terça-feira, 31 de outubro de 2017

Bruxa (EI)

No reino imaginário de que vou falar, não era nada incomum ser-se #bruxa ou bruxo. Era, inclusivamente, coisa muito natural. Havia muitas e muitos, até em maior número do que as pessoas consideradas normais, e todos viviam tranquilamente, comungando aquela forma de estar, que misturava o mundo real com a fantasia.
No entanto havia uma, pelo menos uma, que não conseguia atingir qualquer felicidade. Pelo contrário. Procurava destacar-se das outras com os seus feitiços maléficos, treinava ao espelho esgares horríveis e gargalhadas atrozes, e tentava a todo o custo que as suas maldades superassem quaisquer outras , para reconhecerem nela a bruxa mais malvada de sempre, ou, no mínimo, uma grande bruxa malvada da atualidade.
Mas, como isso não acontecia, todos teimavam em considerar as suas patifarias dentro da média habitual das dos outros, e, tanto assim era que até comentavam  os seus feitos utilizando bastas vezes aquele sufixo irritante e redutor: "Olha, que bruxedozinho mais catita, ou então: bem fixe, o feitiçozinho que usaste contra a D. Deolinda, ela enchia-se de raiva, e, à medida que o tempo ia passando, tornava-se cada vez mais rezingona e azeda.
Não fossem os velhos amigos, que mantinha  há muitos anos, ainda do tempo da escola que tinham frequentado juntos há dois séculos atrás, e ninguém, mas mesmo ninguém, quereria saber de bruxa tão convencida, e da sua relativa importância.
Um dia, daqueles em que estava particularmente raivosa e inspirada, olhou para o mar, e com a ajuda de meia dúzia de palavras incompreensíveis e de uma varinha mágica, conseguiu deslocar a água do oceano atlântico para outro lugar, e aí sim, conseguiu provocar espanto, e todos comentaram: "A bruxinha moveu o mar, a bruxinha moveu o mar!"

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Abóbora (EI)

Debaixo da #abóbora, que eu apanhei do chão logo pela manhã ainda escura, estava uma minhoca.
Era bem bonita, e os seus olhos grandes e pestanudos olharam para mim, enquanto se espreguiçava esticando o corpo segmentado até conseguir equilibrá-lo no ar.
"Que horas são"?
Não é nada hábito que, quando vou apanhar abóboras, se ouçam vozes a saír da terra. Nada havia, por ali, que tivesse a capacidade de falar. Estava rodeada apenas das ditas abóboras e das suas folhas secas, um pouco mais à frente meia dúzia de tomateiros, uma oliveira, e um carreirinho de alfaces.
"Que horas são"?
Voltei a ouvir a mesma pergunta, mas desta vez a voz pareceu-me diferente, e provir de um outro lugar qualquer.
Confesso que comecei a ficar assustada.
Não via ninguém,  a pergunta, a essa altura, já se repetia por todo o quintal, e, estando completamente sózinha, comecei a ficar muito desconfortável.
Foi quando ouvi umas risadinhas, e, ao olhar para trás, consegui distinguir com alguma dificuldade uma sombra que me era mais do que familiar.
"Ah, és tu! Assustaste-me! Não tínhamos combinado já que só podes assombrar à noite? Não se pode confiar em fantasmas. Eu já sei isso há tantos anos, e continuo a insistir..."
"Não vês que estou baralhado com as horas? Que mau feitio"!
Desapareceu, e. pelo que me apercebo agora, muito zangado, porque nunca mais o vi.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Sintra, Outubro de 2017

Não consigo terminar o que tenho para te dizer.
Já tentei duas ou três vezes, mas, e presumo que este verão interminável tenha alguma coisa  a ver com isso, nem sequer consigo, competentemente, transmitir a nossa conversa aos outros e, de cada vez que o tento, arrependo-me alguns minutos depois,
A verdade, o facto inegável, embora eu possa ter alguma dificuldade em  explicá-lo, é que estou aqui sentada e tu estás à minha frente, e é por isso, e só por isso, que o meu pensamento deveria agora estar virado para uma qualquer coisa de maior utilidade, mas não me consigo abstrair.
Numa das situações, relatei, muito claramente, pensava eu, como é que os pássaros, que se escondem em ti, cantam alguns dos meus versos.
É claro que, quando reli o que tinha escrito, percebi como isso era uma teoria, para além de ridícula, completamente impossível. e eliminei tudo, confesso que até um nadinha envergonhada.
Também tentei mostrar o meu ponto de vista em relação áquela frieza que manténs no inverno. Parece~me lógico que estejas a concentrar as tuas forças para fazer frente às intempéries, e assim o disse, mas entendo agora que o expliquei muito mal.
Houve uma noite, já muito tarde, em que me apercebi de que que todos dormiam, menos nós. Então tratei logo de documentar o acontecimento, e relatei-o, mas não tinha interesse para ninguém, o que é perfeitamente compreensível, e acabou por se dispersar nos dias seguintes.
Se não acabamos a nossa conversa, antes que fiques silenciosa e cadavérica como é teu costume, não há possibilidade, sequer, de insistir nesta estúpida ideia de que as tuas aves se entrelaçam nas minhas palavras, e esse  fenómeno, tão bonito, não vou consegui nunca que alguém o ame com igual entusiasmo, e, obviamente, é daí que me ocorre uma certa tristeza e um certo sentimento de impotência,.
A janela fechada nunca constituiu, para nós, qualquer impedimento, por isso não entendo tanta falta de oportunidade, pelo que presumo que tenha a ver com o período de seca.
Ou então estás zangada, e não queres partilhar mais nada, só porque eu não sei transmitir convenientemente a tua beleza ao mundo.
Prometo, ficará tudo entre nós. Concordo, até, com essa solução,
Encaixa-se muito bem na  tua postura rígida, de árvore velha, imóvel há dezenas de anos, espreitando, insistentemente, pela minha janela da sala de estar.









quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Pássaro (Literatura e Ciência)

Ouço-te daqui!
Aproveitas a árvore frondosa
escondes-te na sua copa
e recitas aí um poema
com essa voz maviosa...!
Não me encantas, pássaro.
Nada de novo.
Esses versos que cantas
conheço-os bem,
eu mesma os escolhi.
Tu é que,
muito desajeitadamente.
te infiltraste nas linhas
incompreensíveis
da minha prosa,
o que, convenhamos, pássaro,
não é nada bom para ti.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Utente

Caíram tão rápido que já não os consegui apanhar.
Os dois #utentes que a minha avó me tinha dado ainda em vida, sim,porque tudo o que lhe tenho pedido ultimamente me tem negado, resvalaram pelo cano do lavatório abaixo, num remoínho de água, e pior ainda, o anel ficou ridículo, com dois pequenos buracos.
Aqueles utentes estavam avaliados nuns bons milhares de euros. Eram uma joía de família duma família sobejamente conhecida precisamente por não possuir quaisquer joías, dado o estado de pobreza permanente, portanto foram avaliados pelo valor sentimental, pelo menos assim me disseram, "atenção que estes utentes têm um valor sentimental muito grande", e eu agora, inadvertidamente, deixei-os ir pelo cano abaixo.
Esse descuido, o dos utentes rolantes rolantes, brilhantes, coloridos e muito mais, mergulhando em espiral descontrolada até ao fundo de um tubo de metal, quem sabe  a acabar aonde, fará com que, um dia eles andem pela praia, imunes a qualquer tipo de erosão e, muito naturalmente, serei eu a apanhá-los outra vez, depois de pesquisar nuns bons milhões de grãos de areia,
Nessa altura os utentes já não terão grande valor, a não ser para quem colecione fotografias antigas, e as emoldure em molduras antigas, e, mesmo sem reconhecer ninguém, a não ser o tal do anel incompleto que encontrou sem pedras num passeio à beira mar, resolva contar essa história.






segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Sem Abrigo.

Reza a história que uma vez um homem muito endinheirado  passeava pela Av. da Liberdade, logo pelo fresco da manhã.
Tinha por hábito, àquela hora tranquila, parar debaixo das arcadas para dar uma olhadela à roupa elegante dos expositores,  e assim fez, prestando particular atenção a um belíssimo blusão de cabedal.
Pôs-se então a apreciar a montra, quando lhe pareceu  sentir movimento, num canto, onde estava um monte de cartões.
"Olha os cartões a mexer...",, e, intrigado, ficou a observar.
Qual não é o seu espanto, quando  das placas de cartão, que se abriram lentamente, como as pétalas de uma flor, emergiu um sem abrigo!
Um não, uma. Uma mulher sem abrigo e sem  dentes, mas ao mesmo tempo tão linda! Foi amor à primeira vista, porque, é claro, também ela  se deixou fascinar por ele, que isso do amor é coisa para dois, e fez o que nunca fazia com ninguém, ofereceu-lhe um golo da sua garrafa.
Ele aproximou-se um pouco, sentiu melhor um odor que até então os seus sentidos desconheciam, mas tão poderoso, dir-se-ia que quase vivo, quente, e estendeu a mão para aceitar a bebida. Foi quando ela lhe pegou na outra mão,e, aproveitando o impulso, se levantou e começaram a dançar no meio da rua, sem conseguir controlar a  felicidade.
E tanto dançaram, que foram parar aos Restauradores, onde se sentaram a descansar, e a dar milho às pombas.
A verdade é que ainda hoje a praça está cheia dessas aves.



















domingo, 22 de outubro de 2017

Rádio

A mãe contava-lhe uma história para
crianças todas as noites.
Sentava-se na beira da cama
e começava, com aquela voz doce:
Era uma vez uma mãe
que contava histórias ao seu filho
numa noite tranquila.
Sentava-se na beira da cama,
fazia-lhe uma festa no cabelo
e começava
a ler-lhe o seu conto predileto:
Havia em tempos uma mãe, que,
amando deveras os seu filho,
 lhe contava todas as noites
uma história de encantar.
Segurava no livro com a mão esquerda,
e com a direita, distraídamente,
passava as pontas dos dedos
nas contas redondas do colar,
enquanto lia:
Algures num país distante
uma mãe contava uma história
ao seu filho,
primeiro encostava a porta,
para abafar o som do rádio
Depois sentava-se na beira da cama
e começava, com aquela voz doce...

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O Ouriço

Hoje, logo pela manhã, recebi um telefonema da senhora que é vizinha da minha avó, e que também vai olhando por ela.
Disse-me que ela não estava nada bem, e que era melhor levá-la ao hospital..
Pedi à patroa para sair, prometendo que compensava as horas noutro dia. Fez um ar contrariado. Podia sair, mas acabava o que estava a fazer, e depois sim, que fosse à minha vida.
Apanhei o autocarro, e quando vagou um lugar sentei-me a comer o pão com manteiga que trazia na mala.
Fui a pensar que sei muito bem que ela precisa de mim. Pior, só me tem a mim, por isso tenho a obrigação de tomar conta dela. Também os meus filhos me têm a mim,o meu homem me tem a mim, e a minha mãe, que já não é muito nova, me tem a mim. Todos me têm menos eu. Eu não tenho nada de mim.
Quando cheguei lá a casa, percebi que a velhota não estava nada bem, mas algo me impediu de chamar uma ambulância, e resolvi gastar um bom dinheiro num táxi, para a levar ao hospital.
À entrada da urgência sentei-a numa cadeira, na sala de espera, com a cabeça apoiada a uma parede lateral, para que ficasse amparada, porque me pareceu muito fraca, e fui fazer a inscrição.
Não sei o que tinha, na altura, em mente, mas a verdade é que inventei um nome para ela e outro para mim. Queriam os documentos, mas eu fiz um choradinho, roguei que me inscrevessem a senhora, e esse exercício de vestir outra pele soube-me muito bem. Assim fizeram, mediante a promessa de atualizar os dados logo que fosse possível. Confirmei e agradeci..
Nos hospitais não querem que ninguém morra, não sei porquê.
Ficou internada, com uma pneumonia, segundo-me disseram, já cheia de complicaçôes. e recomendaram-me antes de eu sair: " se ela resitir, precisará de cuidados especiais. Pode assumir esses cuidados"? "Claro que sim"! respondi.
Ainda consegui chegar a tempo à casa onde trabalho de tarde. Pelo caminho vi um ouriço esborrachado na estrada.
Vou fazer de tudo  para que não consigam decobrir quem eu verdadeiramente sou.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Irão (EI)

Aqui em Sintra, os duendes deixam-se ver no Outono.
Aproveitam uma manhã misteriosa como a que está hoje, e aparecem, saídos das suas casas
Portanto, quando passei por baixo daqueles enormes plátanos que perdem, nesta época, as suas folhas mais castanhas, não me espantei quando um deles me interpelou saído detrás dos troncos das árvores.
Dirigiu-se a mim, enigmático, e perguntou-me:
"Sabes o que são palavras mágicas?"
"Fosga-se! Não saiba eu outra coisa...", resmunguei.
"E sabes a de hoje?"
E, ao mesmo tempo, como se estivéssemos muito bem ensaiados, dissemos: "#Irão!"
E rimo-nos, claro! Os duendes também acham graça quando se fala em coro aleatoriamente.
Ainda conversámos  mais um pouco, porque ele, num gesto muito delicado, me acompanhou em grande parte do caminho.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Garrafa (EI)

Estava já deitada, a preparar-me para dormir, quando me pareceu ver, pela janela, uma bruxa a passar.
Até aí, tudo bem. Todos sabemos que as bruxas circulam mais à noite quando a maioria dos pássaros estão a dormir, para evitarem colisões desnecessárias. Acontece que me pareceu que a bruxa ia montada numa #garrafa e não numa vassoura como é habitual.
Levantei-me, coloquei os óculos que estavam sobre a mesa de cabeceira, a primeira coisa que me me ocorreu foi se não estaria a ver mal_ os míopes vêem muitas vezes coisas a mais, precisamente pela falta de visão_ e fui espreitar pelo vidro para tentar perceber o que realmente se passava.
Lá em baixo, no passeio, lá estava ela a tentar pôr a garrafa a trabalhar.
Eh! Ó bruxa! Então uma vassourinha não era melhor?
Roubaram-ma. Estive aqui ontem, estacionei para ir comprar tabaco, e quando cheguei já não estava cá. Foi um transtorno. Tive que ir para casa de autocarro, e deixei uma série de maldades por fazer. E era eu que estava de serviço às maldades noturnas. Um azar.
Queres que eu te empreste uma?  Ou uma esfregona, talvez. Sempre têm alguma semelhança.
Ó pá! Sinceramente! Então tu achas que eu vou voar de esfregona? Parece que não andas nisto há séculos, como eu. Vais logo à noite à reunião?

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A Família

Ao jornalista tanto lhe fazia uma calamidade com inúmeros mortos, como um fabuloso espetáculo de circo. Debitava todos os assuntos com igual entusiasmo.
A verdade é que também não lhe  prestava muita atenção. Estava concentrado na meticulosa tarefa de cortar com os dentes a pele de uma unha.
Via perfeitamente o ecrãn por entre os pés, que repousavam sobre a mesa de apoio, e a barriga, assim deitada ao pé do gato, também não lhe retirava a visibilidade.
Na cozinha, a mulher a arrumar as compras, deu com o vermelho dos morangos, lembrou-se duma marca de baton, mas logo a seguir lembrou-se que se esqueceu de comprar um ou dois pares de luvas de borracha, e também se deu conta de que o som da televisão estava demasiado alto.
O filho,  alheado no seu quarto, coisas de adolescente, como que desativado naturalmente daquele espaço que ocupa uma casa, e de todo o seu conteúdo. Era bom rapaz, só não lidava bem com os cabelos brancos do avô. Pareciam-lhe sempre um desastre inevitável e antigo. De resto, quando era necessário, punha e tirava a mesa, e era por isso, e só por isso que não apreciava tanto assim os almoços de domingo, passados em #família.















domingo, 8 de outubro de 2017

Eletricidade

Há muitos, muitos anos atrás, quando o planeta parecia muito maior do que parece hoje, as distâncias eram quase intransponíveis, e ainda faltaria muito para a utilização da eletricidade, um homem de grandes barbas, sentado em frente a uma  secretária, passava os seus dias a escrever.
Não escrevia nada de muito especial, nada que mudasse verdadeiramente o mundo, ou que ajudasse a resolver intrincados problemas da sociedade.
Sómente ia molhando, num ato contínuo, a pena na tinta, e com ela preenchia as folhas com maravilhosas e mirabolantes histórias de encantar.
Às vezes parava, buscando a melhor palavra, ou a melhor frase, e para isso fixava os olhos nos barcos atracados no porto, visíveis pela janela que lhe dava a luz necessária para a continuação do seu ofício, ou, ainda que não fosse um ofício, seria pelo menos, aquilo que mais apaixonadamente sabia fazer.
O homem não tinha a noção, sequer, se as suas histórias seriam alguma vez lidas, nem tinha qualquer perceção de que elas atravessariam fronteiras, e, sobretudo, transporiam o tempo, como só a arte o consegue transpôr.
Apenas olhava os barcos no rio, e molhava a pena, repetidamente.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Zélia

Se podes entrar?
Não, Zélia, não podes.
De momento não se encontra ninguém no miradouro a contemplar a cidade.
Até é suposto que uma qualquer sonhadora encoste os seus antebraços à grade de ferro, que há-de estar quente pelo calor daquele dia de verão, mas isso será mais tarde.
E também não te estou a ver, por uma qualquer circunstância, a descer a avenida apreciando os bancos de jardim, o passeio largo, os desenhos da calçada.
Ou então, dar de caras com um dia bem chuvoso e escuro, e serem os teus olhos a toparem, refletido, o brilho das luzes dos carros.
E depois, com que sentimento verias a colisão de dois chapéus de chuva, um azul, outro amarelo, Estarias atenta, por acaso,  a essa mera casualidade?
E, se por uma predisposição qualquer da minha cabeça, ali, bem no meio do mau tempo,  viesse a acontecer o abraço de velhos amantes?
Terias tu capacidade para assumir esse papel?
O mais que consigo para ti, Zélia, é que compareças,  ocupando um lugar sentado no autocarro que irá cheio, em direção ao Largo do Rato, mas promete que passas sem dizer uma palavra.
Melhor ainda. Tenta dormitar, logo na primeira paragem, e acordar mesmo na última, para não interferires em nada neste lapso de tempo de uma pequena história.