quinta-feira, 30 de agosto de 2018

No tempo dos #postais_de_férias

Naquele tempo,
quando descíamos
ao  rio,
ao fim do dia,
passávamos
pelo "arco das flores".

Atravessávamos o pátio,
em pedra polida,
ainda quente,
e entrávamos no "túnel
das roseiras bravas"
que trepavam.

E quando acabava
"o arco das flores",
como lhe chamávamos,
seguíamos por um
estreito carreiro
de terra inclinada.

.
(E pelo caminho
havia
macieiras,
das verdadeiras,
a perfumar.)

Depois, ali
ficávamos,
sentados;
a ouvir
o murmúrio
do seu caudal,
vagaroso.


O tempo, às vezes,
voava,
como se fosse breve,
e a noite
surpreendía-nos,
rápida
e eficaz,
e, intencionalmente,
refletia
os nossos olhos
nas estrelas,
e deformava
a lua,
com os movimentos
ondulatórios
da água.





Nunca um #postal_de_férias

Era compulsivo.
Fugindo da luz
e dos falsos desígnios.
O quê? Voltas à cabeça,
introspetivas, pois é,
para saber porquê
quando é inexplicável.
o poema.

O poema é inexplicável.
Não é nada.
Aparentemente zero.

Mas de repente,
eis senão quando
num momento de envolvência
total, o senti,
abstração distração,
tentando nascer, digamos.

Ainda esbracejou
teve tempo para...,
mas acabou
esparramado aqui
no virtuoso da página.

Disforme, o merdoso.
Completamente disforme.

 Ainda nem era ninguém,
só um toque de claridade.

E o que é
"um toque de claridade"?
Não é nada, o merdoso.
Deformou-se todo
ao cair do cabelo odioso.


Misterioso e inexplicável.
ainda não era nada
ainda nem tinha nascido,
pasteloso e arrogante.

Estatelou-se ao comprido
mas não deixava de gritar,
o vaidoso,
que existia verdadeiramente
quer eu quisesse, ou não...,
mesmo que durasse
só por uns segundos.
















quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Um #postal_de_férias do Além


 Não tocar, nem ao de leve, com os pés no chão, requeria muita habilidade, tinha uma ciência muito especial.
A primeira vez que lhe aconteceu, estava deitado, de olhos fechados.
O filho pegou-lhe na mão, balbuciou qualquer coisa próximo do seu ouvido direito, mas que ele não percebeu.
Sentiu uma pancada forte, "Pai...?", ouviu como se estivesse nuito longe.
Com uma espécie de dor acompanhada de um ruído seco e rápido,  a sua alma separou-se do corpo e bateu de chapa, com violência, no teto da enfermaria.
Depois, tudo voltou ao normal.
Acordou frouxamente, respondeu ao  que o rapaz lhe perguntava, com dois ou três monossílabos, só para garantir a si próprio que estava vivo, viu-lhe o sorriso jovem, e fechou os olhos. fingindo adormecer.
No outro dia, voltou a sofrer a mesma metamorfose.
Foi perdendo a audição, deu pelas batidas cardíacas em modo pausa, talvez umas trinta ou quarenta por segundo, não mais, e um arrebatamento estranho levou-o, em  fantasma, para lá da sua existência carnal.
Foi-lhe mais fácil, desta vez, dominar a bestialidade do impacto, e os movimentos   voláteis do seu espírito no ar.
Não se atordoou  e ainda conseguiu pairar uns segundos, observando, do alto, o seu próprio corpo deitado na cama, os que estavam sentados em redor, e a mulher, que dava um jeito na mesa de cabeceira.
Com o decorrer dos dias, foi-se  adaptando, com inteligência, áqueles voos disparatados e invulgares, e, uma semana depois, dominava inteiramente a arte de pairar sobre as coisas.
Por isso não estranhou quando  verificou o seu próprio desaparecimento, e no seu lugar puseram um outro completamente diferente e desconhecido, muito embora colocado exatamente na mesma posição.



terça-feira, 28 de agosto de 2018

Quase um #postal_de_férias

Fazia dias que se sentava na sua mesa de trabalho, sentava-se na respetiva cadeira, evidentemente, para bom entendedor meia palavra basta, não é preciso dar-mos sempre às palavras, ou às frases, o seu exato significado, mas dizia, sentava-se, olhava para dentro de si , com a esperança de ver alguma história nova a passar pelos caminhos habituais,  por entre as células cinzentas do cérebro, ou por vezes, em reentrâncias menos óbvias, trilhos situados, quem imaginaria, nos músculos dos olhos azuis,  nunca utilizo a designação "estória", embirro, muito por culpa da Carochinha, mas já me vou perdendo outra vez, contava eu, que ele se sentava, com algum entusiasmo, era um entusiasta, para caçar uma narrativa qualquer, um ambiente novo com criaturas acabadinhas de cozinhar, saindo do forno, suculentas, era só necessária  a paciência de esperar um pouco por estarem demasiado quentes, mas valia a pena a espera porque ficavam doces e estaladiças, meus deuses, perdi novamente o fio à meada, a dura verdade é que não acontecia nada na sua cabeça, apenas rodavam colagens de filmes e livros já existentes.
Foi então que se lembrou, teve uma epifânea, uma epitáfia, um epigástrica qualquer, pensou que podia, talvez, ser ele o personagem principal, reinventado, ou até um dos secundários, bem sabemos que, não raramente, são eles que nos ocupam grande parte da memória.


domingo, 26 de agosto de 2018

Quase um #postal_de_férias

A velha questão do espaço
e a nova questão do tempo
renovável,
obrigavam ao repouso do corpo
enfraquecido,
Tantos pequenos delitos.
Ouvir  música música,
quando o silêncio atordoa.

Se tudo fosse demais
ia dar um passeio.

Naquele dia
desorganizou-se propositadamente,
vestiu o seu mais bonito casaco,
com grandes quadrados azuis
e amarelos,
a saia amarela do mesmo tom,
a condizer na perfeição.

Ao abrir a porta do quarto,
para se despedir
desnecessariamente
da poeira,
deparou com a boneca
jazendo no chão, desativada,
com as articulações rudimentares,
em muito mau estado.
Pressentiam-se as cabeças
dos parafusos invisíveis
unindo as partes,
Um dos seus cotovelos
formava um ângulo impossível
e desajustado
em relação ao conjunto
das pernas e dos braços.

Olha o lobo de pelo branco,
mais um enigma
que lhe vigiava os movimentos
do alto da prateleira.

Saíu.

Sobressaía das ervas secas
por causa do seu movimento
pendular.
A imagem não permitia ver
nem um pouco do tom plástico
da sua pele,
mas era uma mulher gorda,
que,
a cada passo tombava
para um dos lados,
perturbando o eco sistema.
Entre o seu corpo denso
e a leveza da paisagem
havia um enorme contraste.

E afastava-se.
Estava cada vez mais longe.

Os seus olhos desumanos
tinham a capacidade
de não fixar qualquer ponto.

Aquilo nem era cabelo,
mas sim uma peruca artificial,
como a dos palhaços,
de cor viva.

Uma hora depois
estava de volta,
e atirava, aliviada,
o casaco e as chaves
para cima da cadeira.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Viver no Campo

No sopé de um pequeno monte sem importância relevante, existia uma quinta que, apesar de parecer um espaço em tudo idêntico a outros espaços daquela natureza, era, afinal, um pouco diferente.
Lá, os animais pareciam ter saído de uma qualquer ilustração infantil.
Havia um  porco  muito cor de rosa, que andava apoiado nas patas traseiras, tinha sempre um sorriso nos lábios, um pequeno chapéu de coco, e não chafurdava na lama.
Estava sempre muito luzidio, como se tomasse banho todos os dias com um gel específico para porcos da sua faixa etária.
Também o gato riscado, que por lá vivia, era pintado de umas riscas com um absurdo contraste entre o cinzento e o amarelo, e não atacava a capoeira para matar as galinhas.
Os animais eram, aliás, todos grandes amigos, e, simplesmente  não existiam aquelas rudes pessoas do campo, que algum dia, eventualmente, lhes poderiam fazer mal. dentro dos limites que estipulava a cerca de madeira, muito benfeitinha, em dois tons de castanho.
Naquele lugar, até os insetos era felizes, não havia pragas de vespas, nem de nada, o criador, fosse lá quem fosse, tinha optado  pela existência de apenas uma criatura com asas desta natureza.
Era a Gertrudes, que acompanhava em longos passeios um gafanhoto conhecido apenas por "Pô", apesar de o seu verdadeiro nome ser "#Postal_de_Férias, designado assim talvez um pouco por causa da dificuldade que alguns animais demonstram em falar, nomeadamente quando se trata do português, dada a complexidade da língua.
Só o papagaio Pacholas, muito seguro de si, o conseguia pronunciar. E muito bem, "postal de férias, postal de férias", repetia sem se cansar.
Um dia, estando em alegre convivência todos sentados na relva de tom artificial, cada um à sua maneira, o peso da vaca malhada e as suas pestanas sensuais, percebiam-se pelos traços a preto, que o desenhador produziu inclinando a caneta, deu-se o mais espantoso dos acontecimentos.
Tão bem que se estava no campo, debaixo de uma buganvília, quando começou a chover chuva verdadeira, imagine-se, primeiro em gotas dispersas, duas ou três acertaram nos cornos da cabra Lindinha, que logo se desfizeram, depois foi a vez do cão Simão ser atingido, ficou sem a bonita cauda peluda, até que caíu violentamente, misturando todas as cores.
E à medida que a água ensopava a maioria das folhas,  foi-se a vaca, foi-se o porco, o gafanhoto, e o outros, todos mortos, jazendo numa grande mancha lilás, como se nunca tivessem existido, mesmo que apenas enquanto personagens duma historiazinha impensável e, cá para mim, até um bocado esquisita.












domingo, 19 de agosto de 2018

Pode ser um #postal_de_férias

Faz meia hora que fala, narrando divinamente a sua história.
Nem tanto pelas palavras, mas talvez pelos gestos elegantes que vão acompanhando o discurso.
As mãos vivas, as expressões do rosto selvagem, os olhos húmidos, acossados, como um veado que espreita por entre as folhas.
Observo-lhe os gestos entrosados uns nos outros, o discurso brilhante e inspirador, consigo ver o seu azul inexistente e verde,  a coincidir com o azul do mar, o azul  do nosso mar desigual.

Faz meia hora que fala.
Apoia os cotovelos no parapeito líquido, enquanto eu passo os olhos pelas variadíssimas linhas do horizonte incompreensível, e a vou imaginando  a beber de tudo o que existe para beber de  doce, nos rios que correm por fendas sublimes da mãe terra, muito embora, digam o que disserem,  bastante assustadoras,  e nos lagos de águas paradas e fundas.
E prossegue falando, mas eu sei, sou testemunha, que para falar tão bem, já  escreveu oceanos e já moveu montanhas, já lhes mergulhou no fundo, daí a beleza expontânea com que destraça a perna.

Aproveita as cores do outono, e a chuva gelada do inverno, tudo se aproveita, diz-me, com os  seus olhos mornos, como se baixasse o pescoço para beber, equilibrando-se  apenas nas patas dianteiras, e visse o seu rosto ondulado, no ondulado das águas meigas.
E continua, contando  e escrevendo, e eu vou passando os olhos, calmamente, pelas linhas, como se ela fosse um veado que fala, que conta, que escreve, ou uma rocha que aquece, que escalda sob o calor do verão, ou, simplesmente, mais uma pequena parvoíce das minhas.














Uma Família Feliz IV

"Porra, meu...!
Não te pedi para mandares um #postal_de_férias lá do Algarve?
Fica um gajo preocupado...
És mê` mo ranhoso.
Dos meus três filhos és o pior.
A tua irmã também não é flor que se cheire.
Fosga-se..., um gajo tem azar na vida...!
E a tua mãe, atão, nem se fala!
Agora deu-lhe pr` ós vestidinhos
e para sair  de casa às duas da matina.
_Ai, a modos que sou livre, e tal...
Tu não gostas, vou dar um pézinho de dança..._
Deixa..., há-des cá vir... Cabra!
Por acaso, ontro dia contou-me uma cena fixe.
Diz que uma gaja mais velhota 'tava na pista,
aos pulos alucinados, e deslocou a anca.
Saíu de lá em braços.
Hahaha...! Gostava de ter visto.
Mas atão, que é que queres..., não vejo nada, fico em casa...
Vocês são é todos uns filhas da mãe do caraças, é o que é!
Só escapa o tê` irmão.
E mê` mo ele, também, bebe um bocado demais, mas pronto, vá...!"

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O Canto

   É certo que nem o gato gostava daquele canto lá de casa.
   Tanto assim era que se punha estático, como é normal nos gatos, muito elegante, com as patas dianteiras e o pescoço esticados, e de olhos fixos naquele lugar.
    De vez em quando baixava a guarda olhando para o chão, ensonado, mas, segundos depois, com um gesto rápido da cabeça e um movimento impercetível das orelhas, voltava a fixar o mesmo sítio.
   Tantas vezes que lá fomos tentar perceber qualquer coisa de anormal, fingindo procurar um livro, ou oferecendo-nos para limpar aquela estante, bonomia que acabou, inclusivamente, por gerar a desconfiança da nossa mãe, mas não descobrimos nada de diferente em relação a outros lugares idênticos espalhados pelo apartamento, e aos quais o bicho não ligava nenhuma.
   Apesar dessa constatação, a de que nada se passava de invulgar, a verdade é que, tanto eu como a minha irmã, começámos a ficar apreensivas com a reação sistemática do animal.
   Ocorreu-nos, então, que dentro das paredes, ou do lado da sala do vizinho, diametralmente oposta à nossa, pudesse estar qualquer coisa de diferente, como uma alma do outro mundo, um fantasma a querer comunicar connosco, ou, simplesmente, um animal de pequeno porte que tivesse ficado encurralado nalgum buraco do qual não nos estávamos a aperceber.
   Sabíamos de antemão, que por aqueles meses a casa estava desabitada, pois tínhamos lá ido numa visita, já que o seu proprietário insistiu em  mostrá-la ao meu pai depois de acabadas umas obras que tinha feito, para posteriormente a alugar ou vender, e nós acompanhá-mo-lo, e diverti-mo-nos com o som produzido pelas nossas vozes embatento nas paredes vazias.
   Para quem fosse um bom trepador, ágil e leve, não era difícil chegar áquele segundo andar, até porque os galhos de um grande plátano desciam sobre a varanda, facilitando a intromissão, o que nos levou a pensar que talvez alguém para lá subisse durante a noite, e lá se mantivesse durante o dia,  quem sabe, dormindo próximo daquela parede.
   Foi então que, numa madrugada luminosa e lunar, numa hora em que os nossos pais dormiam profundamente, nos esgueirámos das nossas camas para ficar alerta, quietos e mudos, esperando passar-se alguma coisa de extraordinário.
   Sentámo-nos com as pernas encolhidas e as costas apoiadas nas pernas do grande tanque de cimento, no que nos pareceu ser o local com o melhor ângulo de visão.
   Quando nos preparávamos para desistir, uma hora depois de nada acontecer, e também incentivados pelo nosso sono de  crianças, forte e poderoso, sobretudo o da minha irmã que era a mais pequena, sentimos um certo movimento, e pudemos observar, nitidamente, duas figuras, exatamente iguais a nós, incluíndo os pijamas, o dela com ursinhos espalhados pelo tecido, e o meu com pequenas flores coloridas, mas com uma estranha leveza, a qual nós não possuíamos, nem de longe nem de perto, percorrendo muito rapidamente os ramos da árvore, mal utilizando os pés, e sem quaisquer apoios, quase voando, e entrando assim, subrepticiamente, para o interior da casa.
   Á esquerda da sala deserta, e na esquina correspondente, deitado mas atento, como sempre, o nosso gato de estimação esperava tranquilamente por eles.







terça-feira, 14 de agosto de 2018

#Postal_de_férias VII


"Nesta fase mais aguda receito-lhe um conto por dia,  e um mínimo de três páginas de um bom livro. Vou-lhe dar uma lista dos que me parecem melhores para o seu caso específico.
Quando se sentir um pouco melhor, poderá escolher o que quiser. Deixará de necessitar de uma dose tão forte.  Continuará a ser obrigatório o tratamento diário, mas menos intenso e mais aleatório.
Saiba que será para toda a vida.
Vamos lá a ver se  conseguimos pôr essa cabecinha a funcionar um pouco melhor...!
Acredito que sim. Confio nos efeitos benéficos da prosa. Um produto cem por cento natural.

De cada vez que um automóvel passava, uma sombra movia-se na parede, e foi a partir dessa realidade inquestionável que me veio á memória:
Do meu lado direito, o condutor tirava macacos do nariz pacientemente.
Procurei não olhar, só o fiz porque, naquele trânsito parado, não havia muito com que me entreter.
No automóvel da frente, duas crianças encantadoras faziam-me gestos obscenos com o entusiasmo estúpido de algumas crianças, revirando as mãos gorduchas com uma certa dificuldade.
São necessários anos para ter mãos treinadas. Procurei desviar os olhos.
Uma árvore, do outro lado da via rápida, tombou para aquele lado, ficou pendente sobre a estrada, e alguns dos seus galhos afloravam agora o capot do meu carro.
Podia ouvir o ruído metálico da chapa a ceder, sobrepondo-se ao bater constante da chuva.
O vento não dava tréguas e a árvore balançava perigosamente.  Procurei não me assustar.
Quando voltei a olhar para o lado, por falta de alternativas, onde anteriormente estava o homem dos macacos, já não se encontrava ninguém, mas, segundos depois, e completamente encharcado, batia no meu vidro com os nós dos dedos.
Queira lume para fumar um cigarro. Procurei no porta luvas.
E no lugar de onde os meninos me faziam gestos pegajosos de rebuçado, estavam agora um cão de laço encarnado, e um gato preto que me fazia um manguito com as patas dianteiras.
A árvore abateu, mas os dois metros que percorri, apenas porque destravei o carro, foram condição suficiente para que o seu tronco  tivesse atingido sómente a parte de trás do meu veículo.
Do buraco que provocou na bagageira saíram, para a tempestade, dois unicórnios amarelados do tabaco.
Quando veio o sol, voltei a ver os miúdos, que seguiram a grande velocidade. Certamente um dos pais é que carregava no acelerador, já enervado, enquanto as outras viaturas também iniciavam a marcha, sendo que um deles era uma carroça de três bois, e outro, um cisne encantado, munido de um potente  motor, e que passou por mim tão rápido quanto os cisnes encantados, com motor, conseguem voar.
Só eu fiquei ali presa, até a árvore se recompôr.
Podia demorar vários anos, foi disso que, na altura, tive medo, mas felizmente resolveu-se, lá mais para a noite.
Procurei, e procuro, ainda agora, separar este preciso acontecimento, do real movimento das sombras na parede, e seguir o meu percurso habitual,  preferencialmente  com uma rádio a tocar, e, claro, eliminando os pormenores desnecessários.




domingo, 12 de agosto de 2018

A Continuar


Agarrou na pasta e desceu a escada, devagar.
Já pela rua fora, encontrou a vizinha da cave a quem cumprimentou com um vulgaríssimo "boa tarde",  sem mais conversa do que essa, faltava-lhe a paciência, para conversas tinha os seus papeís e o café que ia beber.
Sentou-se  na pastelaria da esquina, felizmente o seu lugar preferido estava livre, e apoderou-se da mesa, entre a janela e a montra das bebidas, onde havia mais luz e era possível ver as pessoas a passar lá fora, ao ritmo da grande cidade.
Abriu a pasta, o couro estava gasto e sujo, tinha a marca dos seus dedos, foi ao bolso interior do casaco buscar uma caneta, retirou-a e colocou-a sobre a mesa.
Desde o primeiro momento que lhe notou os pormenores, a expressividade do rosto, as mãos jovens, gretadas e frias, não obstante lhe servisse aqueles cafés amargos e quentes, com o líquido preto a fumegar.
Foi o que escreveu nesse dia, as impressões todas que tudo lhe causou, a rapariga, atarefada, a servir as mesas cheias de gente, a velhota que passou, atrasando mais ainda o seu passo vagaroso, e franzindo os olhos para tentar, através dos vidros, ver lá para dentro.
Ainda tiveram tempo para se toparem um ao outro, até que alguém deu um toque à frágil senhora, o que a obrigou a seguir caminho.
Tinha um lenço verde escuro em volta da cabeça, atado à frente.
Perante aquele reconhecimento enigmático, mas de alguma forma familiar, agarrou a caneta com a mão esquerda, sorveu o um golo de café, e pôs-se a pensar numa nova história que iniciou ainda ali, naquelas folhas dispersas, que serviam para isso mesmo, para começar enredos quaisquer que depois em casa trataria de orientar.
Estava neste pensamento, com a mão direita a apoiar a cabeça, quando lhe pareceu ver o mesmo lenço verde do outro lado da estrada, no passeio oposto, e, na verdade era ela, que atrasava novamente o passo, olhava para trás, e mais uma vez se fixaram nos olhos um do outro.
Saíu o mais rapidamente possível, arrumou apressadamente a papelada, deixou uns trocos em cima da mesa, atravessando a estrada ao mudar o sinal. Nunca tão depressa galgou os traços brancos da passadeira.
Ainda conseguia vislumbrá-la, haveria de a alcançar.
E lá estava ela, em frente à montra, e debaixo do toldo para se proteger do sol.
Esperava.
Agarrou-lhe por um braço, com as suas mãos ossudas, mas não disse uma palavra. Tinha os olhos pequenos raiados de vermelho, como se tivesse chorado a vida inteira.
 Depois afastou-se, até desaparecer na multidão, deixando-o imóvel, incapaz de a seguir, por esse tempo preciso e por um motivo qualquer inexplicável.
Foi o que escreveu quando, mais tarde, olhava pela janela o movimento na rua, à porta de sua casa, após  subir o curto lance das escadas e encontrar um outro vizinho que lhe falou da temperatura amena e agradável, e ao qual deu uma resposta breve.
De quando em vez, fazia uma pausa para recordar as expressões faciais da jovem que o atendeu na pastelaria, e o seu sorriso programado, ou o trote dos sapatos nas pedras da calçada.



















sábado, 11 de agosto de 2018

Foi ( Era um #postal_de_férias)

Foi apanhado no delírio, e foi com a barriga farta,
e foi com as folhas verdes sobre a pança,
o vento era tanto,
e enquanto as pessoas circulavam, elas, curiosamente,
nem se mexiam,  como se não existissem
ou nunca tivessem sido escritas.

Foi depois de ter estado numa grande festa,
que lhe deu a solipampa, o fanico,
deitarem-no num banco de jardim, e chegou ao fim,
como chegam todas as vidas ao fim, já sem lembrança
dos morros inacessíveis e  dos amores com mar ao fundo.

Nessa festa, eu também lá estava.
E de lá, de onde me encontrava, via
tudo o que se pode ver num ambiente  incrivelmente sinistro,
encostada  ao parapeito, com o queixo apoiado no antebraço.

Era..., era mais para trás que estava uma bruxa velha,
velhíssima, com um grande nariz,
com uma verruga na ponta, um chapéu em bico
e a testa cravada de rugas fundas.

Espreitava, escondida, atrás de um arbusto,
mas era denunciada pelos olhos rasos e faiscantes
do gato de prata que trazia ao colo.

As mulheres não eram muitas,
e eram mulheres muito jovens que riam,
e cujos risos cristalinos  embatiam no cristal das taças,
que elas agarravam com os dedos longos,
e era aquele som que entrava pelas frestas da janela, mal calafetadas.

Só um aparte, não te esqueças dos meus dedos longos.

Lembras-te dos choupos alinhados, da sua sombra sombria,
da infância em que nem sequer me conheceste?
Então, se quiseres, terás a recordação dos meus dedos longos.


Com vista previlegiada para o jardim,
observava as raínhas de mãos piedosas e juntas,
os sequiosos de língua de fora,
os loucos com comportamentos inalteráveis, com a suas loucuras previsíveis.
E para mais que são sempre eles,  a animar  os  ambientes festivos,
e são, portanto, também eles, que dançam ao som da água.

Um vestido de seda, vermelho e comprido,
circulava por ali, rasando o chão.
Sem ninguém.  Mesmo quando lhe batia o vento lá dentro não estava nada.

Também um aranhiço, se sentou na beira da fonte, traçando as sua oito pernas
umas sobre as outras.
E enquanto tirava o baton carmim da bolsa para retocar a sua boca nojenta,
ainda cuspia restos de asas de mosca que guardava, depois,  entre as patas.

E fui eu, que, com as costas doridas da posição, com os picos da mão já dormente,
e talvez por isso,
me esqueci de lhe dar as flores, à entrada.







sexta-feira, 10 de agosto de 2018

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

As Missivas

Munido de uns potentes binóculos, o assassino observava, concentrado, a sua vítima infeliz.

"Saiba que não conseguirá fugir ao destino que pretendo dar-lhe. Sei todos os seus passos.
Desta vez envio-lhe, a título de prova, um educado #postal-de_férias com a imagem da bela estância que julga  praticamente desconhecida e onde pensa estar protegido, longe do meu alcance.
Quando receber esta missiva, estarei a observá-lo, abrindo o correio que lhe foi entregue em mão e a que se dedica, diariamente, sentado no terraço.
Tudo dependerá da minha disposição.
Poderá morrer rapidamente, com um golpe seco na nuca, ou com um tiro de pistola, ou, ao contrário, sofrerá primeiro alguma tortura lenta, e com os requintes de malvadez que mais me aprouverem no momento.
Não lhe valerá a pena refugiar-se noutro lugar, porque terá que acontecer.
...Até já...















quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Postais

Caríssimo

Apesar de ter interrompido o meu período de trabalho, e depois de inúmeros convites para passar uns tempos em sítios prazenteiros com companhias agradáveis, resolvi manter-me por  aqui.
O meu entusiasmos pelo livro que escrevo, no momento, é muito grande, e não quero interromper uma história que quase já se desenrola sózinha, nem os personagens que já há muito ganharam vida exijindo, eles próprios, o seu prolongamento, a sua continuação.
E que lugar mais inspirador do que estar sentado em frente à minha mesa de sala, de onde consigo ver os barcos atracados no porto, e espreitar o mar ao fundo que  reflete todos os dias tons diferentes, ou sentir o bulício matinal, mesmo aqui por baixo da minha janela?
Assim te envio o #postal_de_férias possível, garantindo-te, para ficares descansado, que esta é melhor forma que conheço de passar os dias.

Um abraço amigo




terça-feira, 7 de agosto de 2018

Mais um postal de Férias

Não tem que passar pelos moínhos de vento. O senhor Quixote vira à esquerda na primeira que vir, e quando chegar à rotunda sai na última saída. Avise o seu amigo a conduzir o burro, porque os burros assustam-se com muita facilidade.


Meu querido,

Escrevo-te este #postal_de_férias porque..., olha, nem sei porquê, maluquices da minha cabeça.
Provavelmente, quando te chegar às mãos eu já aí estarei, para além de que temos falado um com o outro centenas de vezes por outros meios mais práticos e mais eficazes, mas então,... que queres, às vezes a vida é mesmo assim, estúpida e chata.
Mas não faz mal. Lêmo-lo ao mesmo tempo, porque a mim também me interessa saber se gostei ou não de lá estar.
Não ligues à imagem do hotel  porque  está desatualizada. Já te inviei umas fotos mais fixes pelo face.


Um abraço da sempre tua   Clotilde





sábado, 4 de agosto de 2018

Postal de Férias (da série, Uma Família Feliz)




Encostou a bicicleta às videiras, tirou o boné, passou as mãos pelo cabelo suado, e sentou-se na pedra do costume, ao lado da paragem do autocarro. De vez em quando combinava com a Beatriz darem uma vista de olhos pelo correio que ele andava a distribuir. Ali tinham a sombra dos carvalhos para refrescar e era um local tranquilo. Raramente alguém utilizava aquele transporte.
Quando ela chegava, sentavam-se os dois nos bancos da paragem, ele abria a boca do saco para espreitar lá para dentro, apalpava o seu conteúdo com toques experientes, e ia retirando cartas,  #postais_de_férias, notificações, ou qualquer outra coisa que  lhes pudesse ser útil, ou para lhes proporcionar o simples prazer da leitura, ou pelo gosto de seguirem, com genuíno interesse, pormenores da vida de algumas  pessoas daquele lugar.
Olha só..., das finanças para a Dona Alberta,..., e este postal da avó da Cilinha, a outra, a mãe do pai:
 "Querida netinha, escrevo-te daqui do ponto mais alto do Everest, onde a tua irmã teve a amabilidade de me trazer. Como sabes, ela e o marido são grandes alpinistas, de forma que subiram a montanha e depois içaram-me puxando uns fortes cabos que, previamente, tinham prendido à maca.
Para a semana vamos fazer paraquedismo, se pudesses vir ter connosco era tão bom!
Mil beijinhos para todos!
ps- Se vieres, traz-me uma garrafa de oxigenio porque o meu está a acabar."
"É querida, não é, a senhora?"
"É mesmo, Beatriz. Lembras-te o ano passado, quando cá esteve, e a penduravam do terraço, de castigo, e ela sempre com um sorriso nos lábios? Ai as horas, Beatriz...! Até amanhã.  Já estou atrasado...!"
Apanhou o boné, que tinha pendurado no galho de uma árvore, montou a bicicleta agilmente, e virou-se para trás, para acenar um último adeus, mas, como normalmente acontecia, desiquilibrou-se e caíu,  e Beatriz, tal como nos outros dias, virou-lhe as costas para se  rir mais à vontade.














O Avô (da série, Uma família Feliz)

Quando, finalmente, acabaram os preparitos já não cabia nem mais um embrulho dentro do velho Citroen.
Até o tejadilho, que felizmente possuia suportes próprios e de boa qualidade para o efeito, vinha cheio, acumulando duas pranchas de surf, uma para o pai outra para o filho, a bicicleta da mãe, que não podia prescindir, e a cadeira de rodas do avô, que, por motivos diferentes, também era indispensável.
A logística das férias é, às vezes, um pouco complicada, mas a viagem correu muito bem porque ia tudo devidamente acondicionado, como é de lei, e quando chegaram ao destino adotaram o procedimento do costume, cuja eficácia já tinha anteriormente sido comprovada.
Entre montar a tenda e fazer qualquer coisa para comer diretamente da panela do campismo ainda se passariam umas horas, teriam, por isso, que entreter o velhote, que foi sentado na cadeira com um chapéu de abas largas na cabeça, por causa do sol, um leque para minimizar o calor e a quem foi dado um telemóvel para ir tirando selfies.
Mais tarde, já pela entrada do outono, com o reboliço das aulas dos miúdos, com a cidade toda a mexer outra vez, em ciclos previsíveis, munidos dessa adrenalina tão habitual e saudável, escolheriam as melhores fotos para fazer #postais_de_férias.
Mas, depressa e bem não faz ninguém, como todos sabemos. Não se deram conta da inclinação do terreno, e no meio daquela azáfama, deixaram resvalar o avô, que foi parar lá abaixo, à zona da praia.
As crianças são, por natureza, atentas ao que as rodeia e ao mesmo tempo curiosas, por isso, não é de estranhar que tenha sido o rapaz a dar por aquela falta.
"Mamã, não viste o meu telemóvel? É pá..., cheio de areia! Olha..., o avô foi projetado um bocadinho antes. Ainda bem! É só tirar os picos, é mais fácil."
"Queres trocar? Tu tiras os picos ao avô e eu limpo essa porcaria? Ah, pois..., bem me queria perecer!"
Fora este pequeno incidente inicial, foi uma semana memorável.






quinta-feira, 2 de agosto de 2018

#Postal_de_férias com Sereia


Tamanha simplicidade, e
aconteceu-me isto, imagine-se,
fui à praia precisamente
á hora tranquila da madrugada,
em que os barcos não
passam de meras sombras,
e não há pessoas nos edifícios,
ou eu não as vejo.


Talvez porque as ruas permanecem escuras,
porque o calor obriga à penumbra,
vou descendo, para
chegar lá e ouvir  as embarcações implodindo,
Pumm! Atracadas nas dunas
a assumirem contornos grotescos
aos meus olhos, ou, ainda,
se calhar estou demasiado atenta.


É sempre por aquela hora mágica,
ou virtual, não sei, dizem
que emerge da água
com o corpo nú até onde é possível,
os seios escondidos pelos fortes cabelos
que se movem, distraídamente, com a brisa
como se fossem luas amarelas,
desenhadas em pedaços de tinta.

Com o rabo de peixe submerso
no líquido negro e fundo.


Nem os reflexos da lua,  nem a distração
da sua voz inebriante e assassina
impedem o improvável.
É porque não estás atenta. Inédito,
 não é, mas raras vezes uma sereia
se pendura numa árvore,
e por lá fica toda tarde, com a sua cauda,
escamada e triste.


Mas pode acontecer. Quando
Saem do conforto da água funda,
só para, por momentos
verem o mundo ao contrário.


Por vezes ainda traz os arpões
espetados no corpo.
ou colares de moedas de tesouros
corais ondulantes
conchas e búzios preciosos
enrolados no pescoço.


Sacode-se o melhor que pode,
para se libertar,
utiliza as mãos emprestadas
para  soltar o que sabe,
mas isso provoca sangue,
e o sangue forma
uma mancha avermelhada
que alastra aleatoriamente
pela superfície do mar.


E a dor instala-se nas suas cantigas,
e com versos incompreensíveis
grita uma aflição qualquer
que desconheço.







Um Dia de Férias

A Dona Amália nunca tinha andado de descapotável.
Quando a sobrinha a foi buscar para um dia bem passado não imaginou que, com a força produzida pela deslocação do ar, com a qual não contava, acabasse por perder, primeiro o chapéu que tinha posto na cabeça, e, uns quilómetros mais tarde, o lenço que trazia ao pescoço e que tão cuidadosamnete tinha ajeitado em frente ao espelho.
Imediatamente atrás delas vinha um homem a conduzir distraidamente a sua moto.
A sobrinha, que se agarrava ao volante com perícia, ao olhar pelo retrovisor apercebeu-se do que estava a acontecer à sua tia, velhota, sentada no banco de trás.
Por força da sua maneira de ser, bondosa, mas ao mesmo tempo brincalhona e irrequieta, ao invés de travar, acelerou para ver se lhe voava mais alguma coisa, com o intuito de se rir um pouco e tornar a viagem mais agradável, e, de facto, ainda lhe fugiram os óculos de sol, dois colares de missangas, e os dentes da frente que havia muito se estavam a querer soltar da placa.
O que a rapariga não previu, porque se o tivesse previsto a sua natureza caridosa não teria permitido aquela singela brincadeira, foi que ao chegar ao lar das irmâs Clementinas, para que a senhora retomasse o seu quotidiano tranquilo, elas não a reconhecessem por se encontrar completamente transfigurada.
Obviamente que lhe vedaram a entrada o que obrigou Camilita a deixar a tia Amália  sentada nos degraus em frente à porta principal, enquanto fazia a via rápida em sentido contrário na esperança de recolher as suas coisas.
Não teve que percorrer muitos metros para encontrar o simpático motoqueiro, que, ao aperceber-se da situação, tinha recolhido num saco todos os pertences da senhora incluindo um velho pneu rebentado que estava na beira da estrada, e que nem sequer era dela.
Ajudando-se mutuamente, reconstituiram-na o melhor que puderam, voltaram a tocar à campaínha, e aí sim, as irmãs Clementinas a receberam com todo o carinho.