sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O direito à vida

Maria sobrevivia do seu esforço, trabalho infindável, bebés nus, meninos descalços. O marido, presente e bom pai, marido benevolente que dizia e pensava: Só tens que me dar cama e roupa lavada. Tratar dos nossos filhos como se só teus fossem, fazer a nossa janta, abrir o corpo no sono de vez em quando.
E Maria fazia e não retorquia, às vezes andava triste mas não chateava nada.
Maria sobrevivia do seu esforço. Levava os meninos à escola, e levava o bebé no colo para não ficar sozinho em casa.
Pelo calor!
Mais pela fresca chegava o seu homem, cansado e contente de chegar a casa, para se recostar, para a Maria limpar a cinza dos seus cigarros sem se zangar.
Um dia, a Maria teve uma surpresa. Reparou no peito duro, no ciclo normal das coisas que tardava em chegar, e dia após dia, continuou fazendo o que já fazia. Carregou sete sacos de compras, a carteira vazia, e levava o bebé no colo para não ficar sozinho em casa.
O corpo nunca a enganava, doía e inchava, e em si pulsava outra vida. E Maria sobrevivia do seu esforço, trabalho infindável. O marido, bom homem, fiel e honesto aninhado no sofá, amante de coisas sem importância, como um copo de vinho, um cinzeiro e algum dinheiro, coisa pouca.
Chegou perto do seu ouvido e disse-lhe:
Estou grávida e muito triste. Carrego um peso no peito, uma dor de encovar os olhos, um sentimento enviesado, um nó na cabeça, uma imensa e eterna pena.
Não estou feliz, estou triste!
Então o seu homem falou da sala de estar para a cozinha e assim disse:
Deixa lá Maria, com tanta tristeza na alma não se deve fazer vida. Não te deixam descansada!
Sobreviveu ela e os seus filhos, que para repartir já não tinham nada. Deram o que tinham uns aos outros, e o pai benevolente, consciente aceitava.
Nesse fatídico dia, Maria levou os filhos à escola e o bebé no colo para não ficar sozinho em casa.
Sobreviveu mais um pouco a Maria, nesse dia sobreviveu!

Sem título

Sombras de luz inclinada
bonecos  de marfim
Rosáceas na face espantada
o pitoresco de mim
Nada para dizer
nem de outra forma
nem assim
A palavra desfeita em letra
caída aos meus pés
Só poema sem fim!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Minha Nossa Senhora

Descobri o terceiro milagre de Fátima (apesar de já ter sido revelado).
No ana de 2004, o fenómeno de Fátima rendeu à igreja 11,8 milhões de euros. É ou não é um milagre?
Fátima, quando nos visitou, disse aos pastorzinhos:
Vejam lá se dizem a todo o pessoal que eu apareci. Tive uma trabalheira do caraças, nem tinha lá nenhum vestido apropriado, mas depois disseram-me, -- Leva o de lantejoulas para brilhar com o sol. Vai bem arreada que eles vão fazer medalhinhas e canetas com a tua figura. Diz aos pastorzinhos que em 2004 vão ganhar essa pipa de massa, que eles até se vão passar da cabeça. E sobe a uma oliveira, que é mais fácil que um eucalipto.
E pronto, cá estou eu. Não sei se isto é uma oliveira, mas já estou cansada de estar aqui! Os pastorzinhos olharam uns para os outros e pensaram: "Que linda senhora. Nunca vimos nenhuma assim - Donde vieste? Quanto é um euro? Tens algum aí ?
- Vim do céu, ora bolas! Os meninos não vão à missa? Não sabem que existe o céu? Ai! As minhas costas! Vou descer daqui! Euros? Não tenho bolsos ó putos! Náo me deixaram trazer malinha, nem mochila, nada! Que não ficava bem à Nossa Senhora vir de mala.
Os pastorzinhos sentaram-se, as formiguinhas a passar na erva seca, "Anda, senta-te aqui ao pé de nós".
- Ai! Obrigada, estou toda partida da viagem e ainda tenho mais dois milagres para revelar. Deixa ver se me lembro.
Deixa lá isso Nossa Senhora. Quanto vale um euro? Cinco escudos? Dez?
- Duzentos escudos putos, vão ficar ricos graças a mim, por isso, agora a seguir, vão já dizer a toda a gente que me viram. Não dizem os milagres, só dizem que me viram e que estive na conversa e que desbobinei que iam acontecer umas coisas. Ai!! Os outros milagres parece que não me lembro, depois inventem vocês!
Os pastorzinhos sacaram dos seus pães com chouriço e ofereceram.
Ná, obrigada! Não como chouriço nem enchidos nenhuns, fazem-me mal à tripa, e tenho que me ir embora. Pensei que ia encontrar mais gente, mais pastorzinhos! Gostava tanto de ver um pastorzinho bébé! Bem, mas correu bem assim. Corram agora vocês, pastorzinhos. Corram a dizer ao pessoal que me viram, mas atenção, não digam tudo o que eu disse. Vou-me embora. Que vestido horrível para andar aqui!!
E os pastorzinhos acabaram calmamente os seus pães e largaram a correr encosta abaixo encosta acima, encosta abaixo encosta acima, encosta abaixo encosta acima, como a Nossa Senhora lhes tinha mandado, mas depois perceberam que talvez fosse melhor ir diretamente para a aldeia contar tudo mas sem revelar nada. Tantos milhões de euros era muito dinheiro!
Que linda senhora!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O politicamente correto

O politicamente correto
Não dizer caralho próximo de senhoras de idade.
Não dar peidos em reuniões do concelho de ministros, ou outras.
Não escrever Deus com minúscula.
Em caso algum lavar a peida em público.
O politicamente correto
Nunca reconhecer que há dias em que o sexo é uma verdadeira merda.
Não tirar macacos do nariz fora do automóvel.
Não fumar, nem no quarto, nem na sala, nem na casa toda, nem em nada que tenha telhado e parades. Só à chuva.
Não fuder o juízo às pessoas.
Não mentir, pelo menos descaradamente.
Não esperar um colhão de dias para apanhar a roupa do estendal.
Não tirar a dentadura num espaço com menos de cem metros quadrados.
O politicamente correto
Nunca cobiçar os "bonzaços" das outras.
Não bater, nem no pai, nem na mãe, nem na avó, e não bater com a cabeça nas paredes (brancas).
Nunca mijar pernas abaixo, mesmo velho e doente.
Nunca bater punhetas à luz do dia,
E não ter maus pensamentos,
Nunca por nunca ser!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Peninha

  Ainda que pareça uma frase feita
a verdade é que o vento lhe fustigava todo o corpo,
que parecia querer caír
sobre o mar distante.
O mar,
que o nevoeiro raramente deixava ver.

O som,
esse era tenebroso.
convidando-te a descer
o inquietante abrupto horizonte.

Não há palavras!
Ou se as há
eu não as tenho.
Não nesta mesa de cozinha,
no sopé do monte.


    Di:

Está um pão no micro para arranjares para levar.
Almoça. Há canelones no frigorífico, ou arroz com atum.
'Tá aqui 10€  (empresto).
Bjinhos

                                          Mãe Edite

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Sem título

  Havia uma infinidade de coisas entre os seus olhos e as gotas que pingavam da torneira, e vagos pássaros e longínquos automóveis a preencher o silêncio cheio. Não lhe interessava se estava sentado na sanita, ou num banco, ou na varanda mais bonita, O que lhe interessava era reconhecimento da existência e da vida, e era o que os seus grandes olhos olhavam. Apenas os pingos, um a um, que caíam!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O arrogante João e a parva Inês

   O João tinha uma vida de muitas e lindíssimas mulheres, exibidas como troféus, aos amigos e aos conhecidos, em festas de ocasião.
   "Esta é a Inês. Eu tenho cinquenta e ela tem vinte e três". Como aos amigos tanto lhes fazia que a Inês tivesse aquela, ou outra idade qualquer, o João prosseguia na descrição pormenorizada da fortuna do pai da preciosa Inês, um homem que afinal até era para a mesma idade que a sua, e até se tratavam muito familiarmente por "tu"!
   E como os amigos pouco interessados estavam em hectares próximos de Beja, ou Viana do Castelo, ou o que fosse, o João insistia que ele e a Inês se davam maravilhosamente, desde que se tinham envolvido, havia dois ou três meses. E não querendo saber os amigos de tão fugaz felicidade, o João passava para os conhecidos, que sempre simulam uma expressão de interesse, e de inevitável delicadeza, como quando se conhece mal alguém, e se tem esperança que da sua conversa nasça alguma coisa de relevante.
   E a Inês? A Inês não podia dizer: "Este é o João, e tem metade da minha idade, pois sobrar-lhe-iam apenas onze anos e uns quantos meses de pessoa, o que é um pouco absurdo, e nada vangloriador! Também não podia falar de fortunas, porque o João nada tinha, para além da sua voz quente! O que podia dizer aos amigos era: "Estou completamente apaixonada por este velho a dar para o gordo", mas isso também não ia dizer, porque não é coisa que se revele nem aos amigos, quanto mais aos conhecidos. Até porque, se calhar, disso a Inês nem se apercebia, porque o amor não escolhe idades, nem densidades, nem volumes, nem recheios de carteira!
   E não tendo nada de relevante para dizer sobre o João, amando-o só porque o amava, a inocente e inexperiente Inês participava nas conversas, calada, apenas deixando, involuntariamente, os olhos brilhar!


 

Canção

Um mero pensamento
um gesto afetuoso do vento
um mar de palavras
amor de brisa em movimento,
e noutro momento
a chuva em bátegas

Às vezes o dia seguinte
o sol molhado sobre a erva
e depois o tempo
que cai sobre a pele
e sobre o rosto
substituindo
a lágrima transparente
dos olhos breves
e inocentes....
e noutro momento,
diferente,
a chuva em bátegas.


Janela de sotão

O intenso da chuva por trás
por trás a janela do sótão
a sugestão do vento
o tempo cinzento.

À frente uma eloquência de livros
um cavalgar de cavalos
um alento grandioso
uma quimera, sei lá!

À frente um poema sem nada
oco por dentro, evidentemente
pulsando de vida quente
e macia

O intenso da chuva por trás
a janela do sótão
a sugestão do vento
o tempo cinzento...

EG, abril de 2019

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

   Quinta-feira

O meu dia do corropio é quinta-feira! E o seu? É à sexta não é? É como o meu, dia após dia, nem sábado nem domingo hão-de escapar. A sua hora tranquila é à noite, no sofá, não é?  Começa a ver televisão, e o som vai-lhe fugindo junto com as imagens, devagar!  E cochila um cochilo torto, e acorda, e mete-se na cama depois de acordar. Estranho não é?
À segunda começa a semana, começa o mês, começa o ano, começa o que começar. À terça começa igualmente qualquer coisa, para mim e para si, não é?
Começa com um apito, um trinado, uma sinfonia, um homem a falar. Qualquer coisa que entre no seu sono profundo, e que, à quarta-feira, ou outro dia à sua escolha, o faça recomeçar.


Não está chuva nem orvalho,
está um frio do caralho!

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

             Lisboa 2

Pisando a calçada molhada
devagar
Cada passo triste
Cada gota de chuva
é Lisboa a chorar.
Pisando a calçada molhada
devagar
Cada memória perdida
é um fio de vida
uma gaivota
abrigada do mar
Cada passo triste
Cada gota de chuva
é Lisboa a chorar.
Pisando a calçada molhada
devagar.

 



        Lisboa 1

Lisboa vista desta janela,
numa colina
sobre a cidade.
É isto, Lisboa
tanto soalheira,
como beldade adormecida.
Para mim,
às vezes,
é a demência amarrada às macas,
a sala de trauma,
os condutores imprudentes,
o escuro!


sábado, 3 de janeiro de 2015

Leia!

Leia! Leia muito português
Que não lhe servirá para nada
Leia a Bola e a Maria
E faça as palavras cruzadas.
Leia jovem, leia adulto,
No país das golpadas,
e discuta consigo mesmo
tudo o que ler lhe deu,
mas que nenhum dos outros leu!
Leia. Sente-se e converse!
Quando fôr falar com um chefe,
um homem bem sucedido,
que sem ler a ponta dum corno
foi sempre sendo promovido.
Comece a ler de pequeno,
Mas não leia Dickens nem Grimm,
leia contos de atrasar,
" A avó foi fazer cócó",
"O penico pequenino",
para  não assustar o menino!!
E em jovem leia legendas,
que não é mau para começar!
Leia e escreva mal!
Se quiser ter um bom emprego
é condição preferencial!
Leia muito em Portugal!
Leia ordens de serviço,
A fronha de quem as escreveu,
que de tão incompreensíveis
são as que toda a gente mais leu!
Leia Camões e Pessoa
Ponha os seus óculos de sol
e vá conduzir na broa,
enquanto lê o jornal!