terça-feira, 27 de setembro de 2016

Onde está o Wally?

Para si era invisível a estreiteza do que o seu mundo pequeno e a sua péssima memória lhe davam, o movimento circulatório da rotina. Um exercício com provável propósito, mais nada.Sem aquele preenchimento necessário, uma espécie de universo perdido, uma pequenez de vida.
O seu mundo pequeno, de que se esqueceu, e lhe sobraram apenas algumas palavras de hoje, de ontem e de amanhã, estéreis umas, outras, ao contrário, fecundas.
Da sua absorvância brotavam todos os anos flores de varanda, que tomavam uma importância, nem sabemos que importância tomavam, e o planeta rodando sobre si!
No entanto, e por outro lado, a pequenez do seu mundo era mais que força brutal, avassaladora e persistente, e era nisso e apenas nisso, que era grande e pequeno, pior ainda, enorme ou insignificante.
Aquela insistência dele em pôr nas frases um simples estou vivo, repetidamente, como se os outros não soubessem.
Ouve só o outono, o crepitar das folhas, debaixo dos nossos pés. Ouves? Olha ali aquelas, num remoínho de vento, rodando como eu, em espiral!
Nem fixava a memória dos livros, esses livros, um problema quixotesco, melhor dito, um universo infinito.
Atormentava-me a sua pequenez de mundo, a sua falta de memória, uma memória sem tenacidade nenhuma, lembrando apenas uma ou outra coisa pequena, e depois, aquela explosão! Parece que ao explodir se espalhava em estrelas no firmamento.
Como se os outros não soubessem!
E por saberem, eram então repentinamente puxados para o mundo mais pequeno do mundo, que é o WALLY a lavar a louça!

Eternidade ( Adaptado para Enciclopédia Ilustrada)

Um frémito!
Sem um grito
nem um tremor
nem um gemido.
Um frémito, só!
Nada a ver
com aquele torpor
que nos faz
dar balanço
a um baloiço,
eternamente,
tendo debaixo dos pés
enormes folhas,
de outono!
Numa, que apanhei,
das maiores,
onde tentei escrever:
frémito!
E ela partiu-se,
como se partem
as folhas secas,
em pequeníssimos estalos,
sem um gemido,
sem um grito!

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Navalha ( Enciclopédia Ilustrada)

Espetou uma navalha na velha.
Na virilha.
Calhou lá estar a filha,
toda ela uma pilha,
de nervos.
"Empresta aí a navalha, ó Canivete!
Eu mesma a vou estraçalhar!"
E vai de dar golpes certeiros
para lhe atingir a femural,
e enquanto a velha esguichava, dizia,
Tens um defeito estrutural.
"És uma gralha, és uma gralha!
E és de palha, e és de palha!
Uma navalha, uma navalha!"
...Horas nisto,
já a mulher estava morta há que tempos

Turismo (Enciclopédia Ilustrada)

Uma pessoa a querer escrever outra coisa qualquer, não sei bem o quê, mas é bonita.
Debruado nas pontas em rosa, e fiquei-me por aí.
Só me vem à cabeça o bendito turismo e os turistas, com os seus paus de telemóvel, e eu a querer passar, e o meu pessoal a dizer, olha aí a fotografia, e paro.
Outra vez!
Debruado nas pontas em rosa, o meu casaco, ou eu a turistar por esse mundo fora, lenço preto e cinzento, que baloiça no vento, longe daqui.
Uma pessoa a querer escrever outra coisa qualquer, não sei bem o quê, mas é bonita.
Já os restaurantes começam a lotar de turistas, de turismo, e eu a querer escrever outra coisa qualquer, mas não interessa.
Eram só os búzios ao fim do dia, insignificantes, nos restinhos de água morna, da maré vazia.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Natureza morta

Sob um pretexto qualquer
perdi a vontade.
Ai o que fazem as palavras
e o amor às folhinhas!
Nunca vi tanta falta de humildade,
junta!
Credo! É impressionante!
Nunca vi nada assim!
Cansei-me daquela coisa de ser nuvem
ou pedaço de céu!
Não é para mim.
Para além de que
odeio rimas de toda a natureza e feitio.
O que é que me deu?
As rimas costumo escondê-las
por motivos óbvios
Noutros lugares das palavras.
Apanho boleia do seu ruído flutuante,
influente,
e depois se vê...!
Mesmo assim
gostava de seguir em frente
e ainda conseguir envolver nos braços,
nem que fosse, por exemplo,
de um lado,
um ramo de margaridas amestradas,
e do outro,
um eucalipto
e dois ou três arrogantes de mãos dadas!
Ai, esta cabeça!
Uma folha seca,
pintada à pressa,
a tentar avivar
uma puta duma natureza morta!
Tentar, inutilmente
movimentar a merda da tela,
parada!
Põe-te a mexer!
Parada e parda
como o papel de embrulhar o café!
Olha! Acabou-se-me o espaço na folha!
Lá vai isto já de viés,
e sem tinta na caneta,
outra vez!