneira da sua imobilidade como elas, 

sentia igualmente a  sua impotência para fugir de uma guerra, 

de qualquer guerra pequena. 

Era tão vulnerável como um plátano adamastor, ou um velho castanheiro.

Gozava do sol, como se tivesse folhas perecíveis e galhos 

que formassem rendilhados 

indiscutivelmente belos no inverno, 

e também eu aproveitava os ocasos para me aquietar, 

para quadricular os raios de sol em milhares de joías luzidias nos dias brilhantes.

e também era eu que tinha folhas perdidas pela casa 

como o outono lá fora pertubaria as suas copas, agitando-as,

 para que as poucas palavras que ainda murmuram caíssem mortas.







 

 

#BELEZA

 Eu quero uma 

rocha

com a beleza 

do mar

em frente

para o olhar

por dentro

e esquecer-me

que existe

mais tempo,

só esse 

de contemplar.