segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Luz

A casita amarela, em tudo idêntica à sua, estava pintada de fresco. Tão fresco ainda que o gato, quando fora cheirar a tinta, tinha encostado o nariz à parede e aparecera à porta da cozinha com os bigodes pintados daquela cor.
O animal fcou um pouco aborrecido por ela se ter rido dele, percorreu um ou dois metros dos motivos geométricas e carcomidos dos mosaicos, subiu para a cadeira de madeira velha, e começou o seu ritual de limpeza,  humedecendo a pata com a língua a cada movimento,  e passando-a pelo focinho repetidas vezes até  ele voltar a ficar completamente limpo e lustroso.
Duas gotas de café  caíram em frente aos pés de Adriana. Foi buscar um pano,  baixou-se, limpou-as do chão e depois foi fechar a porta porque já ia entrando uma humidade desagradável.
Antes de fechar a porta totalmente, que guinchou como se lhe estivessem a pedir para fazer um trabalho difícil, 
Olhou de relance o espelho veneziano partido, pesado abandonado debaixo da buganvília  do canto, aquela que floria tanto, enroscada no seu velho suporte de metal ferrugento, crescendo ao sabor da sua liberdade, ha muito que deixara de a podar, apreciava vê-la impondo-se à ordenação  das coisas, espalhando desordenadamente os seus braços  lilazes no ar.
Ficara a ver os homens que arrumavam os materiais, na casa em frente, estava linda e pronta, a obra, usavam capacetes incrivelmente azuis, a relva era anormalmente verde, pelo menos para um dia de sol, a definir estupidamente as cores.
O dia acabou por passar, inteiro, e eles foram-se embora já os candeeiros da rua estavam acesos, uns quantos iriam ter com as suas famílias,  outros ainda iriam beber um copo para que a vida tivesse alguma coisa de liberdade. Puseram a carrinha a trabalhar e arrancaram, primeiro em primeira, depois em segunda e depois em terceira,  para, finalmente roncarem até ao cruzamento e desaparecerem numa perpendicular áquela rua. 
A sua sombra comprida se desvaneceu ocultando -lhe a continuação da viagem ficar completamente oculta pelas casas circundantes, até deixar de ser alcançável  aos seus olhos, ficaram só as luzes de outros automóveis, ou as que espreitavam de dentro da folhagem de algumas árvores,  ou as que se apresentavam-se nuas, iluminando o passeio, ou irradiando por ali. 
Adriana agarrou nas chaves de casa e meteu-as no bolso.
Voltou a abrir a porta e saíu.
O gato, que dormia fazia uns minutos, de sono leve ainda, abriu os olhos enviesados  para melhor perceber o motivo do ruído das chaves a tilintar.
Ficou assim, de olhos abertos e verdes, à sua espera.
A mulher chegou-se ao muro para espreitar melhor. O muro estava pintado de branco, a sua camisola pela altura da barriga, também ficara branca, mas ela nem deu por isso, só  reparou mais tarde, quando chegou a casa e se baixou para tirar os sapatos.
Na casa amarela acabada de pintar, estava um gato. Não  era o seu, porque o seu era preto e aquele tinha riscas. Nem ele a seguiria, preguiçoso como se tinha tornado ao longo dos anos. 
Movida pela curiosidade, atreveu-se a entrar pelo portão de ferro cinzento. O animal, que estava no quarto e último  degrau da pequena escada, igual à sua, o mesmo alpendre era assim a entrada de todas as casas do bairro, eram iguais todas as casas do bairro, saltou agilmente para dentro da escuridão. 
Adriana apreciou com admiração  o trabalho  bem feito. Era praticamente uma ruína e agora tinha um aspeto agradável e acolhedor. 
Por entre os arbustos, velhos pedaços de vida que passaram pela transformação  sem que os incomodassem, só de vez em quando eram cobertos por camadas de pó, mas a chuva encarregava-se de os limpar, bebiam a frescura do seu corpo em gotas alinhadas umas nas outras, que faziam os fios de água que passavam na estrada perderem a sua transparência e tornarem-se da cor do barro.
A terra líquida movia-se entre o passeio e a estrada, transportando sobras de areia e cimento.
Com muito cuidado onde colocava os pés, Adriana atreveu-se pela correnteza. Não  tinha o seu barco branco, mas tinha os seus pés de peixe, e as suas barbatanas. O miar do gato desconhecido continuava bem presente na sua cabeça. Talvez até fosse atrás dela, tão nítida era a sua voz.
O espelho que se encontrava à espera de ser recolhido para o lixo, num canto do jardim, engolia umas quantas reflexões  de pequenas vivendas junto à estrada principal e quando Adriana olhava para ele, via-lhe nitidamente  uma porta castanha, bem no centro, como se uma  espelho pudesse ter uma porta, como se arquitetos e engenheiros tivessem, virtuosamente, conseguido colocar uma porta no centro de um espelho.
Adriana voltou para casa. Tinha mandado arranjá-la, muito arranjadinha, os homens tinham acabado a obra naquele mesmo dia, ainda cheirava a diluentes e tintas, e outros materiais quimicamente modificados vogando sob a forma de aerossóis na atmosfera.
Naquele canto onde estava o espelho, a buganvília,  e um monte de outras tralhas sem importância, ouvia o gato das riscas, raspando a terra com as unhas, e miando aflitivamente. O seu gato preto continuava semicerrando os olhos em linha imaginária atento a todas as movimentações, a todos os sons, e fixando-os nalguns pontos imaginários. Espantosamente parecia não  se incomodar com os gritos do outro animal. Talvez não  os ouvisse.
As flores tinham -se virado de costas à sua passagem, mesmo as mais pequenas, nascidas de uma mãe  que teve de furar pelos espaços  entre as pedras para as parir. 



















sábado, 13 de fevereiro de 2021

O som do violino, arrastando a sua dor até  mim.
Dava-lhe a frescura do seu corpo a beber.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Sem Fronteiras

Se bem me lembro,
As velas derreteram sob o efeito da chuva ácida 
A paisagem ocre transportou numa folha de loureiro,
o cheiro do louvadeus qua ali pousara, instantes antes.
Essa árvore  vivia encostada a uma ribanceira, 
escura e afitivamente estática,
enquanto falava pelos cotovelos.
A fonte era mais à frente, era a nascente de água pura, 
que saía, e sai,  de uma fenda nas rochas.
Os cães ladravam tão longe, no silêncio, 
pareciam  animais selvagens 
anunciando qualquer coisa,
quem me dera que fosse a renovada  promessa das flores, 
um ano após o outro.
A estearina caíu-lhe no sapato e secou imediatamente, 
espalhou-se em redor formando flocos de neve.
Barbie sentou-se no chão, muito direita e desconfortável,  
de pernas esticadas na relva.
Nunca vi a Barbie assim.
O gato, com as suas patas mudas,
parecia o gato das botas 
aparecia subitamente de outros lugares,
ora estava em cima da mesa, ora no chão, 
ora saltava de móvel em móvel
ficando uns minutos a observar, do alto do armário,  
como se tudo aquilo fosse o seu reino,
o reino de um gato preto e forte.
Outra vez os violinos, o violono, melhor dizendo, 
arrastando a sua dor até  mim.
Bailava completamente invisivel na atmosfera, 
mas ouvia-se com nitidez.
A tempestade levou-nos as árvores,  e nós aqui, 
esperando por elas, 
ou confiando que as suas raízes mortas 
continuem a segurar a terra.
Até os meus livros, tenho ideia,
foram levados por ondas enormes,
como todos os  outros,
Estavam na praia a ver o luar maravilhoso dessa noite.
A cera derreteu devagar.
A vaga veio e levou-os para o mar alto,
para junto das sereias.












segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

O #Bule Azul

A rua não  tinha saída. Lá  em cima, na esquina da casa amarela, virava-se à direita e desciam-se trezentos metros, com muito cuidado nos dias de chuva porque o passeio era inclinado e escorregava muito. Por ali só passavam os automóveis  de quem habitava naquela rua, eventualmente uma ou outra escassa visita, um dos filhos do velhote da pequena quinta, a prima da Eduarda, sempre tão cuidadosa com uma senhora que vivia sozinha com algumas dificuldades, e, mais raro ainda, alguém que eu não  conhecesse, nem de vista, depois de tantos anos sempre atrás das mesmas janelas, desviando as mesmas cortinas.
Em boa verdade, também ninguém se atrevia a ir pelo meio da estrada, apesar do perigo não  ser  nenhum, por não  ter onde se segurar, pelo menos quando estava tudo encharcado, propício à queda, ninguém  se atrevia a caminhar longe das beiras dos muros, ou das hastes das trepadeiras que lhes acudissem a uma aflição 
Nesse dia, e apesar de ser a milionésima vez que andava a pé pelo passeio, habituadíssima à humidade escorregadia cobrindo todas as superfícies deixando-as melosas e traiçoeiras, deixei-me resvalar.
A queda não  foi violenta, ainda me agarrei ao galho de uma buganvília, mas  atrapalhei-me e e o que consegui foi apenas arrancar-lhe duas folhas que permaneceram na minha mão até ao fim.
Talvez a dinâmica do tombo tenha tido alguma coisa a ver com o facto de eu ter rolado pela rua abaixo, com os olhos fechados e os braços  a protegerem-me a cabeça, ou talvez em qualquer jeito, ou pose, aconteça, e a qualquer um, convenhamos que esta rua é mesmo muito inclinada, só sei que, pelo tempo que ia rebolando por ali fora, já  teria passado a minha vivenda há  muito, que fica equidistante entre a primeira das vivendas e o último portão, o que está  mesmo virado para a subida, sempre aberto, como se fosse a grande  boca de um animal grotesco, capaz de engolir tudo o que lhe apareça à frente.
A rua angulosa obrigou-me a continuar a rolar, a rolar, a rolar...
Passada uma infinidade de tempo, senti-me a diminuir de velocidade, quase parando,  sem que a minha vontade fosse responsável por qualquer dos meus movimentos, e, finalmente, embater contra algo bem sólido,  estancar, e parar por ali.
Abri os olhos e esfreguei o braço dorido do embate. 
Havia árvores majestosas para onde quer que olhasse, arbustos florindo para as abelhas e as abelhas iam e vinham pelos caminhos iluminados só pela beleza do sol. Havia  borboletas alegres que riam baixinho, pelo menos assim me pareceu, aproveitavam a última luz do dia, acompanhavam-me de perto o suficiente para as ouvir.
Decidi naquele momento ficar mais tempo para ver como seria a noite. Podia ter o privilégio  de ver os pirilampos luzindo nos cantos, ver as estrelas nuas, no céu.
Apertava conscientemente as folhas arrancadas à buganvília na minha mão direita, que eu não sou de me deixar enganar, e com a mão esquerda  livre, tocar as páginas interiores de veludo das videiras, com as suas uvas tremendamente roxas e redondas, em cachos de cristal.
Passaram talvez umas horas, quando resolvi retornar ao meu jardim, à minha sala de estar. A madrugada não  se tinha revelado tão encantadora como tudo me levara a crer, precisava descansar os olhos dos campos de azedas de todas as cores, do gato esfíngico olhando o mar, do muro em frente, da lua enorme espalhando aleatoriamente o seu mistério por todo o lado.
Havia algo de familar naquele lugar, embora, que me lembrasse, nunca lá houvera estado.
Percebi, após alguns minutos de confusão, ter entrado naquela quinta onde ninguém  se atrevia a ir. Diziam ser assombrada, mas assim numa primeira impressão, era dos locais mais aprazíveis de todos os que me foram dados a conhecer.
Confesso que me deixei ficar porque a  beleza das coisas era tanta que fiquei extasiada, nem me lembrei de feitiços  ou maldições, entrei pelas reentrâncias, pelas pedras escavadas em escada no meio do nada, bebi água duma fonte dourada, porque já estava com alguma sede, e segui caminho. 
Depois de várias voltas à toa, acabei por me perder.
Terei, talvez, adormecido escondida numa sombra, exausta e sem qualquer orientação. E assim, a dormitar levemente,  lembro-me vagamente de um vago sonho que sempre acabo por ter.