sexta-feira, 29 de junho de 2018

Xerém

A edificação escondia-se atrás do nevoeiro, mas Arqueógenes, para além de saber muito bem o que fazia, vivera desde sempre naquele castelo.
Seu pai, Felizfuribundo III, era o senhor daquelas terras após ter contraído matrimónio, havia muitos anos, com Segismunda Belador, a Raínha das Raínhas.
Em tempos difíceis o pai sempre ensinara ao filho a enfrentar todas as adversidades, mas nunca o reino dos Fulos tivera um inimigo tão poderoso como aquele. Eram as almas do outro mundo, as Vacuo Vaca, lideradas pelo implacável #Xérem.
Quando, finalmente, e depois de passar a ponte levadiça, tinha que chamar a atenção dos guardas, era um desleixo inconcebivel deixar aquela cena para baixo por causa do inimigo, conseguiu abrir a velha e pesada  porta não quis acreditar no que viu. Mulheres, crianças, guerreiros, animais domésticos, todos jaziam sem vida, no chão.
Foi então que, no meio do silêncio da morte, Arqueógenes ouviu o  choro débil de uma criança, e dirigiu-se para o canto de onde o som provinha.
Enrolado nuns farrapos estava um bebé de colo, ainda com vida.
Pegou-lhe, cautelosamente, sem por um momento imaginar que Xérem se tinha apoderado da alma do inocente, e quando os seus olhares se cruzaram Xérem, o odioso, chispou-lhe para cima resmas de coisas medonhas,
E enquanto o seu corpo se contorcia, Arqueógenes perdeu todo o cabelo, penas de pavão brotaram-lhe violentamente da pele e os sapatos saltaram-lhe dos pés, esses pés que se iam transformando, aos poucos, em enormes e horrendas patorras peludas.
Arqueógenes, com as forças que lhe restavam, conseguiu fugir, mas ainda hoje, séculos depois, quem olhar mais atentamente sobre o castelo, lhe poderá ver a sombra patuda.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

mmm

"Arranja-me aí umas calças apropriadas para ir plantar um pinheiro no bairro de Santa Eufémia.
Podem ser as #wrangler do avô, que eu ponho um cinto.
Depois, para o jantar, logo me visto melhor, com o vestido dos quiwis.
Joana, obedece à D. Leonilde, fazes o favor. E tu, Gonçalo, quero o peixe comido até ao fim.
Raça dos miúdos!
Até logo, se Deus quiser!"

quarta-feira, 27 de junho de 2018

...

Era uma vez, há muitos milhares de anos, uma família de homens e mulheres primitivos.
Num tempo em que os povos ainda eram nómadas, este clã resolveu instalar-se numa caverna, onde já tinha pernoitado uma ou outra ocasião, quando andava em trânsito, e da qual a maioria dos membros tinha gostado muito.
A mulher observara que ali cresciam belas trepadeiras selvagens, evidentemente, naquela época tudo era selvagem, incluindo eles, num determinado dia em que, estando exausta da caminhada, tinha pedido ao marido: "Leva-me pelos cabelos se faz favor". e indo assim descansada, escorregando as costas pelas ervas e por um ou outro calauzinho rolado, que até lhe sabia bem, o belíssimo casaco de pelo de bisonte  ajudava ao deslizar pelo chão, podia apreciar o que a rodeava, para, mais tarde, com um calhauzinho afiado, desenhar uns enfeites nas rochas que faziam de parede interior daquilo que seria a sua nova habitação, pese o facto de não ter grande jeito para o desenho, possibilidade que nenhum arqueólogo da atualidade ousa colocar.
Dias depois, tinham já delimitado o seu espaço com uma #vedação feita com ossos de canídeo das estepes, e estando as crianças distraídas  a jogar ao berlinde com olhos de vários animais, que a mãe, por graça, lhes entregava enquanto os estripava, um mamute enfurecido correu para eles e espezinhou tudo, arrancando, até, os espinheiros que tinha plantado para, na primavera, darem flor.
Felizmente conseguiram fugir quase todos. Só a matriarca da família se deixou ficar para trás, porque já não se desenvencilhar sózinha, com a sua muleta de pescoço de girafa, demasiado maleável, que lhe tinham oferecido nos anos, e também não podia ir de arrastão por causa das doenças dos ossos e das articulações que lhe ofereceram as muitas luas que a que teve ocasião de assistir.
O homem ainda olhou para trás na tentativa de a salvar, era seu filho, mas já só a viu esborrachada com o estômago a esguichar restos de "coelho à caçador" que tinha comido na última ceia.
Horas mais tarde depois de uma longa caminhada, as crianças deram por falta da avó, pelo que questionaram os pais, mas os deuses produziram uma trovoada violentíssima naquele momento e um raio caiu-lhes sobre a cabeça, deixando os seus corpos calcinados debaixo do embondeiro mais bonito que alguma vez existiu.
Ficou para a história esta pergunta por responder.







terça-feira, 26 de junho de 2018

Uma Boa Piada

Uma boa piada,
a vontade de preencher
papeís em branco.
Imaginar  nuvens nos pés.
Imaginá-los brilho, e luz,
que se procuram
em nada.

Não há corpo a pairar.
Não existe. És só tu
e reflexos do que foste
outrora e do que serás
a seguir.

Não há critério na escolha
só um objetivo
na ponta dos dedos.
Eventual e, ou virtualmente,
tanto faz.

Ouvem-se muitos sons.
Parecem vozes
ou notas musicais,
separadas, soltas, ou não.
O #urânio, e volfrâmio,
que tanto estão  próximo
como se desfazem,
num eco longínquo.

E enquanto tudo acontece
as palavras vão ficando,
cada vez mais,
doces sobremesas.
ao lado de
grandes e  ininteligíveis
ciclos de vida,
sem regras, ou sequência,
o que é, efetivamente,
bastante engraçado.

E lá vou eu, observando,
formando ondas que
acabam por desaparecer,
ou talvez outras coisas
que não sei,
mas que retêm o tempo,
imobilizando-o, contra vontade,
numa folha.








terça-feira, 19 de junho de 2018

...

Da última vez que estive em Roma, mais propriamente no Vaticano, tive o previlégio de dar duas palavrinhas ao Papa. Perguntei-lhe, evidentemente, se não se queria ser membro da Enciclopédia Ilustrada.
Disse-me que sim, que já tinha tentado, uma amiga recomendou-lhe como forma de se esquecer um bocadinho das guerras e da fome no mundo, mas foi bloqueado, e não voltou a tentar.
"Que pena", observei eu hoje, quando ele me ligou para o fixo (mais um bocadinho não me apanhava porque fui às compras), às nove da manhã em ponto, para saber qual era a palavra do dia, ao que lhe respondi, #Nick Drake.
"Isto de desejar paz paz e amor para todos os que precisam, dentro do que posso, derivado à minha condição de Papa, e dos  que me vêm à ideia,  dá trabalho! Às vezes, como sabes, até me desloco para lá. Alguns locais perigosos. Terríveis! Passo cada arrepio!"
"Esse teu ofício, chama-se papar, não é?", atrevi-me a perguntar, pela confiança que já me tinha demonstrado," mas fiquei sem saber, porque não me respondeu. Se calhar não ouviu, eu também não insisti. Continuei:
Pois, dava-te jeito. Nos intervalos, relaxavas um bocadinho.
Queres que eu fale com eles?
Tens telemóvel?"






segunda-feira, 18 de junho de 2018

Sem Título


Teodora #McCartney era uma mulher orgulhosa do seu marido.
Quando o via a sair de casa, logo pela fresquinha, para a sua caminhada matinal, obrigava-se a esse hábito saudável desde que o seu posto nos Correios de Portugal fora descontinuado, ia a correr  espreitá-lo pela janela, para ver o seu gesto de ajeitar o chapéu, e seguir, devagarinho, pelo passeio, arrastando ligeiramente uma perna.
O senhor M, durante vinte anos serviu a mesma instituição, colando  selos nas cartas e nas encomendas, mas depois a automatização do processo fez com que a empresa não necessitasse mais da sua saliva, e foi quase obrigado a aceitar  uma pequena indeminização, para deixar os quadros da empresa..
 Ainda conseguiu aumentar ligeiramente a quantia por ter adquirido calo na língua, que, depois de muita luta, foi considerado  doença profissional, mas acabaram por gastar quase tudo num cruzeiro idílico pela costa algarvia, que é bem linda.
Quando o via sair assim, airoso, às vezes abria mesmo a janela para lhe gritar:
"Ó filho, traz o pão de forma, não te esqueças!"





domingo, 17 de junho de 2018

Levada

As conchas e os búzios
rolavam conforme a água
ia e vinha
nas sobras das ondas
que amaravam na praia.

Ao chegar, morriam.

Depois, mais tarde,
muito mais tarde,
onde estás tu?
E tu, e tu e tu?
E foste embora,
Ou irás....,
ou vais...,
ou vou eu.

Morria uma e logo
vinha outra,
displicente
e fraca.

Curvamo-nos para as
apanhar,
e o nosso corpo
inicia nessa altura
gloriosa
o processo
de cair para a frente.

São #levada(s) para
outro lado,
porque estão sujas.
Abro a torneira,
deixo correr a água
e ouço o barulho
do mar,
um disparate.

Daquele mar
tranquilo,
de ondas mortas,


Estava tudo
tão sossegado
na memória
e agora, nitidamente,
as conchas e os búzios
rebolam
na areia.

Procuramo-las inteiras.
para que as possamos ver
como
pedras preciosas.

Mas não vou complicar mais. São apenas, conchas e búzios, (ou  madrepérolas), afinal partidos,
pela erosão dos tempos e ainda hoje, sem falta, hão-de ir parar ao caixote do lixo.



quinta-feira, 14 de junho de 2018

O Nome

Ninguém conhecia aquela figura magra  que aparecia de vez em quando nos sonhos de toda a gente.
Vinha para materializar duas possibilidades, ou mais, e o que antes era só um tranquilíssimo caminho de terra batida, bifurcava como uma língua de serpente.
No do lado esquerdo via-se ao longe uma fonte, e no outro uma capela arruinada, um pedaço de mar, dois terços de um telhado de colmo, mesmo nos países em que não se utiliza colmo para construir os telhados.
Havia que fazer escolhas.
Era o teu nome de inventor que eu lhe colocava, cirurgicamente, e, com a ajuda de uma pinça esterilizada, com todo o cuidado para não bater com as últimas letras na sujidade dos rebordos da moldura onde estava presa a paisagem gigantesca, colocava-o onde me parecia melhor.
Foram as mãos humanas e os seus devaneios,  que a criaram, assim, imensa.
Alguns deles, desses devaneios, loucuras inofensivas, naturalmente estarão mais bem guardados aqui do que noutro sítio qualquer.
A criatura mexia-se lentamente, tinha cara de mãe citadina, pelo menos carregava uma maleta com os documentos, os bilhetes de autocarro, o dinheiro, e outras tralhas sofridas de preocupações e felicidade, como são os pertences da grande maioria das mães que vivem nas cidades, ou, porque não, nos cenários bucólicos com vaquinhas a dar leite e outros géneros alimentares, e vão andando com pó nos sapatos, ou excrementos de pombo.
Com a nossa falta de #juízo, era a origem o que procurávamos nos mundos inentiligíveis,
"Eu não me rendo", é uma belíssima ideia mas muito difícil de escrever, e o difícil desafia-me, leva-me a fazer escolhas, leva-me os olhos até lá, e é por isso que vou ao cinema, ou leio um livro.
Só para ver, ou só para ler.
Infantis. A sonegar a água das torneiras, sim, porque há uma água que é "água de torneira", em detrimento do mar de oceanos indesvendáveis que amigos de palavras como eu, ou daquilo que nos passa pela cabeça sem querer, e que depois escrevemos.  Fica, então, estupida e irresponsavelmente registado, e gostamos.
Se gostamos.
E vou deixar as emendas para mais tarde porque não me apetece.
Pelo menos agora.



Residual

Primeiro.
São águas residuais.
Tão simples quanto
isso.
Águas residuais,
Só pelo #instinto.
Nem são necessárias
análises
de referência,
que referenciam
a toda a hora
o explicável.

Segundo
Não faço ideia
da sua composiçao
É só uma possibilidade
remota, o desejo de
algo que pode nunca
vir a acontecer, ou,
eventualmente,
já ter acontecido.


Terceiro
 De entre tantas,
que navegam
sobre uma base de
moléculas em cuja
constituição se
encontra
esse velho anfitrião
o hidrogénio,
e não há uma fórmula
válida para
"puta que o pariu"
e mais um copo de água
pela cabeça abaixo.
Ou haverá...

Quarto
Uma história encantadora
e sobejamente conhecida,
essa do hipoclorito de sódio
para designar as lágrimas.
Uma verdadeira treta.

Quinto
Afinal não eram
águas residuais.
Até porque  escorriam,
eu própria vi,
quando foi das últimas
chuvadas.
Desciam a grande
inclinação da rua
contornando  facilmente
pequenos obstáculos
e as pedras incertas
da estrada.

Sexto
Vi e ouvi-as mas
de forma vaga.
Tinham um som
aquoso.


Sétimo
Fim











quarta-feira, 13 de junho de 2018

Catalina e os #Heterónimos

Catalina sempre tinha passado por grandes provações.
Logo quando veio ao mundo, fê-lo com muita dificuldade, e, embora não se lembrasse de absolutamente nada, contaram-lhe mais tarde que o diâmetro da sua cabeça era bastante maior do que o orifício por onde fora obrigada a nascer.
Talvez devido a esse primeiro episódio, nada insólito mas muito traumatizante, não sei, não estou bem certa do que digo, nem há cabeça em bico que não se disfarce com um chapéu, ou com um penteado, e  apenas com a tenra idade de três anos,  disso já havia memórias e certezas  vagas, começou a ter perceção, antes do devido tempo de adulto, de uns quantos fantasmas que lhe saíam da pele, sombras que fisicamente ocupavam o  espaço volátil de si própria, arrumadas ao seu lado, sobrepostas em meio corpo como bolachas em travessas, numa festa de hotel.
Imitavam-lhe os gestos. Se dormisse em posição fetal, elas dormiriam consigo, na mesma posição, e , se encurvasse as costas para atar um sapato ou para apanhar um brinquedo do chão, aquelas  presenças imitavam-lhe descaradamente a alegria e o entusiasmo de criança.
Para onde fosse, elas iriam. Repetiriam tudo o que fizesse. podiam, até, ter pensamentos de formatos e consistência diferentes, mas os gestos eram iguais, e, queiramos ou não,  apesar de não existirem, ocupavam matemáticamente um espaço muito maior do que o mero irreal imaginado.
E  para ela, e com ela, Catalina, que era também uma simples invenção sem  importância, durante um curto, ou, quem sabe, extenso  período de vida, dariam ao seu nome uma  comprovadamente difícil longevidade.





Heterónimos



Andava Pessoa pensando,
e passeando..., pois...,
em passinhos distraídos
pelas calçadas desertas de Lisboa,
bons tempos..., calçadas desertas...,
quando, numa inquietação espiritual
que lhe era muito familiar
se sentiu ameaçado.
O coração disparou-lhe disparatadamente,
os #heterónimos, aqueles
sabichões inventados, deram conta de  tudo
como se fosse com eles,
e nos seus próprios corpos,
sentiram as angústias, e os pavores,
e "pernas para que vos quero!",
fugiram.
E ele, assim sózinho e desprotegido,
num  acontecimento
verdadeiramente dramático
foi mesmo agarrado numa esquina,
por dois homens
que lhe tiraram do bolso
os seus preciosos haveres.
Um monte (ou rolo)
de guardanapos  preenchidos
com palavras por corrigir,
por emendar. Sem rasuras.
(Ainda).
Então, numa aflição terrível,
suando, encostado a uma parede,
encheu-se de coragem e esperança
e perguntou-lhes, timidamente:
"Por um mero acaso, algum de vós
que, neste momento, me assaltam,
saberá ler ou  escrever?"








terça-feira, 12 de junho de 2018

Gazeta





O grande horror da vida
da condessa Vanessa,
e o seu maior temor,
era aquela tesoura que a perseguia,
O seu hábito de guardar a poesia
entre as belas trombas
e o fortíssimo cabelo,
não ajudava
causava-lhe, até, grandes dissabores.
E aquelas gigantescas lâminas afiadas
eram terríveis!
Se ela se distraísse,
para descansar um pouco
sairíam de trás da porta,
para lhe cortar o que guardava,
religiosamente junto,
debaixo do penteado,
e depois, claro,
restavam palavras soltas:
"#gazeta, lambreta, trotinete",
ou ficavam as frases
todas misturadas,
recoladas em textos diferentes:
"Lírios tinham que caber
nos primeiros versos",
seguido de,
"Vozes que nem eram dela
passavam de uns livros para os outros",
só para dar alguns exemplos
do perigo do caos instalado
em fanicos de papel.

Para se acalmar, procurava a desinspiração.
"Desinspira, desexpira",
desdizia ela aos seus botões,
ou reenche o peito de ar, condessa Vanessa,
como queiras,
e se te vires ameaçada,
canta uma canção, ou faz o que te apeteça,
para que a distrias.
e, imediatamente a seguir,
lanças-lhe a tua poderosa tinta de polvo.
Fazes pontaria, e já sabes,
ainda que ela
te descentralize a peruca,
tu acertas-lhe  no eixo do corpo.
Sem medos.









....

Joanina que fazes tu,
já  viste a  maravilha
de pousares o  teu corpo vivo,
na margarida,
escrevendo cartas ao namorado?









domingo, 10 de junho de 2018

....

Finalizava
o sétimo
Pensava,
em  contas
feitas
muito por alto,
que precisava
de cento e trinta.
Enquanto houvesse
trabalho por acabar,
estaria ligada à vida,
entrelaçando o seu fio.

Já tinha oito,
novos quadrados,
se contássemos
com o
que tinha nas mãos,
quase no fim.

Um por um,
haveria de os coser,
mais tarde.

Não previu
que no dia seguinte
que se mantivessem
para sempre
dentro de um saco
dentro de um cesto
para o gato

















sexta-feira, 8 de junho de 2018

Homenagem ao meu Gato Preto

Não que perceba exatamente o que diz, palavra por palavra, mas o tom que utiliza não me deixa margem para dúvidas. Aquela conversa é comigo.
Chegou a casa ficou logo enfurecida, nem tive direito a uma meiguice nem nada.
Já o tinha previsto. Sei muito bem quando faço coisas indevidas, e se me lembrei de brincar com umas bolitas que estavam em cima da mesa, dentro de uma taça, também me ocorreu que mais tarde poderia ter problemas.
São giras. Têm uns  pézinhos que ficam agarrados às minhas unhas. Provoco-lhes ligeiros movimentos, com as patas, e depois agarro-as, e volto a agarrar até se desfazerem.
Na verdade não duram muito tempo, e quando se desfazem, deitam um líquido encarnado do seu interior.
Depois de esborrachadas  ficam sem graça nenhuma e vou buscar outras. Ainda restam algumas.
Também gosto de as atirar para o chão. Salto lá para cima e puxo-as devagarinho, até à beira da mesa. Mais um toquezinho, e aí vão elas!
Está-me a chamar. Que chata.
Vou ou não vou? Espreguiço-me. Estico-me para desenrolar o corpo enrolado da sesta e vou para bocejar, mas reparo que ainda tenho o pelo das patas um bocadinho pegajoso, e preparo-me para o lavar, mas  lá vem ela, que refila.
Anda atrás de mim.  Ala que se faz tarde, deves pensar que és muito rápida!  Quando deres por isso já me escondi atrás do sofá, e se tentares caçar-me  com os teus truques manhosos, subo as escadas, ainda nem tu saíste do mesmo sítio, e pisgo-me lá para cima.
Tanto já falaste que até já lhes aprendi o nome. São #cerejas.




quarta-feira, 6 de junho de 2018

Um grande #aliado

Saio para a rua
desço as escadas
abro o portão
atravesso a estrada
passo de passeio
para o lado esquerdo
e perco-me, claro
é suficiente
para me perder
e depois
somo mulptiplico
subtraio
avenidas
e não chego
a uma conclusão
fico não fico
volto para trás
digo adeus e prossigo
mudo de linha
de abismo
e sigo sigo
ou não?

Ou paro e espero?
E se por acaso era eu
que estava
a controlar o vento
ao volante do carro
e, de repente,
perdi a direção?

Ele vai e volta
em rajadas
e a máquina
começa a derrapar
e nem me vejo
muito bem
está a chover,
é muita confusão
e pimba
atropelo-me
na passadeira
por onde passo
quase sempre
a olhar para o chão.



....

Bastava-lhe chegar à janela para que uma ponte suspensa se materializasse no ar.
Do outro lado, borboletas brilhantes convidavam-nos, iluminando os recantos ao formarem enormes cachos.


...


Tentava ultrapassar
os limites da sua própria
imaginação, quando
a belíssima paisagem
da janela verde e amarela
se interpôs,
assim de repente,
entre o imediato e urgente,
e a sua distãncia
em anos luz
de um lugar que não é
praticamente  nada,
uma pequena vírgula
onde está sentada.
O caminho é estreito
faz uma ponte pelo ar
sobre a estrada, até às árvores
e para mais, do outro lado,
enche-se de borboletas brilhantes
e nos recantos à sombra
penduram-se umas nas outras
formando cachos.
E fechou os olhos para levar
a imaginação ao seu limite.
Viu  borboletas brilhantes
escondidas nos recantos,
formando cachos.
"Anda aqui comigo,
que eu vou-te mostar.
Estás a ver isto, a folha toda seca,
o fruto mirrado?
Isto são...
#aliados, uma praga!"
Mas nem o ouvia.
Fechava os olhos para ver as borboletas
e para não saber de mais nada.





terça-feira, 5 de junho de 2018

Zimbório

Simplemente me disseram, não pares de mexer os dedos, e eu continuei, sempre.


Pela beira da auto estrada andava um homem. As pessoas passavam, dentro dos carros e comentavam: Olha, um homem!
Ele, por sua vez, não se lembrava de ter ido ali parar.
Subiu ao alto do zimbório, para ver as vistas, os turistas.


Debruçados sobre eles, os dois patologistas  examinavam os cadáveres.
"Se vires com atenção, um tem apenas as órbitas e o outro agarra com uma das mãos, a esquerda, o que revela que era canhoto, agarra, dizia eu, , o que parecem ser dois olhos. Tira uma foto.
 Presumivelmente são os mesmos que faltam no primeiro. Temos que recorrer ao ADN para que constitua prova."
"Mas faltam os olhos, também, ao corpo encontado nas margens do Tamisa."
"Sim..., é verdade. Tens razão. Podem ser desse, e até faria mais sentido.
O assassino matou-os às oito e trinta, Há testemunhas que ouviram gritos quando vinham para a missa das oito, atrasados precisamente meia hora. E mais, pareceu-lhes, ao olharem para cima, verem sombras enraivecidas no #zimbório, e sangue a escorrer pelas paredes. Já descartámos a hipótese do sangue. O laboratário diz que  é Compal de frutos silvestres.
E o que é isto que este tem entre as unhas? Aparenta ser ovo mexido. Recolhe.
A propósito..., sabes se chegaram a encontrar a mão do velhote do caso de ontem? Eles que procurem melhor. Deve estar entre as silvas."




.



segunda-feira, 4 de junho de 2018

Só um bocadinho #Yardbird

Num livro de poemas que tinha lá por casa,
com a lombada gasta da forte luminosidade,
nesse livro velho,
com as palavras quase mortas,
sufocadas no seu interior,
os versos por declamar
reclamavam, lá de dentro
não ser versos
assim enterrados para sempre.
Abri-o, aleatoriamente.
Eram duas páginas vazias,
pelo menos de sentido,
embora as palavras estivessem
arrumadinhas no seu sítio habitual,
sobre o papel quase branco.
A injustiça, evidente, em relação aos outros,
aos que são entregues a vozes sensuais,
fortes ou sonantes,
que os libertam e os projetam
em todas as direções,
dando-lhes um corpo volátil,
e fazendo-os embater
em paredes côncavas,
e em tetos ovais,
que são as salas vivas,
de onde retornam, gloriosos,
num vaivem que só termina
numa plateia
de milhares de ouvidos refratores,
essa injustiça, dizia, fragilizava-os,
e, com tantos poemas eternos,
logo eles, acabariam,
inevitavelmente, por morrer.




domingo, 3 de junho de 2018

Mais Mar em Liberdade

Sentaram-se
no paredão
a olhar
o oceano.
com as mãos
nos bolsos,
defendidas
do vento forte.

As ondas
rugiam
quando
embatiam
nas rochas.

Gotas
salgadas
preenchiam
o vazio
molhando
as suas caras,
os seus rostos.

No pontão
observando
o mar,
as testas
franzidas,
com minúsculas
rugas
de espuma
fria
em volta
dos olhos.

Os cabelos
enrodilhavam-se
por causa
do vento.

Prendiam-se
nos brincos
nos narizes
nas bocas.

E  ficavam
por ali,
a ver passar
o tempo
que surge,
normalmente,
acompanhando
o rápido
movimento
das nuvens
cinzentas.

E ouviam
ambos
cantar
os búzios
na tempestade.

Mas era
apenas
o eco
das suas vozes
que saía
dos corações
perfeitos,
dos pés
enrolados
das algas
bailarinas.











Três Pontos

Saltava dos livros
e saltava dos lírios
e tinha doenças
que trazia na mão
em ramos floridos.
O sangue verde vivo
corria-lhe nas veias.
Saltava do livro
o fruto futuro
maduro,
e os bolbos que punha
no chão
eram ramos de células
circunlantes mas verdes
em total liberdade.



O Monstro da Àrvore

Adoro  o seu perfil
bordado a verde.
Os buracos das órbitas
são visíveis, sempre.
Uma teia descarnada
e assimétrica
encobre-lhe a existência,
mas eu vejo-o.
Só eu o vejo.
É meu.
Deste lugar inconcebível,
onde monstros de papel.
se reinventam
nas copas
das árvores.

As suas barbas tenebrosas
balançam, livres,
ao sabor do vento,
impercetível,
esse vento meu,
que afaga os seus  raríssimos
cabelos,
rodando os pulsos,
em movimentos
ondulantes.





A praia

Nem era o som
que produzia
era a caneta silenciosa,
livre,
absorvendo.
e era nela que se retinha
 a melodia,
aprisionando
o que seguia em fio,

Como se o mar, violento
um terramoto na água,
uma torrente,
como se o mar fosse o vazio,
que podia ouvir-se mil vezes
num dia,
e no outro
 se calasse para sempre.



Xangrila e os Espelhos

Passeava sempre com uma nuvem
de fumo gorduroso sobre a cabeça.
Os vapores tóxicos
dos escapes dos automóveis,
ajudavam ao nevoeiro.
Às vezes, ia à sala dos espelhos,
e ia sempre às horas corretas,
à hora dos cometas da treta,
quando amanhece.
Saía de casa só para isso.
Atravessava a longa  passadeira,
depois o passeio depois o jardim.
Pedia à nuvem, teimosa,
para aguardar um pouco
e entrava.
Lá dentro, ao mudar de posição,
o reflexo
da sua cabeça era alongadíssimo
ou os olhos ficavam
desmesuradamente grandes,
ou então as pernas,
dois esparguetes sem fim,
e o tronco engordava brutalmente,
e podia rir-se.
Depois ia-se embora
e esquecia.
Com tudo incluído.
E esse desastroso esquecimento
provocava-lhe a dor inversa
ao que é habitual.
Então,
agarrava na pena de pavão
arrancada ao chapéu,
que gritou de dor, sempre excêntrico,
e, com o objetivo
de se desfazer do desinteressante,
verificava
que tudo cabia num saco.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

.O #vale dos poetas

Duas vezes por dia, os tratadores encostavam-se à vedação de segurança e despejavam o conteúdo dos grandes baldes cá para baixo.
Nós, alguns muito agressivos, corríamos na sua direção, tentando abocanhar as melhores, ou as que mais nos interessassem, por um motivo qualquer, que podia ser pessoal e íntimo,  ou apenas uma questão de palato mais ou menos apurado.
Algumas partiam-se ao embater no chão, contra a a pedra do comedouro, devido à força da gravidade, porque a queda ainda era muito grande, e então as mais frágeis, ou porque mais exóticas, ou porque maiores e portanto mais pesadas, quebravam-se em dois ou mais bocados.
Recordo-me de, um dia, ter apanhado um pedaço de uma, "quí", e, só muitas horas depois, ter encontrado a um canto, primeiro o "exe", E depois o "vel", e só à noite me ter sido possível reconstituí-la. "Exequível". Das mais saborosas. Juntei-a e comi-a com satisfação, antes de ir dormir. Um autêntico manjar dos deuses.
Das nove às vinte, o parque estava aberto a visitas.
As pessoas juntavam-se em grupos apalermados, junto às grades, as crianças comiam gelados e os adultos, munidos de telemóveis, tiravam fotografias.
Os de nós mais irreverentes, provocavam-nos, mostravam as garras, rugiam, lançavam pequenos objetos, para que eles proferissem palavras de raiva, ou medo, alguns diziam palavrôes muito alto: "puta que pariu" "cabrão do poeta, acertou-me!", e assim, podíamos, no dia seguinte, obrigar a que nos juntassem à refeição novos  alimentos, ricos em proteínas.