terça-feira, 29 de setembro de 2020

Levantei-me da cadeira, aborrecida com a história inacabada.   

Era claro, para mim, que Dióstenes, quando escondeu a boneca, fê-lo num local que achou ser o último onde iriam procurar. Eu, pela parte que me tocava,  tinha a forte convicção de que ele era um gigante bom, daqueles que procuram não fazer mal a ninguém mas que, por força da sua ingenuidade e do sentido evidente da justiça que a pureza lhe conferia, podia espancar até à morte, num descontrolo do seu imenso poder físico e da sua força brutal.

Não obstante ser óbvio porque escondia ele uma boneca velha e suja num canto inacessível, dada a sua condição de criança grande, não era perdoável que fizesse justiça com as suas próprias mãos, apesar de  ser claro, para ambos, ele e eu que o inventei, estar, com os seus atos,  a impedir determinado indivíduo de praticar um mal maior do que aquele de fazer desaparecer um indivíduo de pérfidas atitudes. 

Dirigi-me a uma das janelas poente da minha casa e olhei a imensidão. Incomodava-me não saber para onde se dirigiu o meu personagem depois de ter tapado o brinquedo com uns trapos que por ali tinha e sair à pressa, claudicando pelo caminho, que, à medida que os minutos e as horas iam passando, se foi tornando mais escuro e denso por força do anoitecer.

Dióstenes só escondia a boneca quando tinha medo que lha tirassem, convencido do seu valor estimativo, como se não houvesse outro valor para além desse, como se fosse para a toda a gente a única quantidade mensurável que nos faz mover, ou talvez, porque sabia da forte possibilidade de a quererem para si, ela que era tão bonita com o seu vestido de cor não identificável e alguns vestígios de azul, indicando a frescura de outros tempos, quando foi comprada por bom preço e retirada de uma montra de natal.

Na sua ausência, uma criança entrou, sorrateira pela barraca, afastando um pouco um painel  de alumínio que estava a tapar um buraco da parede.  Entrou, procurou por todo o lado e voltou a sair agilmente, com as mãos livres por serem o instrumento mais valioso para enfrentar as dificuldades e os obstáculos que lhe surgiam pela frente, mas o volume que o brinquedo ocupava era maior do que o espaço contido no bolso e então a cabeça de plástico e cabelos andrajosos, pendia juntamente com quase meio corpo, perigosamente inclinado,  declinando os cabelos emaranhados sobre as calças roçadas do rapaz.

Dióstenes tinha e tem umas mãos enormes. Esse pormenor é incontornável, tem que ser sublinhado dada sua enormidade e a sua postura deformada, o seu semblante mudo, assustado e temeroso do mundo. 

Afastei-me dos vidros, absorta no seu olhar desconfiado. Sentei-me outra vez e anotei, para não me esquecer e no fundo de muitas outras notas,  o seu olhar desconfiado. 

Abrindo um parentises no meu raciocínio, estamos sempre a ser interrompidos por meras trivialidades, como alguém que nos cumprimenta, por exemplo, ou a necessidade súbita de beber um café ou ir ao wc,


( dei por mim a pensar em como existem milhões de formas de escrever, desde a procura da utilização do maior número possível de palavras, para que o corpo da história se torne riquíssimo e percetível...)


Voltei a debruçar-me sobre a floresta que ia sendo atravessada por Dióstenes coxo e solitário. Ao fazê-lo, apercebi-me de que o nome que escolhera para ele viver não me agradava. Troquei-o. Dióstenes mudou de nome próprio e passou a chamar-se... Não sei... Por agora fica assim, já que, entre pensamentos, me reapareceu o problema da finalização.

O miúdo encontra-se agora em sua casa. Uma pobre casa rodeada de hortas mal amanhadas e um simulacro de jardim. Está sentado na beira da cama da irmã que, por sua vez, faz festas no cabelo de Jacinta, a boneca do homem sem nome, aquele gigante que vive aterrorizado com o terror que o seu próprio aspecto produz nas pessoas que se cruzam com ele. 

Dióstenes calcorreia os bosques na mais completa escuridão. Conhece-os demasiado bem para se perder, já os percorreu tantas e tantas vezes, afastando raízes e troncos selvagens com as suas grandes mãos,  calcando mato bravio com os seus enormes pés descalços, adaptáveis  às pedras, aos espinhos das plantas enrodilhadas em si mesmas, até ele passar, vezes sem conta, e abrir caminho por entre elas, arquitetando um túnel  até ao sopé da serra, onde viviam, numa pequena aldeia, duas ou três dezenas de pessoas, que Dióstenes espreitava sempre que  alguma desconfiança lhe nascia, na sua mente infantil.


Bebo um golo de àgua. A água faz-nos maravilhas, dizem, pelo menos é fresca e sabe bem. 









sábado, 19 de setembro de 2020

A borboleta Incongruente

 Mais um #reparo, uma situação inusitada, ou impossível, ou improvável, não sei, 

mas passou uma borboleta desesperada junto a mim.

Enquanto ia passando, contou-me que estava meia perdida naquele universo próprio dela, 

onde as flores eram tantas e as árvores se juntavam de tal forma umas às outras,

 que o aroma do sémen das plantas se dispersava e confundia no seu nariz de curta vida, 

e ela, arreliadíssima com essa desorientação que a fazia desperdiçar um tempo precioso, 

lhe baralhava os sentidos e a impedia de farejar como um cão farejador.

Ainda para mais, a criança pegou-lhe pelas asas, 

destruindo mais de metade do pó de borboleta que a cobria, e acabou por a deixar cair das mãos.

A pobre ainda deu três voltas desnorteadas em queda livre, mas, felizmente, lá se recompôs, 

mesmo antes dos seus olhos se espatifarem contra o chão.

Essa manobra infantil fê-la perder grande parte da leveza que tanto a ajudava em tudo, 

e que ficou estampada no sorriso da criança, revelando-se em espanto e alegria inocente.

"Imagine", desabafava, agitada, " muni-me de humanidades idiotas, 

e invejei a capacidade que tem a águia de se elevar nos céus e, com os seus olhos de lince, 

perceber,  lá das alturas, qual dos caminhos a seguir."

"a chuva, ao contrário daquela que ousa sair dos poemas, límpida e brilhante,

 cheia de beleza enganadora, revelou-se perigosa, por isso me escondi debaixo de uma folha, 

para não me aborrecer com o tempo perdido em voltas a mais, e de onde saí, atarantada, 

tentando localizar as gotas de néctar contido nos cálices e nas pontas das pétalas, 

isto se não chovesse mais."

E se era aquele o lugar ideal, o paraíso  para os insetos mais bonitos do mundo, 

por causa  das suas protuberantes asas pintadas,  

para todas as pessoas e também para os harmoniosos deuses que afinal pouco faziam para travar as intempéries.

Era mesmo coisa de borboleta, aborrecida com as horas que passavam, desnecessárias e lentas, 

e que lhe afetavam as cores dos olhos minúsculos, acastanhados e raiados de azul.


 





sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A BORBOLETA INCONGRUENTE

O impossível aconteceu. Impossível talvez não, antes improvável, a verdade é passou uma borboleta desesperada junto a mim. 
Vinha perdida naquele universo próprio dela, onde as flores eram tantas, e as árvores juntavam-se de tal forma umas às outras, que o aroma do sémen das plantas se dispersava no seu nariz e ela com curta vida, arreliada com uma procura que a fazia perder um tempo precioso, que a fazia baralhar os sentidos, e a impedia de farejar como um cão farejador.
Ainda para mais, a criança pegou-lhe pelas asas, destruindo mais de metade do pó de borboleta que a cobria, para a deixar cair das mãos.
A pobre ainda deu três voltas desnorteadas em queda livre, mas, graças a deus, mesmo antes dos seus olhos se espatifarem contra o chão, lá se recompôs, a custo, e uma das muitas consequências, talvez a mais grave, foi perder grande parte da leveza que tanto a ajudava em tudo, e que ficou, muito belamente, estampada no sorriso da criança,  entre o espanto e a alegria inocente.
Era quase impossível que fosse desespero. Podia também ser tristeza, falta de rumo. ou ainda, alcoól no sangue, tóxico e mortal, mortalmente específico para aqueles insetos insetos mais amados do planeta, só pelo peso das coloridas e protuberantes asas.
A chuva, ao contrário daquala que ousa  sair dos poemas, límpida e brilhante,  cheia de beleza enganadora, também não ajudara em nada.
Ficou irritada com o tempo que lhe ia sendo retirado na proporção do que ficava perdido nas voltas a mais, a chuva foi-se, e ela saíu atarantada debaixo da folha, e prosseguiu.para beber, se conseguisse, o nectar que ficara contido nas gotas dos cálices, nas pontas das pétalas, se conseguisse voar ainda, depois de tão devastadora intempérie.
Mesmo naquele espaço limitado, o paraíso ideal para as borboletas, para as pessoas e para os harmoniosos deuses que nada viam, a borboleta, 
A borboleta, munida de humanidades idiotas, invejou a capacidade da águia se elevar nos céus, e, com olhos de lince, perceber lá das alturas, os caminhos a seguir.
Aborrecia-se a toda a hora, que passava, desnecessária e lenta, que lhe afetava as cores dos olhos minúsculos, raiados de azul.







terça-feira, 15 de setembro de 2020

Narcido

#Narciso passou

em borboleta, 

de cauda preta,

mas desapareceu 

rapidamente.

Primeiro,

rodou três 

vezes no ar,

depois,

atravessou o vidro

sujo,

e os buracos das

persianas.

animando, 

com a sua imagem

fragmentada,

e por breves

segundos,

uma das quatro

paredes.


domingo, 13 de setembro de 2020

 Ao dia sete do mês de agosto do ano de 2018, deu entrada no hospital central de uma qualquer grande cidade, um homem sem nome. 

Embora garantisse chamar-se Pedro, também dizia ter trinta e sete anos, mas o seu corpo, a sua expressão, a sua fisionomia, revelavam, a qualquer um que olhasse para ele, mesmo distraidamente, tratar-se de um jovem que não deveria ter mais do que duas dezenas de anos, o que levou os profissionais a desacreditá-lo, também, em relação à identidade que afirmava ter.

Foi por essa razão que passou a ter como identificação aquela que se dá nestes casos, que é precisamente, chamar-lhe não identificado,e atribuir-lhe os números habituais, que servem, como outro artefacto qualquer, para nos diferenciarmos uns dos outros.

O seu aspeto era franzino, muito mal cuidado, e para além das palavras que proferiu, numa colaboração  quase mecânica, mais não disse todo o outro tempo que permaneceu na instituição até deixar de ser visto.

Pedro lembrava-se, constantemente da mulher e dos filhos saindo de casa de manhã cedo, via-os sentados no automóvel a passar o portão que acabava por ficar aberto o dia todo, para seguirem a sua rotina, ela deixava-os na escola e seguia para o trabalho.

O dia em que de mais nada se lembrava a partir dele, tinha começado igual aos outros, com as torradas acabadas de fazer e um último acenar de mão pela janela da cozinha ao filho mais novo que sempre lhe dizia adeus do banco de trás do carro.

Depois, talvez, se tenha dirigido à casa de banho para acabar a sua higiene matinal, mas havia um lapso perdido nesse curto período, como se o que se pudesse ser preenchido pela memória de outro dia , repetidos vezes sem conta, cabendo na perfeição no vazio que, entretanto, se formara. 


Os médicos empenharam-se com algum sucesso, e ele, aos poucos foi recuperando , primeiro em pequeníssimos fragmentos, e depois em registos maiores, solta no seu pensamento, uma vida passada que poderia, talvez,  não ser a dele.

João adormeceu no passeio, após uma noite de copos. Foi apanhado pelos bombeiros que o levaram ao hospital. Todo o tempo que lá permaneceu, não disse uma palavra. 

Felizmente tinha um cartão com a sua fotografia no bolso, que revelava a indiscutível identificação.

Ele queria falar, mas não conseguia, para lhes dizer que não se chamava Pedro. Trataram-no dessa forma até ao final do tratamento, altura em que foi para o domicílio acompanhado da mulher, uma senhora que dizia ser sua esposa, mas que se lembrasse, nem sequer a conhecia. Tinha um vazio na cabeça com se existisse apenas há escassas horas. 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

 Era uma vez, num reino muito distante, tanto do tempo em que vivemos, como do espaço que ocupamos, semeando vida humana por todo esse planeta, numa distância incomensurável e portanto incompreensível de limitações inimagináveis para quase todos nós, exceptuando uma ou outra criatura que por vias de possuir alguma característica ou objeto diferentes, tais como os donos das bolas de cristal, ou os amigos dos unicórnios que lhes dão guarida e alimento nas suas quintas perdidas nas clareiras das montanhas mais desertas do mundo onde neva metade do ano e  na outra metade as folhas rebentam das árvores assinalando mais um ciclo astral, ou por vias de alguma diferença congénita na forma de olhar ou de tocar, o que não existe, era uma vez nesse reino um homem que vivia junto a um lago que gelava metade do ano e na outra metade cintilava a sua água pelo terreno circundante, e onde podíamos ver, frequentemnte, a aproximação dos veados bonitos e dos duendes pequenitos,  perfeitamente deliciados. 

Carmela chegou-se ao lago, para  mirar a cara ondulada numa das margens, isto se estivesse o tempo prazenteiro que parecia estar. Naquele reino inimaginável e distante, como já tentei tantas e tantas vezes descrevê-lo, sem conseguir,


Hoje, estava eu a escrever um textozito, só aquilo de fazer o gostinho ao dedo, nada mais, coisa muito humilde, porque a humildade é importante para que se apenda, quando resolvo, num gesto habitual, ver a palavra do dia. Não sei o que aconteceu, mas a bendita #ilharga começou a entrar-me pelo texto dentro.

No reino solitário que procurava descrever, longe do tempo em que vivemos, numa imagem que se ia realizando na minha cabeça, não havia espaço para essa palavra, mas ela sobrepôs-se ao meu raciocínio e à minha sensibilidade, associou-se, deliberadamente, às crianças de colo encaixadas na anca e eu não consegui retirar, nunca mais, do homem que inventei, um puto agarrado a si como se tivesse uma cola especial.

Carmela, que eu lhe oferecera como filha e quase uma fada encantada, que mirava a cara ondulada numa das margens, começou gritando "Olha a ilharga! Olha a ilharga!", e eu não pude fazer nada rigorosamente nada, para a calar.

E mais.  Os peixinhos do lago, quando nem sequer era suposto que o lago tivesse peixinhos, nunca foi minha intenção, apenas o vi gelado metade do ano e na outra metade cintilando pelo terreno circundante, saíram da água com os trocos preparados para pagar a Carmela, que as trazia fresquíssimas do mercado municipal. 

Pior, muito pior. Ao longe, bem lá ao fundo,  debaixo da sombra dos sabugueiros, uma ilharga parecia espreitar.