sábado, 24 de outubro de 2015

O pijama encarnado

O corpo
cansado,
soçobrou
às noites sem dormir

O pijama
encarnado
colou-se
ao corpo indolente,
ao dia
cinzento

e o cigarro
a aquecer
o ambiente,
expelindo
o seu fumo
assassino

e o menino
que dorme
inocente

O sono,
o sono
e a névoa
que o precede

e o corpo
cansado,
o pijama encarnado
e o pensamento
vagaroso
e quente!

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O poeta constipado

O poeta era um pessoa normal. E como pessoa normal que era, saíu de casa para a rua, e estando o dia com muito vento e muita chuva, o poeta constipou-se. Oh meus deuses! Então é o espetáculo logo, no CCB? O poeta nem conseguia falar, quanto mais declamar poesia!
Por esse motivo foi ao hospital.
"O senhor está constipado!"
"Obrigado! Muito obrigado!"
Passou na farmácia a aviar uns comprimidos, tomou-os, sentiu-se melhor. "Diguei vai perceber dada", disse o poeta em voz alta para ver como soava a sua voz.
Estava cheio o salão nobre. Luzes, som, cheia a plateia, composta, centenas de pessoas..., milhares talvez! Instalou-se-lhe então uma terrível insegurança.
O poeta cumprimentou o seu público.
"Boa doite"! Não tenho nasais, estou lixado! Mas, por força do compromisso, fingiu não reparar, ou melhor, achou que haveria uma certa benevolência para com uma constipação de artista, e depois de cumprimentar o seu público, o poeta iniciou a sessão com um bonito poema de Fernando Pessoa:

"Ei seus bobêtos escuros
Ei que ei bi dao há diguei...."

O poeta fez uma impercetivel pausa para olhar as pessoas. Todos sentados, calados, absorviam.


"e tudo é dévoas e buros...."

A D. Lurdes tinha dois bilhetes de borla, que o poeta lhe tinha oferecido. Ela e a vizinha sentaram-se na segunda fila. Falavam em surdina enquanto o poeta "declababa". "É com bravo que ficam mais bonitas". "Com o quê"? "Bravo"!ouviu nitidamente o homem sentado ao lado.

"Quato a vida dá ou tei"

"Efetivamente, que interpretação extrordinária! Que toque de criatividade! Coloca-se nos textos, dá-lhes o seu cunho. Muito bem"! O seu entusiasmo contagiante elevou-lhe um pouco a voz, e dois bons jornalistas, de raciocínio rápido e sensibilidade apurada ouviam atentamente o encantado ouvinte.
"Retira todas as nasais, desconstruindo para recriar! Talentoso! Bravo!", e, logo ao primeiro poema, um estrondosos bater de palmas atingiu o poeta no coração. Emocionado, agradeceu.
"Obrigado, beu bô público, sei vós dao seria diguei"!
Os poetas têm um pouco de louco, de facto, e este não é exceção. Só isso justificará, que, a partir desse concerto, o encontremos à chuva e ao frio, de chinela e de calção.



Escrevendo poesia (cópia)

Escrevendo poesia
o grito dos fracos
dos que gritam
com medo,
que, estáticos
transformam o mar
e a maresia
em palavras

que nada fazem
observando apenas
calados!
pensando que gritam
e, mudos,
escrevem a lápis
e não sendo lidos
morrem,
escrevendo poesia,
indomáveis!

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Chuva?

A chuva no guarda chuva
e nas mãos as luvas
a agarrar o chapéu.
Com os olhos ora no rio
ora no chão brilhante
a chuva no guarda chuva
e nas mãos as luvas
a agarrar o chapéu
e Lisboa, Tejo e vielas
e Lisboa Tejo e vielas
Tejo e vielas
e a chuva no guarda chuva,
os olhos
ora no rio, ora no vazio,
e essa chuva que não pára
e nas esquinas ladrões de palavras
e nas mãos as luvas
a agarrar o chapéu.
Os olhos nos amantes
escondidos nas escadas
e Lisboa Tejo e vielas
Tejo e vielas!
E a chuva que não pára,
essa chuva no guarda chuva
e nas mãos as luvas
a agarrar o chapéu
os olhos nos desenhos
da calçada
quase no Rossio.
E Lisboa a Velha
Tejo e vielas,
só o frio da chuva
e nas mãos as luvas
a agarrar o chapéu!

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A velha migra

A safada da velha deve ser tesa. Já atravessou duas fronteiras, já vai para a terceira, sempre a coxear um bocadito, mas lá vai ela, agarrada a uma mulher mais nova, que deve ser a filha.
Mas o que é que esta velha quer? Fosse eu a mandar dava-lhe uma bastonada e ala para o país dela que se faz tarde! O que vem para cá fazer? Queres ver que vem a fugir da guerra para uma nova vida? Deixa-me rir! Para quê se já é tão velha? E quando estiver mais refeita da viagem, que, admito, deve ser um bocadito cansativa para ela, aposto em como vai provocar distúrbios.
Olha que ouvi dizer que até as ratazanas se têm ressentido nos países que recebem esta. gente! Estão mais magras.Continuam de grande porte mas já não têm uma vida tão farta!
A mim, a bem dizer, não me custa assim muito este problema dos migras. Vejo-os pela televisão, montes deles,e quando o assunto me incomóda, mudo de canal. Só aquela velha tesa é que me causou um bocadinho de irritação, e vivo num país livre tenho direitos, e tenho opinião, falo, e a mulher idosa ainda por cima é coxa. Se recebermos muitos coxos, será um enorme rombo para o serviço nacional de saúde. Sinceramente, tenho muito mais pena dos bebés e dos pais, alguns com sangue na cara.
E por ser uma pessoa informada, e ter tanta consciência social, no sábado vou a uma manifestação de cidadãos do MAVEM (movimento anti-velhas encarquilhadas migra), que eu própria organizei!
Não vi a reportagem toda, chateou-me, mas a velha não deve ter vindo por mar.Naqueles barquinhos a transbordar nunca vêm idosos. Ou então são os primeiros a serem lançados borda fora. Ou então , como já viveram muito, decidem continuar lá pelas guerras, o que prova que não deve ser assim tão mau!
Fico orgulhosa de mim própria. Se houvesse mais gente como eu (este jeitinho para o discurso também ajuda bastante, confesso)!
Pessoas pró-ativas,que se informam, se manifestam, participam, tudo estaria extraordinariamente melhor!

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Curiosidade

Quando viu a fotografia, a primeira curiosidade que teve foi saber, não porque eram tão bonitos aqueles olhos, mas para quem, tão suaves olhavam, e porque tinham água, só visível na penumbra, e porque havia movimento naquela foto, que é uma coisa tremendamente parada.
E refugiou-se naqueles cílios brilhantes, e navegou naquele mar, que num ápice deslizou para um canto, e caíu em gota salgada.
Pareceu-lhe então ver um oceano inteiro contido naquela lágrima.
E os olhos? Para onde olhavam? E o corpo? De quem se aproximava? De ninguém! Pois o correto e o certo é que ninguém lá estava, e já agora por isso, queria saber, curiosidade apenas, se é tão bonito assim não olhar para nada!

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Brincadeiras 2 (Felícia)

Percorreu a casa
descalça
dançando valsas
delirando,
no peito
um magnífico aperto,
um olhar irresistível,
para trás.
E, sem esperar,
assim do nada,
nasceu uma bonita história,
complexa,
inexistente,
dançando valsas
delirando
percorreu a casa
descalça,
compôs as mamas
no soutien!

Rodando o vestido
esvoaçante
os olhos acreditando piamente
na abstração da palavra,
ávida,
bebeu um café!
Como um bebé
que dorme
perfeito
sentiu o sentido da vida
percebeu o propósito
de dançar valsas
alucinadas
descalça
pela casa
explorando territórios
como um "felinácio"
ou "felídeo"
ou lá o que fôr
que se chama!

Pois a Felícia
rodando pela casa
carícias
da cortina
que esvoaça
e a brisa...!
Sensual, a brisa,
entrando no vestido
no preciso momento
de lembrar
o olhar quente
que cruzou
a olhar para trás!
E dançando valsas
delirantes
pela casa toda
descalça,
bateu com um pé no sofá
e teve aquela dor
intensa
que é um acorda para a vida
uns minutos
de não existe mais nada
a dor imensa
que com o tempo
num instante passa
mais ou menos
devagar!

Como nota de rodapé, vou-vos contar: Só porque bateu com o pé, a Felícia gritou: "Fod...-se!", e foi-se deitar!

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Brincadeiras (Viagens)

Até posso nem escrever bem, mas gosto de o fazer. Seja lá o que fôr isso.
E gosto de escrever o que tenho em ideia, o que vejo a menos de um palmo do meu singelo nariz..
Nem mais além do verniz das minhas unhas dos pés.
E quando viajo, vou aqui a dois metros, à casa de banho! Mas que querem?...
Gosto sinceramente da escrita
bonita ou feia
curta ou comprida
musical até,
se fui eu que a escrevi!
Até porque o meu wc tem muita luz natural, o que o torna "agradável e relaxante", penso eu enquanto escrevo que hei-de ir à cozinha!
Todos os dias uma pequena viagem entre Lisboa e Sintra. A toda a hora meia hora de bons livros. Se calhar por isso é que gosto tanto de o fazer, escrever aqui mal ou bem..., me quer a trocar as palavras.
É só uma brincadeira, senhores intelectuais!
Duma pobre parteira,
fodida à maneira,
pelos canibais!
Uma brincadeira, um passatempo, um papelzinho preenchido. Umas viagens à casa de banho, onde se vê um cigano pendurado num andaime! Não vê nada! Só estou a brincar com as palavras,
silenciosas,
das pulseiras que tilintam
nos braços que dançam
das sensuais bailarinas.
E gosto de escrever, para dizer quase o que me apetecer sem fronteiras, fluindo fluído o pensamento em melodia.
Imploro para que sejais compreensivos, senhores intelectuais.
É só uma brincadeira,
duma pobre parteira
fodida à maneira
pelos canibais
e outros que tais
numa qualquer inesquecível viagem a Paris!
Todos encostados
a murais pintados
os ladrões de ideias!
Os cabrões!
Escrevo que vou à varanda regar as flores. E tirar o cimento das obras. O cimento!!
Virulento é que não é, penso eu!
Caíu, solidificou,
e morreu fazendo rimas.
E agora tenho que o arrancar à força.
Para a semana vou à Rússia roer rolhas de garrafas já roídas pelas ratas do rei Rodrigo que arrota ruibarbos como nínguém!
Grande viagem!
Brincadeiras!

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Acomodado

...e subiria
palavra por palavra
se não estivesse tão cansado
tão breve como o próprio tempo
aparição de fada
trabalho e mais trabalho
vento
momento a momento

e tentaria
sempre e sempre
se o deixassem
manter de pé
apoiado ao ordenado
barulhento!
...à exaustão
Palavra por palavra
como o fado, cabrão
na televisão
num vestido
de juros a um por cento!

Então teria outra vida
que ascendia
fria ou vazia
palavra por palavra
no ondular
do mar imenso!

E não se deixaria estar....
acomodado
entre três ou quatro almofadas!

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Reunião de condomínio

Um,
que rodava,
em movimentos circulares,
claro!
Em torno dos seus pés.

O outro,
um discurso brilhante,
as palavras bem empregues,
pensadas,
um dos melhores que conheci.

A outra,
ouvia com atenção,
parava,
olhos fixos,
apenas,
a um metro do seu chão.

E mais ou menos,
a um metro e meio,
dois degraus acima,
a velhinha dos segredos,
bichanava,
seca e pequenina.

E a Doutora explicava,
sabedora,
mas gaga de latim.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Os Peculiares. Epi. 8. Hélder Messuja

Nos muitos e acalorados encontros que os Peculiares foram tendo ao longo dos anos, já que não houve divórcios, distâncias geográficas ou quaisquer outras intempéries que os conseguissem separar, apareciam, às vezes, outros personagens trazidos por alguém, normalmente movidos por afinidades antroponímicas, ou simplesmente por serem também, uns gajos muit'a porreiros. Foi nesse contexto que Hélder Messuja se sentou um dia à mesa de mais um amigável almoço. Tinha vindo trazido por Lurdes e Gertrudes Vairada, que o conheceram num concerto dos "Assim não dá Varatojo". Elba Calhau ficou encantada com ele, logo que lhe foi apresentado.
 _ Welcome!_ e ao cumprimentá-lo, estendeu-lhe um sorriso gigantesco.
Hélder também não ficou indiferente áquele sorriso franco, completado pelo não menos franco decote.
 _Vamux já brindar, Hélder! Ao grupo, aos "Pecux",à nossa eterna amizade. Fuck, extou comovida!_
No decorrer do almoço Elba reparou numas pequenas marcas incrustadas na pele de Hélder.
 _Mas tu já foxte ao hospital?_
_Isto não é nada ó Elba!_
_Vamux!_ e Hélder Messuja seguiu-a para o carro, cada vez mais interessado naquela beleza suburbana, de pequenos olhos, sagazes e fundos, enriquecidos pela maquilhagem.
_Tenho isto desde miúdo.Tive bexigas doidas quando era pequeno._
_Não! Tens mesmo que ver o que é!_ e foram conversando animadamente pelo caminho. Elba levou o carro do amigo porque tinha uma enorme destreza a conduzir.
Ao chegarem às urgências fizeram a inscrição, e de imediato foram chamados à triagem.
_Posso entrar?_ perguntou Elba Calhau com mais um sorriso magnífico, e abrindo um pouco a cortina.
_ Não, querida. Não pode!_ disse o enfermeiro com um trejeito que revelava imunidade às insinuações femininas. Elba ficou do lado de fora a bater o pé.
_Parece ser uma coisa antiga. Há quanto tempo tem isso?_
_Vai para vinte anos_
_Fez bem em vir à urgência. É para isso que estamos cá!_e pôs-lhe uma pulseira branca, porque não tinha nenhuma transparente.
_Então?_Elba questionou-o sobre o que dissera o profissional.
_Nada, só me pôs esta pulseira!_
_Max isso são Ux menux urgentex!_Elba estava indignada. Era bem conhecedora do servço público. _Exte paíx! Filhux da mãe! E sentaram-se numa sala a abarrotar de gente. A televisão sem som provocava um vago interesse nas pessoas. _A senhora é que cor?_ perguntou á parceira do lado. _Sou amarela, tenho um piercing infetado! E levantou a camisola, mas Elba virou a cara a tempo.
_Já viste, Hélder?_Helder Messuja dormitava na cadeira_Estamux aqui há duax horas e meia e ninguém fax nada! E nóx é que pagamux os ordenadux a exta gente toda_ Tu não 'tás desempregada? _Elba explicou_'Tô a tirar um curso subsidiado pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional sobre gextão de emoçõex. Já fix O primeiro módulo, "Como gerir ódiux profundux",e agora 'Tô a fazer o segundo, " pequenax raivax inconsequentex". 'Tô a adorar, super útil!
Da sala de espera via-se um corredor por onde passavam macas com doentes, empurradas por bombeiros e outros profissionais. Uma delas levava um velho que insistia em gritar pela Deolinda.
_É pá, eu vou lá falar com o médico. Já não aguento maix 'tar à expera!_ Elba Calhau bateu à porta do consultório._Desculpe, Doctor, conhece Fernando Pessoa?_e agraciou-o com sorriso número três. O médico,de largas patilhas e ténis cor de rosa, pensou que devia ser a doente que a Psiquiatria ia enviar para uma reavaliação pela Medicina.
_Boa tarde, como se chama? Sente-se!_
_Sou Elba Calhau_e Elba sentou-se de forma elegante.
_Não tenho aqui o seu nome!_
_Alô?! Doctor?! Eu não sou doente!!_e fez um trejeito sensual, o que não surtiu qualquer efeito por jogar o médico na mesma equipa do enfermeiro da triagem.
_Mande lá entrar o seu amigo!_pelo erro cometido, o médico cedeu, contrafeito.
_Senhor doutor, realmente já tenho o corpo assim há muito tempo, mas tem vindo a piorar_
_Hmm! Estou a ver...! Pequenas crateras atulhadas de lixo...!_o médico falou entredentes.
_Como?_
_Isso passa, senhor Hélder Messuja. Vai fazer assim: Esfrega-se bem com sabão azul e branco, e estica-se duas horas ao sol, na varanda. Logo a seguir toma um banho.
_Max, Doctor,nem umax análisex, nem um ECG? Nada?_Elba interveio_Não é necessário, minha senhora! Eu é que sou o médico, eu é que sei!
Saíram da consulta _O médico foi super arrogante! Bem exquisitux, extex gajux do hoxpital!_Elba acendeu um cigarro, emprestou o isqueiro ao amigo, e continuou_ A saúde em Portugal extá uma miséria. O homem nem um medicamento te passou! Anda! Ainda temux que passar na drogaria a comprar o sabão.E Elba fez uma festa terna e solidária na cara rugosa do amigo.
Hélder Messuja sentou-se ao volante do seu carro cheio de cinza, e Iniciaram a viagem de regresso.
_o que é que pensas sobre o AO, my friend?
_Olha, nem sei se sou fervorosamente a favor, ou belicamente contra, mas eu sou um Gémeos, sabes como é!_
_Éx Gemeox? Muito cool! I love Gémeox!_E Elba fez um sorriso maroto_ Filhux da mãe! Lixam o SNS, lixam a língua de Camõex, lixam tudo extex malandrux!_
De repente Elba lembrou-se _Pedixte a juxtificação para o emprego?_
_Hi...! Caralho, esqueci-me!



quinta-feira, 23 de julho de 2015

Experiências

A D. Lurdes preparava o almoço para ela e para o marido, que desde que se reformara , todas as manhãs ia beber um café e passar um bocadinho de tempo na pastelaria da esquina. O Antunes, todos, até ela, lhe chamavam assim, dava dois dedos de conversa com os vizinhos, via as raparigas bonitas a passar, às vezes metia-se com elas, embora o fizesse cada vez menos desde que, em frente aos amigos, uma miúda lhe tinha chamado "velho porco", não tanto pelo ar trocista do Sr. Inácio e do Ventura, mas mais por aquela rapariga tão gira fazer dele semelhante ideia.
A D. Lurdes, quando estava em casa, vestia uma roupa trangalhadanças qualquer ( utilizei esta palavra para não a deixar morrer), calçava uns chinelos confortáveis de tão velhos, e a D. Lurdes estava quase todo o tempo em casa, embora fosse por ali às compras, isso não eram saídas, conversas de um minuto com a senhora da mercearia, outro com o rapaz do talho, e com a Deolinda, que todos os dias fazia o mesmo circuito sempre com o miúdo atrás: cabeleireiro, papelaria, três entradas no café, duas delas de meia hora, a ensinar coisas ao filho entre o penteado da Joana e o folhado de salsicha. E o Antunes, á quinta feira, ia ao café do outro lado da rotunda, porque o de cá estava fechado. Sentava-se na esplanada, e até estava ali bem, a ver o movimento das pessoas e dos automóveis, mas parecia-lhe que daquele lado havia bastante mais velhas.
A D. Lurdes nesse dia não foi à rua, por isso nem se penteou, e ainda mantinha no cabelo a pressão da almofada, e os brincos de ouro pendiam das orelhas ligeiramente cortadas. Estava a fazer bifes e a fritar batatas porque o marido gostava, e ela gostava de qualquer coisa, e o jantar era o que gostasse a filha.
O Antunes chegou a casa com a testa a doer-lhe e falou-lhe da porta da cozinha: "hum, cheira bem Lurdinhas, estou cheio de fome", e ela nem se virou, e ele aliviado por adiar a justificação para o inchaço do nariz.
_Ai, Antunes! O que é que aconteceu? A D. Lurdes foi arrumar umas chávenas á sala quando viu. _Olha, bati ali no poste!_Qual poste?_ O do outro lado_Qual? Não estou a ver! _O dali, o sinal!_Isso é do lado de cá. _Sim, esse!_ A D. Lurdes nem por sombras imaginaria a verdade. O Antunes a bichanar a uma miúda "És boa!", o namorado a vir, ainda com a barba cheia de migalhas do pão de leite, a agarrar na mala dela para não o magoar muito com um soco, e dar-lhe com ela, sem se lembrar do volume e do peso duma mala de senhora, e como ainda por cima, os homens sempre pedem para lhes serem guardadas umas coisinhas, esta ainda tinha lá dentro um alicate e uma chave de fendas.
_Como tu estás, Antunes! Parece que andaste ás cabeçadas a uma parede! Anda cá!_ A D. Lurdes disse ao Antunes para se sentar no sofá, secou melhor as mãos no pano da louça. _Vou-te fazer um penso_ e foi buscar desinfetante e mais material necessário, e num ápice, transformou a cara do marido numa maquete dos Himalaias, feita com compressas e betadine.
_Olha, vou á farmácia_ e a D. Lurdes foi-se arranjar. Deu uma penteadela nos cabelos, e vestiu a roupa que tinha para lá numa cadeira, e olhou-se no espelho: "Não estou lá muito bem, mas também só vou ali".
O Antunes ligou a televisão, puxou uma cadeira e pô-la à frente do sofá para esticar as pernas:Com certeza alguém vai contar à Lurdinhas. Vai ser complicado de resolver!
_Encontrei a Deolinda e o filho, e o míudo disse uma coisa esquisita. Eu estava a contar o que te aconteceu e ele só dizia: Saco! Saco! Mas tinha um chupa chupa na boca e não percebi muito bem_
Ah, Lurdinhas, deves ter ouvido mal! O miúdo até estava lá e viu! Anda cá ao pé de mim! A D. Lurdes chegou-se a ele e disse _Pois, se calhar ouvi
A D. Lurdes gostava de crianças. Tinha passado a infância da sua menina a levá-la a casting atrás de casting, com horas de espera, no meio de multidões, na esperança de a ver participar numa novela das oito, mas a miúda gostava mesmo era de ainda não ter de gostar de nada, só deixar o tempo passar, sem pressa, e não se empenhou muito.
_Mas ó Licinha, eu tinha que fazer um penso! Ele tem a cara toda deitada abaixo!
_Mas não está assim muito bem feito, mãe. É porque é que andas com essa bata? _Sim, fui á fruta e bebi um café_mentiu. A filha encolheu os ombros_ O pai é tão distraído! Como é que foi bater no poste? Estava a olhar para quê? Olha, uma rapariga lá da faculdade, que mora aqui perto, veio beber um café à rotunda com o namorado, e um velho meteu-se com ela, e o namorado defendeu-a, agarrou na mala dela e deu com ela nas trombas do velho. Ficou aflito de o ter magoado, mas o velho disse que não era nada......., espera lá, mãe... Achas que o pai..., e as duas olharam -se em silêncio por segundos. A D. Lurdes desligou o fogão e seguiu a filha até à sala.
_Fala, mãe!_
_Ó Antunes_ A D. Lurdes torceu as mãos uma na outra_Não levaste com uma mala na cara, pois não?_ O Antunes, com a expressão tapada pelo volume das gases e dos adesivos, até que foi quase sincero.
_ É pá
, foi um mal entendido, eu disse Lisboa e els perceberam "És boa"_Mas ó pai, disseste Lisboa, assim do nada? _É que estava apensar que tenho que ir a Lisboa um dia destes, e pelos vistos só me saíu essa palavra._Ele realmente às vezes fala sózinho_Mas diz assim só uma palavra? Solta?_eu reparo lá quantas palavras ele diz!_Ó pai, e o que é que eu digo à minha amiga? _Olha, nem digas nada que eu ia desmaiando com o peso da mala! _Ó Licinha, deixa lá o teu pai, coitado!
,

sábado, 11 de julho de 2015

A Idade, ou Homenagem ao Homem velho e Sua Esposa

Os ossos
logo ali
debaixo da pele
e filhos
tão velhos como eles.
Noventa e um
e noventa e dois anos
elegantes e belos.
De passo leve
amigos juntos
os ossos
logo ali
debaixo da pele
há sessenta e tal anos
unidos num tempo
sem memória.
O branco,
a cor do sangue
das camisolas
juntos os ossos
erectos
logo ali
debaixo da pele.

domingo, 28 de junho de 2015

Incongruências

O enfermeiro bichanou,
este é um doente
em fase terminal.
E o homem ouviu
e a seguir morreu
não faz mal...

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O umbigo do meu amigo

Encontrei duas palavras
para rimar com estúpido.
Uma entúpido
e a outra é Cúpido.
Lamento mas não há vocábulos
em que lavras o teu terreno
e ao mesmo tempo
lunático sentido.
Discurso tanto incoerente
como irreverente
como pente
ou dente
ou semente.
Brincadeira de mau gosto.
Atenção!
É gosto sem acento!
Som!
Sonsa e sonso!
Três palavras para rimar com areal
sem ser matagal,
e cardeal
em espiral descendente!
Só amarras, senhor doutor!
Só amarras!
A corrida escrita a violetas verdes
e vergastas!
Como a supervisóra
adora falar caro!
Palavras.
Palarvas!
Larvas!
(Não prometo respeitá-las e ainda bem)
a saírem do umbigo do meu amigo
para onde olhavas!

segunda-feira, 22 de junho de 2015

O terceiro andar

O Pedro sabia que o pai estava só, velho e doente, e o pai, por sua vez, já tinha interiorizado o tempo como uma ampulheta impossível de virar. O filho tinha para com a maioria dos idosos uma atitude benevolente, mas não para com este, porque , sob a capa de um bom pai, enganara todos, deixando-o à sua sorte num mundo de medos colossais.
O pai, em casa, ouvia passos nas escadas, demasiado pesados e rápidos, para que fosse alguém a subir ao terceiro andar. Às vezes o telefone tocava e o velho percorria a casa diminuta, e, arquejando como se tivesse percorrido um palácio, atendia, um pouco mais contente.
O filho telefonava ao pai enquanto jogava guerras no computador, para descomprimir do dia de trabalho, pensando que só tinha meia hora para descansar, e que o esforço seria praticamente só ouvi-lo, embora também para si, isso fosse dispensável. O Pedro lembrou vagamente como, há infinidades de anos, o pai se rira do seu pesadelo, e ele, pequeno, agarrado às grades da cama, e o pai a ensiná-lo a não chorar.
O pai do Pedro educara os seus filhos para serem homens duros de roer, iguais a si, alheios às fragilidades dos outros, , aos andares altos sem elevador, ao medo do silêncio sepulcral da noite. Por isso, muitas vezes na vida deixara de falar ao filho, obrigando-o assim à solidão, numa família cheia de gente. O filho não era vingativo. Apenas um aluno a viver com distinção, e o pai, no terceiro andar, apenas um professor.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Escrevendo poesia

Escrevendo poesia
o grito dos fracos
dos que gritam
com medo,
que, estáticos
transformam o mar
e a maresia
em palavras

que nada fazem
observando apenas
calados!
Pensando que gritam
e, mudos,
escrevem a lápis
e não sendo lidos
morrem,

escrevendo poesia,
indomáveis!

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Incompreensível

O homem bom queria comer, metade ao jantar e metade à ceia, as suas magníficas sereias. Elas agradeceram ao homem benevolente, porque os seus cantos encantadores iam gostar muito de ir ao forno com cebola!
As sereias não compravam meias, pensava o homem intrigado, numa ansiedade crescente.
O homem bom, quando se deitavam, colocava um enorme balde com água aos pés da cama. Vá lá, valia-lhes as quatro mamas e aquele mágico som, e as sereias, não se sabe bem porquê, antes de dormirem, punham sal nas pernas e nas veias!
O homem tranquilo adormecia, e uns dias sonhava com peixe frito, outros com o azul do mar, ou com  palavras musicais, soltas, discursos erráticos, sombras voláteis, coisa assim! E as sereias, metade red fish metade mulher, não eram o sonho do homem bom, que sonhava com entrecosto na brasa, coisa racional e apetitosa, e o homem bom mas deselegante, impacientava-se, tanto com as metades de peixe, como com as mulheres imperfeitas, como com a falta de meias, nas molas, na corda, penduradas a secar!
Há! As sereias...! Quando cantavam enebriavam a cabeça de touro do minotauro que era o homem bom, que tinha duas sereias, e que temia perder para sempre aquele dois em um! Perder a diferença mais semelhante do mundo, o ponto nevrálgico, o elo de ligação.
Um dia, estavam as sereias a escamar as caudas, e a pôr um bocadinho de creme para ficarem mais macias, quando o bom homem chegou. Meninas, vamos à praia! E lá seguiram elas, agarradas aos seus chifres de marfim. _ Onde vais? Porque não páras? _ Vou devolver-vos ao mar! Procuro mulheres inteiras, com pernas, e, acima de tudo, meias, mulheres que se me assemelhem, que sou praticamente todo um "homem bom"_. E, largando-as na água, virou-lhes as costas, e afastou-se calmamente, com a longa cauda bamboleando ao movimento dos seus passos.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

A relevância do voto

No outro dia disseram-me: " O AO devia ser sujeito a um referendo", e eu pensei: Que ideia maravilhosa. Marco, no hospital, o Taco, as análeses, e a endocuspia, que estou com uma miguelite que não aguento. E depois bou botar!

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O míope

O miopezito lá ia, os olhos franzidos a protegerem-se do sol. E quando era preciso ler as letras pequeninas, lia o que os outros não conseguiam. O míope deitava-se, sob a sua janela de sótão, nas noites de luar, e beleza alguma apreciava, depois de tirar os óculos, os mesmos que tirava para ver melhor!
O miopezito estava escondido por detrás das suas lentes graduadas, fundos de garrafa, disfarçados por inovadoras formas de disfarçar fundos de garrafa, e os seus olhos eram muito maiores do que os que lhe vias, por entre os vidros convexos, sustentados por hastezinhas nas orelhas.
O miopezito, no seu mundo desfocado, transformava tudo em manchas, mas podia ler os mais pequenos rótulos, a informação mais escondida, o pormenor quase apagado, mas o mar era uma sombra,e a noite..., bem, a noite era conforme estivesse ou não com os óculos.
O miopezito tinha até uns grandes olhos de ver o mundo.
O miopezito foi à consulta, apoiou o queixo na maquineta, puseram-lhe uma armação enorme e complexa no nariz. O médico foi trocando lentes, sobrepondo algumas, até!
"E assim? Vê melhor ou pior? Que letra é esta?
"Mas eu lembro-me que era um A! E agora?"
Todas as manhãs o míope apalpava a mesa de cabeceira, e, a seguir, verificava o efeito da luz nas persianas. Não se pode dizer que o miopezito fosse um sonhador, ou poeta, porque não era. Só era o melhor a ler instruções de comida pré-cozinhada, e era o melhor a abrir muito os olhos, só para ver pouco ou nada!

terça-feira, 12 de maio de 2015

Os Peculiares. Epi. 7 Degustação

Nos últimos tempos, Elba Calhau não tinha outro assunto que não fosse a sua aproximação a Duarte Barroca. Desta vez confidenciava á grande amiga, Celeste Nebrosa _Até me deixou tirar-lhe unx pontux negrux, na praia!_
_ Hmm! A coisa vai avançada_ Celeste respondeu, indolente.
_ Vem! Encontramo-nux com elex à entrada do "Grossux Molhux", em Alfama_ Elba, nesse dia, até estava um pouco enervada. Tinha ido levar as crianças a casa da mãe, que lhe pareceu ter esta do a fumar coisas esquisitas. _ Ó mãe, estiveste a fumar um charro?_
_Claro que não, filha!_ E desatou a rir à gargalhada porque Elba tinha demasiada base na cara_ Uau! Pareces uma manequim, mas das de plástico!_
_Mãe, tu vê lá! Toma bem conta dux meninux !_ Vai descansada_ respondeu a mãe, ainda a rir, e de lágrimas nos olhos.
_O chef deste restaurante tem duas estrelas Firestone _ comentou Lurdes Vairada, após se cumprimentarem uns aos outros em frente ao estabelecimento.
_ Michelin, Lurdes! Michelin!_ Porfírio Metelo Anão emendou a amiga, impaciente.
_ Ou isso..., já viram o menu? _ E Lurdes aproximou-se do cardápio, colocado na parede, e preso numa caixinha de vidro. Os outros seguiram-na, formando um grupinho aconchegante. Juvenal Gadura iniciou a leitura da ementa:
-Leite azedo com molho grosso de nabo
-Perú desnorteado da Ibéria e batatinhas Dalai Lama
-Suco de sucos finíssimos
-Truta à caçador de perdizes
-Ovos de saguim bipolar
-Flan empinocado com framboesas
..... e por aí fora, uma enorme lista de coisas deliciosas.
_ Vamux entrar!_ e todos seguiram Elba até ao interior do restaurante.
_ Senta-te tu aqui, Gertrudes.  Nunca me sento virada para sudoeste! Não estou para sofrer influências negativas dos planetas a norte do oposto à lua cheia!_ A Celeste Nebrosa fascinavam-na esoterismos, e tudo o que fosse para além da compreensão do comum dos mortais.
_ Ó Celeste, não quero saber dessa merda! É uma cadeira e pronto!_ Lucas Murro, decidido, sentou-se.
_ Pessoal, adoramo-nux?_ Adoramos!_ e os copos, cheios com vinho finíssimo das adegas do " Monte da Avó Malandreca", tilintaram uns nos outros.
_ Olhe!_ Elba chamou o empregado, que se voltou, atraído pelo cabelo louro, e pelo decote arrojado_ Diga-me, como são ux ovux  D' Artagnan?
Elba fez um sorriso largo
_São ovos ovos abertos com a ponta de uma espada de samurai, cobertos com molho grosso_
_ Parece-me bem. Eu quero, alguém maix quer?_ e enquanto esperavam as entradas foram bebericando e conversando.
_ Já viste ali os ovos D' Artagnan?_ Adolfo Dias segredou a Porfírio, indicando a mesa ao lado_ Mais  me parecem ovos mexidos do almoço, com uma bosta qualquer por cima_ E o jantar decorria, num entusiasmo de conversas cruzadas.
_ É que eu faço retenção de líquidux!_ "Fazes, fazes!... E de sólidos também, um bocadinho!" Pensou Porfírio, que gostava de mulheres menos exuberantes, mas não disse nada, para não melindrar a amiga.
Do outro lado da mesa alguém comentava: Faz-me lembrar uma frase que li no outro dia: "Até as cavalgaduras têm direito à ternura!"_ Onde é que Leste isso?_ A Porfírio soou-lhe mal_ No Face, um amigo partilhou comigo.
Adolfo Dias resolveu também questionar o empregado_ Por favor, gostava de saber, este prato aqui..., as batatinhas Dalai Lama, como são?_
_ São batatas que estiveram em meditação no Tibete pelo menos cinco anos, e, já agora, esclareço-vos sobre o perú desnorteado da Ibéria. São perús enraivecidos em ambiente ibérico. É muito bom, e leva tudo um molho grosso por cima. A confeção é do mais alto nível, e servimos todos os pratos com fatias de pão rústico de cereais da lezíria.
_ É tão amável!_ Lurdes e Gertrudes Vairada adoraram o empregado, mas ele só tinha olhos para Elba Calhau, que, nesse momento, já estava a manter as devidas distâncias.
_ Adolfo, como extá a Alice?_ perguntou Elba rodando ligeiramente o corpo.
_ Ótima, obrigada_ e Adolfo fez o ar mais desanuviado possível tendo em conta as circunstâncias, já que Alice Mitério tinha ameaçado sair de casa, o que lhe causaria uma enormidade de problemas.
Porfírio Metelo Anão comia, pensativo."Bifes de perú com batata cozida e um molho asqueroso por cima", mas não disse nada e bebeu mais um trago de vinho.
_Eu já nem acho que nux adoramux ! Nóx amamo-nux tanto! E depoix o vinho, a deguxtação, a folia...., ux meux filhux ...! Ixto é magia!
_És linda Elba! Tens um coração enorme!_ e Celesta Nebrosa, com a unha pintada de negro, limpou uma lágrima da face da amiga.
No final do jantar, a sensível Elba, ainda de olhos húmidos, pediu a conta.
"É pá, tenho que pedir dinheiro à Alice enquanto é tempo, pensou Adolfo, ao mesmo tempo que consolava a colega, e Lurdes e Gertrudes Vairada exclamaram em coro: _ Foi caro mas valeu a pena!_.



quarta-feira, 6 de maio de 2015

Depois da noite

Dois turistas rebolaram borda fora de um barco, e foram parar ao hospital. Gostaria de reinventar a sua história, mas não percebo nada de barcos, e de turistas também sei pouco. Apenas os vejo, agitados, sob o sol de Lisboa.
Depois, perdoem, mas atirei o pensamento lançado em vôo, e, apesar de não perceber nada de barcos, fui, e irei, inevitavelmente dar ao mar.
Depois, não sei porquê, lembrei-me do bendito acordo, essa maldade, para quem sabe, e para quem não sabe de palavras.
Pelo meio escrevi aquela verdade verdadinha, "o amor como o sinto, verdadeiro, frágil, e incondicional ", e associei-o ao facto da vida ser igualmente vida, sem razão dos olhos, ou luz da existência. Terá é outro sabor!
Depois, senti o cansaço, apanhei a parte do ridículo, do homem a dizer ao médico que a "feze" lhe saía normal, e tive pena não sei de quê, e deu-me para ouvir os passarinhos pendurados na primavera das árvores em flôr, e, imediatamente a seguir, não gostei de ver os passarinhos aqui escarrapachados, mas tarde de mais, porque já estava escrito, indelével e bonito, e depois fui dormir!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Os Peculiares. Epi.6 "Ux Pecux"

_ Duarte Barroca, olha, cultíssimo! Até sabia onde fica Zanzibar!_ falavam sobre um sujeito que Elba Calhau tinha conhecido à uma semana atrás, e, Celesta Nebrosa, que ouvia a amiga de cigarro apagado numa mão, e isqueiro na outra, com a boca ligeiramente aberta, prestava toda a atenção.
_ E tu, sabias?_ Não, mas tu sabex que a minha paixão é a poesia. Ouve só o que eu escrevi ontem_ e Elba Calhau, de olhos pequenos e turvos, pôs-se a recitar:
Amo-te de tal maneira
Que tropecei na mangueira
Quando fui ao jardim
O meu amor é eterno
Excrevo-o nexte caderno
Que até me cheira a jaxmim
E quando formux bem velhux
E usarmux aparelhux
Seremux só ossux, enfim!
_Ai! Que bonito Elba! E o Duarte gostou?
_Sim, só disse que também ficava "cool", "pudim" e "chinfrim".
_Ó Elba, se calhar o "seremos só ossos" também é um bocado esquisito_ mas, calmamente, Elba explicou: _Não te exqueças que ax pessoax passam o tempo a fazer dietax, e às vezes só no fim da vida é que ficam mais magras. Faz todo o sentido.
_ Pois é...! Tu tens talento, Elba!_ Elba também acendeu um cigarro.
A esplanada onde estavam, não era mais do que duas mesas e as respetivas cadeiras, em cima do passeio, com vista para uma rotunda cheia de carros a buzinar. Estava uma temperatura amena, e a nossa heroína tirou o casaco, enquanto lançava ligeiramente os grandes seios para a frente. _O homem é um expetáculo, sabe tudo! É verdade, temux algum meeting marcado com ux "Pecux"?_
_Como?_ Celeste não entendeu.
_Sim, um diminutivo para peculiarex. Não é um nome giro para nóx, que somux um grupo tão forte?
A Celeste Nebrosa pareceu-lhe um nome bonito.
Ai! Se não fôr eu a dinamizar exte pessoal! Olha, mudando de assunto, Extou a começar uma dieta. Passei o inverno a comer feijoada e cozido! Hoje só comi alface e pepino! Amanhã é tomate! Até me apareceu fazer um poema sobre isso. Queres ouvir?
Com o que comex hoje
Engordax no outro dia
Tenx que passar alguma fome
Para não ficarex enorme
E evitar a azia
Come laranja e kiwi
Que só é bom para ti
E anona e papaia
Para te caber a saia
No evento da Lili
Celeste olhou para a amiga e fez um sorriso forçado. "Não me digas que está vai passar a tarde a fazer rimas". _Mas fala-me do Duarte. Então é o Abel Dade de Pessoa? Já estava a imaginar a tua assinatura: Elba Calhau de Pessoa...!
_Isso já é história. Com o Duarte Barroca extou em sintonia intelectual, e ele adora o que eu excrevo. Até já lhe dediquei um poema. Ouve só:
Meu príncipe, meu Apolo
O homem da minha vida
Adoro ir para o teu colo
Quando extou toda partida
O teu casaco extá sujo
Max a tua mente extá sã
Por isso é que eu não fujo
Já o disse à mamã!
Elba bebeu um golo da cerveja para aclarar a voz, e continuou:
Tive muito namorado
Até já tive um marido
Ele há gajux por todo o lado
Max tu éx o maix querido!
"Porra! Tem cá uma memória! Se fosse eu já tinha trocado aquela merda toda"_ Tu és linda por dentro, Elba! Então e o meeting? Marcamos para amanhã? Podia ser no "Filhos de Cabra"! É um bar tão giro! Só serve tostas de cabrito montês acabado de nascer!
_Axo ótimo, marcamux já pelo Face. Devem ir todos. Por muitax voltax que a minha vida dê, nunca maix me exquecerei dux "Pecux"! Ixto é duma intensidade! Olha, fix um poema sobre cabritux monteses acabadux de naxcer! Querex ouvir?

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Eu vou com o mar

O maluco percorria a praia
no chapinhar das ondas
e gritava: Eu vou com o mar
eu vou com o mar!
Ou os olhos azuis, salgados
Na pele morena
fixos em ti
Eu vou com o mar
Eu vou com o mar!
Os pés marcavam fundo a areia,
por segundos
Os pés limpos de morrer
As calças molhadas
enroladas debaixo das rochas
Eu vou com o mar
Eu vou com o mar!
O maluco perscrutava,
com os olhos límpidos
transparentes
a água
Eu vou com o mar!
Apanhava seixos redondos
que voavam em três toques rasantes
Eu vou com o mar
Eu vou com o mar!
E tu com medo azul e negro
A maluquice do maluco
a passar para ti
o mar imenso
inofensivo e tranquilo
eu vou com o mar
eu vou com o mar!
As belezas todas
o apelo das gaivotas
os olhos metálicos do doido a entendê-las
os teus olhos receosos,
algas em movimentos basculantes
muito longe dali
Eu vou com o mar
O maluco, quando não gritava
mexia os lábios
todos os dias assim
e tu,
Sentado na areia
nem uma palavra!
O oceano sem tamanho
o maluco bronzeado do sol,
e tu, ali, pequeno e esbranquiçado
Eu vou com o mar
Eu vou com o mar!
Sentou-se ao teu lado, nas dunas
os braços à volta dum joelho
a outra perna esticada
e tu à espera
o sal colado na pele
imaginando onde chegava
o seu olhar sem fundo.
Imóveis.
Até a lua cheia formar os seus caminhos
de prata bonita
na noite infinita
Eu vou com o mar
Eu vou com o mar!
Tu,
no frio da noite maldita
chegas-te ao mar
para sentir a água tépida nos pés
Eu vou com o mar
vamos com o mar sossegado
vamos com o corpo
eu vou com o mar!
A água pela cintura,
numa mistura ofuscante
de sons brilhantes,
odores flutuantes
Eu vou com o mar!
O maluco ao teu lado,
delirante e feliz
a pele sem fundo
os olhos da cor do horizonte escondido
refletido em ti.
Eu vou com o mar
Eu vou com o mar!



domingo, 29 de março de 2015

Os Peculiares Epi. 5 Mais um encontro acalorado

Gertrudes Vairada e Lurdes Vairada conversavam, deitadas sobre umas grandes almofadas colocadas no chão. Na carpete, uma TeleCulinária do chefe Silva, aberta nos folhadinhos de chouriço.
_Ai mana, deixámos passar as horas! Perco-me a ler receitas. Já estamos atrasadas para o meeting!
Já no comboio para Lisboa, as irmãs sentaram-se frente a frente.
_Lurdes..., não gostavas de ter uma casinha no Barreiro, com uma varanda cheia de flores?... É um marido para as noites de amor! _Gertrudes Vairada olhava o Tejo, com ar sonhador._ Olha, empresta-me aí o corta unhas!_ e vai de dar um jeito às mãos, que estavam uma miséria, fazendo saltar uns quantos pedacinhos para o colo da irmã, e só um ou outro para o homem que se encontrava ao lado. Por baixo do ruído de fundo ouviam-se pequenos estalidos.
_Menina, está a atirar-me bocados de unha para cima! Veja lá!
_Ó homem, peço desculpa, não precisa ser mal- educado!
Quando desceram na estação, já Elba Calhau esperava por elas. _ Meninax, que saudadex! Como nux adoramux!
_ Apanhámos agora um homem no comboio! Francamente!_ As irmãs tinham ficado incomodadas.
_ É meninax, ax pessoax são assim e ninguém fax nada! Venham! Elex extão ali à expera. Como é bom guxotarmos tanto unx dos outrux!! Temux a peculiaridade de ser peculiarex, como dizia o nosso eterno professor!
_ Muito bem, Elba! Falas belissimamente! _Juvenal Gadura aproximou-se e pôs-lhe o braço por cima.
_Estamux todux?  Vamux! _e Elba Calhau, decidida, dirigiu-se para o carro de Adolfo Dias, e sentou-se no lugar da frente. Lucas Murro, Juvenal e Porfírio Metelo Anão seguiram-nos.
_Extou com problemax com o meu "ex"._ Elba falava alto, por cima do som da rádio, que passava uma canção muito em moda:

Menina das botas da tropa
Porque vais a descer o monte
Vais ter com o teu amado
Que está encostado à Mota
A fazer chichi da ponte!


_Que coisa linda! Adoro  Varatojo! Sente mesmo o que canta! Ao longo desta canção, no concerto, parece que se vai aliviando. É fantástico! Abre aí a janela, ó Adolfo, para eu fumar!  No outro dia, quando foi buscar os meninos,_ Elba Calhau continuou_ apareceu lá em casa com um grande laço na cabeça,_ olharam uns para os outros, incrédulos, e Porfírio disfarçou um sorriso.
_E tu, disseste-lhe alguma coisa?_Disse, mas com cuidado para ele não começar a chorar porque é muito sensível. O Tutu sempre foi assim!_
_Tutu? _Porfírio Metelo Anão fez um esforço para não rir
_Artur Tura de Fino e Curto...! Até que é um nome bem chique!_ Elba respondeu maquinalmente. Olhava, da janela, o movimento da cidade, preocupada._Isto está cheio de gente! O " Fanequitas" deve estar a abarrotar...! Talvez o " Loucinha das Caldas"!_
Efetivamente o "Fanequitas" estava cheio, mas o "Loucinha das Caldas"ainda tinha duas mesas vagas, que o empregado juntou, para caberem os oito, e sentaram-se apreciando o restaurante, decorado com louça tradicional portuguesa.
_Por mim, os meetings eram todos aqui!_dise Celeste Nebrosa entre dois trejeitozinhos sensuais. Todos apreciavam estes espaços, onde se misturava lazer e arte, e estas peças de arte fálica representavam o orgulho de se ser português. Só Lucas Murro não parecia muito satisfeito, é teimoso, alertava: _Olha que isto são caralhos das Caldas! Isso é que são! De certeza!
_Ó Lucas, francamente!_ indignou-se Lurdes Vairada.
_Adoramo-nux?_Adoramos!! É o brinde não se fez esperar.
Para a próxima já convidei ax  exposax, axo que devemux ser amáveíx e sentá-lax ao ao lado maridux , até para se conhecerem melhor. Elas vão guxtar poque vocêx são expeciaix! _e todos concordaram menos Porfírio_ Não achas que já nos conhecemos bem?_Não é a mesma coisa, Porfírio!_respondeu de forma incontestável. Gertrudes, orgulhosa da amiga, exclamou: _Ai Elba, é um gesto muito elegante!_ e Elba sorriu num sorriso largo, vaidosa das suas capacidades e agudezas de espírito.
Adolfo Dias estava um tanto oi quanto apreensivo. Tinha comentado está ideia de Elba com a mulher, mas Alice Mitério, como sempre, não se mostrou entusiasmada.
_Está bem, Dôfo, depois se vê._"Pois....,uma noite a levar com aqueles todos, e com este cretino outra vez!"! Santo Cristo!
_Acho é estranho que meti mensagem no Face, e ainda não me responderam._Elba estava ressentida. O mundo não compreendia tanta amizade._ Somux um grupo muito forte! Adoramo-nux? Adoramos!!_ E para a semana , meeting no " Penicus", é um bocado mais caro mas vale a pena!_
_Eu conheço._ Juvenal Gadura conhecia bem a noite lisboeta_ A decoração, as fardas dos empregados..., tudo original!
_Sáo,penicos, porra! São penicos!_Lucas Murro não se deixava enganar.
Celeste Nebrosa fez mais um trejeito, desta vez de superioridade._Ó Lucas, tu não vês que é arte?
_


segunda-feira, 23 de março de 2015

Sem título

Todos gabavam a sua tagarelice gabarola, produzida pela estante de má qualidade, vergada pelo peso dos livros. Por detrás de cada frase havia um som impercetível e raro, uma melodia assombrosa só ouvida por alguns. Por isso que a sua tagarelice gabarola, bem pronunciada, era como a voz dos golfinhos, incompreensível para nós, se bem que plena de emoçáo mergulhada no mar, como um lápis sem bico a morder no papel. É por isso que lhe diziam:Diga outra vez, repita-se. E ele, na sua tagarelice gabarola, dizia uma e outra vez parvoíces, ricas em energia indiferente. De repente lembrava-se do seu propósito, que era o de fazer voar as palavras, dizer à vontade a verdade, mas sem feridas organizadas, sem lamentos! Apenas um discurso selvagem engrenado no pensamento. Uma tagarelice gabarola era o que era, frequentemente....

segunda-feira, 16 de março de 2015

Os peculiares Episódio 4_ A explicação dos braços

Assim que a temperatura subia ligeiramente, e o céu se mantinha azul vivo durante todo o dia, anunciando a primavera, já Elba Calhau vestia umas manguinhas à cava, exibindo os braços dourados, da primeira tarde do ano passada na praia. No dia anterior tinha convidado a sua grande amiga, Celeste Nebrosa, que se deixou convencer muito a custo, já que preferia um corpo branco cadáver, e uma manhã enroscada no calor da cama. _ Ai filha, extou cansada de extar desempregada!_ disse Elba, enquanto ouvia o barulho das ondas, e via o céu todo castanho através dos óculos de sol. _ Olha, vixte aquele calendário dos alentejanux? Aquele mêx de março é um expetáculo. Esse homem é duma aldeia xamada Pézinhux de Borba. _ Não! Vi foi o dos jogadores de xadrez. Também tem lá cada um!_ respondeu Celeste,deitada numa toalha ao seu lado. Têm é o rabo um bocado achatado de estarem sempre sentados!_ e riu-se de tal forma que engoliu alguns grãos de areia. Elba não achou piada nenhuma. Ainda estava um pouco irritada com a resposta do Adolfo Dias. Pedira-lhe boleia e ele respondera_ Ó Elba, apanha o autocarro. Vai mesmo até à praia._ Tinha ficado ligeiramente amuada com tão vil proposta. De transportes? Nunca! Nem parecia vir de um amigo do peito. E acabou por pedir o carro emprestado ao pai, que, nesse dia, foi a pé para o trabalho. No final da tarde Elba foi levar a amiga a casa, e, apesar do sal, desconfortável, colado aos cabelos, decidiram beber mais um cafézinho, numa rua estreita, onde estava sempre o mesmo mendigo. _Olha, já o conheço. Extá todux ux diax aqui. É o "Fortuna". _Uma moedinha para comer!_ _Moedax não dou, já sabex! Pago-te comida. Não alimento víciux!_ e, decidida, atirou a ponta do cigarro para o chão._ O governo vê exte mendigo e não fax nada. É uma vergonha. Eu e maix alguma senhorax é que lhe damux quequex. Anda lá comigo._ E o Fortuna seguiu Elba, a pensar que o que lhe apetecia mesmo era uma garrafa de vinho, e graças à caridade alheia, já ia no terceiro queque na última meia hora. Chegada a casa, Elba tomou o seu banho. e beijou os filhos a quem a avó já tinha dado o jantar. _Meninux, para a cama. Amanhã há excola. extudem muito para serem como a vossa mãe. Os olhos pequeninos e pretos e o nariz comprido, sobressaíam na cabeça envolta no toalhão de banho._Vá, beijinhux! _Elba Calhau estava ansiosa para "postar" no Facebook as fotos daquela tarde, com bracinhos e pernas já tostados. Sabia que ia ser contemplada com dezenas de gostos e corações, e, com alguma sorte, um comentário mais picante, que sempre proporciona, ainda que vagamente, aquele ligeiro tremor do corpo, tónico fundamental para uma mente sã. Encantada, verificou estarem todos "on line". Carregou no enter, esperou cinco minutos, e estranhou ainda só ter quatro coraçõezinhos, um "és linda" e dois "adoro-te". Quando acedeu à conversa entre eles, Elba Calhau percebeu o motivo de tanta indiferença. O Benfica\Sporting preenchia totalmente a atenção dos seus peculiares amigos do peito. _Não foi penalty, o gajo só lhe deu uma dentada na coxa, mas não foi intencional!_ Juvenal Gadura era especialista em dentadas não intencionais no futebol. Porfírio Metelo Anão ripostou. _Não podemos andar à dentada uns aos outros_ _ É pá, mas ele quando se lhe encostou à perna, já levava a boca aberta, e além disso, uma coisa é o que se passa cá fora, outra coisa são as regras do futebol_ Adolfo Dias, sentado à mesa, no computador, entrou na conversa. _ Vocês arranjam é desculpas. O certo é que perderam. O Benfica é o maior! Sem obter qualquer resposta dos amigos, Elba escreveu um comentário: "Uma tarde na praia. Adoro-vos" _ Este árbitro beneficia sempre o Benfica, é o que é! _Vocês são mas é uns coitadinhos_ e, empolgados, continuavam a conversa sobre a bola. Elba esperava, impaciente, que vissem as fotografias. "É pá, já viram a tarde que eu passei? Adoramo-nos?". mas eles, nem a este apelo tão forte responderam. _Três dois, que miséria! Também, a jogar com dez!_ _ O Benfica é só ganhar, pá!_ Adolfo Dias, orgulhoso da vitória do Benfica, abriu as fotos contrafeito. Numa, viam-se dois calcanhares com calos, noutra, um ombro e uma nádega, a terceira era apenas um nariz no fundo do mar com um cardume de peixinhos a entrar e a sair das narinas, e, por último, um andrajoso a comer um queque com ar enfastiado. Como é que a gaja faz este efeito, que parece mesmo um bolo? E acabou por escrever: Que lindo Elba, até fiquei com calores! Alice Mitério chegou-se atrás do marido, devagar. _ O que é isso Dôfo? _ Há, nada! Estou aqui a falar com eles._ Alice debruçou-se sobre o computador, e mudou olhar de triste para muito pior. _ Ficaste com calores Dôfo? Ai DÔfo, Dôfo. Que vício tens de apaparicar saloias! Ó Alice, desculpa. É tudo a brincar. Estou é a falar com eles de futebol. Acho que a Elba até anda com o bombeiro, o Abel!_ _ Está bem Dôfo, anda jantar!_ E Alice Mitério saiu da sala a pensar. "Hmm, não me parece. Ou então o imprestável do bombeiro não está a fazer uma conveniente utilização da mangueira." E, transtornada, chegou à cozinha, e cuspiu na sopa quentinha do marido, como sempre fazia quando ele a irritava. Elba, mulher de coração grande, rapidamente esqueceu a desavença com Adolfo Dias, e, emocionada, escreveu: "Tu és sensível amigo, obrigada!" _Está boa, Dôfo?_ _Uma delícia! Muito cremosa! Tu fazes muito bem a sopa, Licinha!

sexta-feira, 6 de março de 2015

Meio limão

Meio limão encarquilhado era a verdade
Disposto sobre a mesa
Ao lado de quatro migalhas
E do espírito criador

Meia vida, urgência de repor a leveza
Cagar na idade!
Paciência!

Para pôr tudo na cozinha
E arrumar tudo aqui.

Sala de estar,
manhã prazenteira e feliz
O que faltava do limão
Da criação, era assim!

Só isto, simplicidade
Bem estar
Não há grande deslumbramento
Têm-se meia dor
E meia ideia
Sem se saber porquê!

Meio dia
Meia pena
Meio amor
E uma interrogação inteira
E o quê?

domingo, 1 de março de 2015

Os peculiares Episódio 3 Novos amigos

Desta vez tinham combinado no "Tavares", no Cais do Sodré.
"Miguinhos lindos......, tinha escrito para eles Elba Calhau. Só Adolfo é que não respondeu, e Elba agarrou no telemóvel e mandou-lhe uma mensagem: marquei um meeting pelo Face. Tomorrow.It will be fun. Vou de leggins. São mais compactas e está frio. Parou de escrever para pensar: escrevo compactas ou compatas? Oh, maldito acordo!
No dia seguinte Elba foi entregar os filhos à mãe. _Mimi, vaix com os avóx e com o mano ao teatro_. _Que bom_ respondeu a menina entusiasmada, enquanto a avó a penteava. _ó "avó", põe-lhe aí exte laço_ e a avó, que tinha vivido com intensidade os anos oitenta, com a cabeça toda queimadinha dos fumos, e sempre preocupada com a figura dos Calhaus, exagerou um pouco a criatividade no cabelo da  míuda, que saía à mãe nos olhos pequenininhos, e nos laços acabava por saír um bocadinho ao pai.
_A peça é muito gira_ voltou-se de novo para a Mimi_ Chama-se "Ux meninux rabugentux são castigadux a sério", e a Mimi, que estava tão contente com o seu laço em hélice, de repente ficou rezingona e triste, o que fez Elba comentar com a mãe, _ não percebo exta criança.
O "Tavares" ao fim de semana estava cheio.
_Adoramo-nux?_ Adoramos! Os copos de vinho a tilintar, excitados, uns nos outros. Celeste Nebrosa e Porfírio Metelo Anão beberam tudo de uma só vez.
_Joaquim Varatojo_ o jantar decorria num ambiente de alegria e jovialidade. _ o concerto é no dia 8.
Sabex quem é, sim! _E Elba voltou-se para Celeste, que com a boca ligeiramente aberta, esperava um esclarecimento. _Aquele gajo vextido de gangax, a debitar baladax de amor levex e fofax. É um som com imensax influênciax, do popular ao clássico passando pelo kizomba e pelo cantar alentejano, pelo jazz, sei lá! Simplexmente adoro! Vamux ver?_ perguntou Elba com o ar mais sonhador que os seus olhinhos deixavam.
_Ó Elba, olha que não é Joaquim Varatojo, é Francisco, tenho a certeza! _ Lucas Murro teimava.
_Vamux ux doix Adolfo, dáx-me boleia!
_É pá, ó Elba, não dá mesmo_ e explicou que não podia por causa da Alice. E Elba Calhau queria saber porque estava Adolfo Dias bastante, mas não completamente, preocupado com a mulher.
Alice Mitério passeava triste pelo Jardim dos Ciprestes. Então não é que agora só queria curtir, aquele palhação de merda! Ainda por cima tinha lido a mensagem. "Legggins"! Grandes confianças tinha com Adolfo Dias, a espaçosa da mulherzinha, mas respondeu ao marido: Vai Dôfo, vai e diverte-te.
Conhecemux unx gajux, eu a Lurdex e a  Gertrudex. Eram a senha 90 nax finançax, e nóx a 89, e logo ali vi que havia uma proximidade expecial.
Afinal Vitinho Tinto e Vitinho Verde eram primos. Vitinho Tinto, com o seu bigodinho louro fora de moda é uma careca razoável para a idade, tinha-se virado para traz e comentado com o outro, que olhava debaixo da cabeleira preta e espessa que lhe encurtava a testa _Olha só estas gajas_e acabaram por entabular conversa.
_eu vi logo que elex tinham alguma coisa a ver connoxco_ponderou Elba.
Os primos tinham uma história de vida difícil, desde pequenos a virar frangos na "Churrasqueira Ideal" lá para os lados de Almada.
_Disponíveis, impecáveis_ disseram Lurdes e Gertrudes desvairadas_ o que interessa é que sejam boas pessoas!
_Lá isso são meninax, já nux conhecemux há um mêx, já dá para ver! Eram bonx para vocêx!
_E tu Elba? Eles são dois e nós somos três!
_Ha não! Também conheci ontem um bombeiro voluntário, se bem que eu goxto maix de sapadorex,_disse Elba Calhau acrescentando um tom pensativo ao fim da frase_max não interessa! Olhem, até tem algumax propriedadex, váriux tipux de propriedadex, se me faço entender, e sorriram todos maliciosamente.
" Tenho impressão que está já anda metida com o bombeiro", pensou Adolfo Dias com os seus botões.
_Mais um copo meninas? Bebam lá que eu gosto de vos ver quentinhas!_Juvenal Gadura preenchia os copos das senhoras com ar malandro.
Elba continuou_ Chama-se Abel, Abel Dade de Pessoa. Ainda por cima tem o corpo de um Apolo e o
nome do meu Fernando! Os outros entreolharam-se. Com o barulho do restaurante é aquela frase enigmática, ficaram um pouco baralhados, e riram-se todos a pensar que era uma piada.
_Meux queridux, Extou a ficar melancólica. Quero expressar-vux o que me vai no coração. Adoro conhecer-vux!_e fungou enquanto atirava o cabelo para trás._ Quero dar um abraço a todux!
Só Porfírio Metelo Anão é que não ficou com uma certa humidade no olhos provocada por tanto sentimento.
_Abel Dade de Pessoa_soletrava Elba alheia ao ruído e à confusão_Mas que dixtinto, dixtintíssimo nome. Já nux imagino em Vilamoura, de mãos dadas, a dar voltax à marina e a sonhar com iatex_ e Elba teve uma sensação tão forte de felicidade que começou a ver tudo a andar à roda, e correu para a casa de banho onde por pouco não vomitou para o chão.


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domingo, 22 de fevereiro de 2015

Os peculiares Epi. 2 A inscrição

_ 'Tô no Face bebé, já vou!
Elba Calhau conversava com Lurdes Vairada. _ Extou muito orgulhosa. Podex contar comigo.
_ Olha, ela foi uma pessoa que deixou muitas saudades, e só tu é que és capaz de fazer isto. Morreu aos 97 anos nas Urgências. Suspeitamos que foi negligência. Quando chegou lá estava tão quietinha! Ninguém me contou, eu vi!
_ É o paíx que temux Lurdinhax. Ax pessoax morrem e ninguém faz nada!
Que tal um meeting amanhã é falamux sobre o assunto? Vou contactá-lux!
"Pessoal, meeting amanhã àx 17h em frente ao "Pulguinhas"!
Alinho, respondeu Adolfo Dias on line.
_Também vou. Combinado....., e por aí fora até todos confirmarem.
_ O que queria o bebé da mãe?
Elba Calhau mal ouviu o filho, excitada com a proposta que Lurdes lhe fizera. As irmãs Vairada queriam que fosse ela a escrever a frase, para a incrição na tumba da tia avó.
Amanhã levo já umas propostax para eles me ajudarem a excolher. E logo o seu espírito criativo se pôs a trabalhar.
"Felizex ux que morrem depoix de chegarem à tua idade".
"Eterna tia, cá te ficamos a acenar".
"Amada tia, tu foxte primeiro e nóx vamux a seguir"...
_ O telefone tocou. Celeste Nebrosa atendeu meia a dormir.
_ Ouve só Celeste: "Enquanto extiveste viva foxte a maix eterna dax tiax"
_O quê?_ perguntou a amiga, ensonada, depois da sesta do almoço.
_Nada! Logo te explico.
O Pulguinhas era o bar onde se encontravam, quando só iam beber um copo, e , à hora certa, lá estavam, leves e bem dispostos.
_Lucax, que saudadex, dá cá um abraço!_ e Lucas Murro, que vinha cansado do trabalho, onde ganhava o seu dinheiro e perdia o seu tempo, foi rapidamente beijado e abraçado, e vestígios de maquilhagem ficaram a arrepanhar-lhe ligeiramente a cara.
_Ela, querida. Tudo bem? Olha o Porfírio e o Afonso.
_Juntos outra vez, meus amores. Venham cá_ e Gertrudes Vairada sacou do telemovel, e logo ali tiraram uma selfie, daquelas de sorrisos com muitos dentes, e entraram no Pulguinhas onde pediram a primeira rodada.
_Sim, é maix ou menux isso, uma frase que fique para sempre_declarou Elba depois das devidas explicações. E, amigux, precisava da vossa ajuda.
_Eu preferia falar de gajas mais novas_disse o Adolfo. E riram-se, divertidos com a malandrice.
_Ó Adolfo, taza guzar max inda agora viexte a ajudar-me no carro!
_Ouçam: Lurdex Vairada em vida, Lurdex Vairada em morte. Somux todux eternux.
_Ó Elba, tem que ter eterno, isso é que tem!_afirmou Lucas Murro.
A minha irmã tem o nome dela, esclareceu Gertrudes, de copo na mão, melancólica.
_Lurdes, se eras tão boa em velha, faço ideia em nova_ e Juvenal e os outros desataram às gargalhadas.
Celeste Nebrosa tinha os braços brancos e rechonchudos. Abandonados sobre  mesa, e, como sempre, a boca ligeiramente aberta_Eternas são as trevas e o universo é a luz._declarou enquanto vendia e apagava o isqueiro, com os dedos de unhas negras.
_Ó Celeste, que macabro_
Porfírio Metelo Anão ria-se mas não dizia nada. Todas as frases lhe pareceram um pouco absurdas, já as cervejinhas frescas a escorregar garganta abaixo, era do que mais apreciava.
_Lurdex, todux desejamux que façax em viatura própria a tua eterna viagem, ou então, que Deus te dê boleia! Amigux, goxto dexta, axo que já excolhi._disse Elba Calhau comovida, com os olhinhos húmidos e brilhantes.
_O jeito que tu tens, Elba. Que belíssimas frases_
_Maix um brinde companheirux! Temux que nux encontrar outra vex para a semana. Adoramo-nux?
_Adoramos!_e tocaram os copos uns nos outros emocionados com tanta cumplicidade. Somux peculiarex, e lembraram com saudade o perspicaz professor.
_Elba, olha ali!_ No Pulguinhas entravam conversando um polícia e dois bombeiros.
_Uau! Já extou a ficar com calorex!
_É só uma cerveja, Alice! Saber das novidades.Um dia hàs-de ir comigo_tinha dito Adolfo Dias à mulher, antes de sair de casa.
_Está bem Dôfo, da próxima havemos de combinar._ e Alice Mitério recordou em pensamento quela frase engraçada:" preferia cagar um pé de merda até ao joelho", e não acrescentou mais nada.
Adolfo Dias andava irritado. Alice sempre triste vá-se lá saber porquê, já a irmã, Eunice Mitério também era assim, e não via com bons olhos as suas saídas, e ele que não fazia nada de mal, simplesmente adorava os amigos. E Elba.... Vistosa, os olhos pequeninos e vivos e outras coisas maiores....
_Ó Dôfo, a tua amiga Elba é muito feia!
_Oh, coitada, não é nada! Respondeu Adolfo.
 "Chiça!  Não percebo nada de beleza feminina" _Sim,, pensando melhor tens razão_
Dias mais tarde, Gertrudes Vairada mandou mensagem no Face para Elba: Elba, muito obrigada pela tua amizade e dedicação. Embora a família não tenha escolhido nenhuma das tuas propostas, elas serviram-nos de forte inspiração. Assim, optámos por uma inscrição mais simples: "Lurdinhas, eterna saudade, campa número 327." Que tal?
Fico muito contente por ter ajudado, e maix contentes ainda pelo reconhecimento da minha aptdão natural para estax coisax. Beijinhux grandex. Elba Calhau


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O verão puxa à cerveja

Alfama era trista como a noite, a folia não tinha graça nenhuma, as sardinhas uma merda, velhas e secas, as piores que já comi.
Só gostei do desfile, porque já tinha bebido para aí umas seis cervejas.
No dia seguinte fui à praia. Assim que lá cheguei verifiquei que o sol estava quente de mais, e, a partir daí, comecei a pensar no momento de me ir embora.
Cheguei a casa, e, dez minutos depois, desejei ir para a cama, para ser o dia seguinte, para depois voltar para a praia.
Contente, no verão quente de bom.
Um ou outro dia contemplava a cidade. Magnífica, do topo de uma das colinas, com aquela luz que só o verão permite ver. O rio, o castelo, o isto, o aquilo, maravilhas do mais parvo que há, a não ser que seis cervejas contribuam para a beleza interior dos rostos sorumbáticos a passar.
Na esplanada, num fim de tarde fantástico, um pai imitava uma galinha para agradar aos filhos. Imagem que guardo no coração com a maior ternura.
Voltando a Lisboa,bebi um café que me soube muito bem, num quiosque sufocante, debaixo do chão, no corredor do metro.
Famílias de dez, barulhentas e feias, a cobrir a areia. Na água não se podia estar.
O Tejo, esse malandro, turvo e opulento, de conivência com o mar, vazio da beleza transparente que era antes.
A não ser que beba seis cervejas, ou sete, ou oito, ou nove! Tantas quantas as necessárias. Tenho medo é da última, que pode cair-me mal!

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Os Peculiares. Episódio 1. _ O jantar

_ A reserva fica, então, em nome de quem?
_Elba Calhau, e já sabe, àx 21horax, mesa para oito. Com licença, obrigada. Elba desligou o seu "androíde", viu as horas e pensou:" Meux deusex! Tenho pouquíssimo tempo"! E entrou no automóvel, não sem antes os avisar a todos: Hoje às nove!
Que bem que sabia ir jantar com os amigos e colegas! O Adolfo, as irmãs Vairada, a Celeste...
Encontraram-se pela primeira vez num curso de desenho, com um professor de bigode repuxado e olhar distante, e onde, na primeira aula se apresentaram para melhor se conhecerem uns aos outros.
_ Digam-me então como se chamam, por favor.
_ Eu sou Elba Calhau, desempregada_  E um a um se identificaram, e lá foram explicando o seu interesse pelo curso em questão. Lucas Murro, as duas irmãs, boas raparigas mas um pouco amalucadas: Gertrudes Vairada e Lurdes Vairada. Depois, sempre vestida de preto, com a pele muito branca e umpouco de peso a mais que lhe sobressaía da roupa justa, Celeste Nebrosa, uma amiga para sempre. Do outro lado da sala. Juvenal Gadura, o amável Adolfo Dias, e finalmente, um verdadeiro "gentleman", o mais velho e o mais sabedor, Porfírio Metelo Anão.
_ Meus senhores,são efetivamente, a turma mais peculiar que já tive. Disse na altura o professor, depois de ouvir os seus nomes.
"Somos peculiares"! E logo se agitaram todos nas cadeiras.
Elba chegou ao cabeleireiro, e com um invulgar poder persuasivo, pôs todas as funcionárias a trabalhar para si. A Lúcia a arranjar o pé direito, as mãos para a Sãozinha, a Bety no outro pé, e do jeitinho nas madeixas louras encarregava-se a Dulceneide, com imensas inovações brasileiras.
_ Max que excelente trabalho, o dax meninax, e enchia a boca com os "xes", para dar voluptuosidade à voz.
Próximo de si, vivia Adolfo Dias com a mulher, Alice Mitério, uma criatura soturna e triste.
_ Vais outra vez jantar fora Dôfo?_ perguntou suavemente.
_ Oh querida_ respondeu enquanto a beijava na testa,_ Estes jantares são bons, sabem-se coisas importantes.
_ E com quem vais daqui Dôfo?
_ Vou sózinho, querida. A Elba Calhau apanha boleia do Lucas Murro.
Adolfo saíu de casa, agarrou no telemóvel e escreveu: Elba, espero por ti no sítio do costume.
Quando chegaram ao local já lá estava Lurdes Vairada, nervosa, a andar de um lado para o outro, e logo a seguir chegou Celeste Nebrosa, de capote e baton negro.
_ Elba, olha aquele "bonzaço" ali.
_ Hi, até arrepia. Vamux lá?
Já todos reunidos entraram no restaurante, o "Molhos" ali para o Bairro, com bom vinho e preços económicos, o ideal para este tipo de encontros. Sempre se conseguemjuntar uns trocos e ir para a folia, para levar desta vida o que ela tem de bom.
À mesa, depois de servidas as bebidas, a primeira coisa que fizeram foi um brinde à felicidade de todos, e também o seu grito de guerra, à semelhança do que acontece nos desportos de equipa.
_ Adoramo-nux?_ perguntava Elba de copo na mão.
_ Adoramos!_ respondiam os outros em coro.
Entretanto apeteceu a Gertrudes Vairada um creme de ervilhas, que já lhe tinha cheirado muito bem, e que comeu enquanto se debicava o pão e o queijo das entradas, e se regava tudo com vinho.
_ Bolas, este creme está demasiado grosso!
_ E não gostas deles grossos ó Gertrudes?_ perguntou Juvenal Gadura. E logo se riram os que ouviram, no meio da conversa animada.
_ Mais um copo Elba?
_ Sim Adolfo, obrigada. Vamux brindar outra vez pessoal? À nossa e a Fernando Pessoa!
_ Fernado Pessoa? Interrogou Porfírio Metelo Anão, delicadamente.
_Claro, ó Porfírio. O meu Pessoa, o meu Pessoazinho que eu tanto goxto!
_ Ó Elba, isso é que não! Não vou brindar a esse gajo. Ainda por cima já está morto! _ disse Lucas Murro.
_ Ó Lucax, não sejax teimoso. É pá, exte jantar tem que ser comemorado. Encontramo- nux daqui a um mêx ou doix. Fica já combinado. Ai, 'tô sempre a fazer rimax, é maix forte do que eu!
Celeste Nebrosa, que sorria de olhos sensuais e vidrados por baixo da maquilhagem pesada, pediu a Juvenal _ Mete- me aí mais vinho. _ Então não meto ó Celeste, eu gosto é de meter! E riram- se a bandeiras despregadas.
_ Ó Elba, então e os teus filhos? E o teu "ex"? Tem-te chateado?_ e assim ia decorrendo a noite! super animada.
As irmãs Vairada lembraram como o professor lhes tinha dito que eram peculiares e Elba disse: "Somux nóx e o mundo !"  E essa frase deixou-os maravilhados, de tão verdadeira, inteligente e bem pronunciada.
_ És linda Elba!_ gritou Adolfo Dias_ És linda! E os outros concordaram numa eleger manifestação sonora.
_ E, amigux, ainda, ainda sou completamente contra o acordo ortográfico! Exclamou Elba Calhau, orgulhosa. _ E saímux daqui e vamos beber maix um copo!_ e isto provocou o entusiasmo geral.
_ Eu se calhar não vou. Tenho que me levantar cedo amanhã._ disse Adolfo Dias pouco à vontade, porque se lembrou da recomendação da mulher. "Depois do jantar vem para casa Dôfo". Adolfo até se tinha irritado. Gritou-lhe que se sentia uma besta enjaulada. "Uma besta lá isso és, grande cabrão. Enjaulada estou eu, entre os tachos e a casa arrumada", pensou Alice quando ouviu aquela frase tão dura. Pensou, mas não disse uma palavra.
_Olha! Acho que já não vamos a lado nenhum_ comentou Juvenal para Porfírio, quando, após o jantar se reuniram na rua movimentada. E apontou para Elba. Ia apoiada entre a Celeste e o Adolfo, a trocar os pés, toda dobrada, olhos revirados, e entaramelando a voz, balbuciava baixinho:
_ Pessoa...., O Acor........., e beijinhux...., bei....., beijinhux........






sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O direito à vida

Maria sobrevivia do seu esforço, trabalho infindável, bebés nus, meninos descalços. O marido, presente e bom pai, marido benevolente que dizia e pensava: Só tens que me dar cama e roupa lavada. Tratar dos nossos filhos como se só teus fossem, fazer a nossa janta, abrir o corpo no sono de vez em quando.
E Maria fazia e não retorquia, às vezes andava triste mas não chateava nada.
Maria sobrevivia do seu esforço. Levava os meninos à escola, e levava o bebé no colo para não ficar sozinho em casa.
Pelo calor!
Mais pela fresca chegava o seu homem, cansado e contente de chegar a casa, para se recostar, para a Maria limpar a cinza dos seus cigarros sem se zangar.
Um dia, a Maria teve uma surpresa. Reparou no peito duro, no ciclo normal das coisas que tardava em chegar, e dia após dia, continuou fazendo o que já fazia. Carregou sete sacos de compras, a carteira vazia, e levava o bebé no colo para não ficar sozinho em casa.
O corpo nunca a enganava, doía e inchava, e em si pulsava outra vida. E Maria sobrevivia do seu esforço, trabalho infindável. O marido, bom homem, fiel e honesto aninhado no sofá, amante de coisas sem importância, como um copo de vinho, um cinzeiro e algum dinheiro, coisa pouca.
Chegou perto do seu ouvido e disse-lhe:
Estou grávida e muito triste. Carrego um peso no peito, uma dor de encovar os olhos, um sentimento enviesado, um nó na cabeça, uma imensa e eterna pena.
Não estou feliz, estou triste!
Então o seu homem falou da sala de estar para a cozinha e assim disse:
Deixa lá Maria, com tanta tristeza na alma não se deve fazer vida. Não te deixam descansada!
Sobreviveu ela e os seus filhos, que para repartir já não tinham nada. Deram o que tinham uns aos outros, e o pai benevolente, consciente aceitava.
Nesse fatídico dia, Maria levou os filhos à escola e o bebé no colo para não ficar sozinho em casa.
Sobreviveu mais um pouco a Maria, nesse dia sobreviveu!

Sem título

Sombras de luz inclinada
bonecos  de marfim
Rosáceas na face espantada
o pitoresco de mim
Nada para dizer
nem de outra forma
nem assim
A palavra desfeita em letra
caída aos meus pés
Só poema sem fim!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Minha Nossa Senhora

Descobri o terceiro milagre de Fátima (apesar de já ter sido revelado).
No ana de 2004, o fenómeno de Fátima rendeu à igreja 11,8 milhões de euros. É ou não é um milagre?
Fátima, quando nos visitou, disse aos pastorzinhos:
Vejam lá se dizem a todo o pessoal que eu apareci. Tive uma trabalheira do caraças, nem tinha lá nenhum vestido apropriado, mas depois disseram-me, -- Leva o de lantejoulas para brilhar com o sol. Vai bem arreada que eles vão fazer medalhinhas e canetas com a tua figura. Diz aos pastorzinhos que em 2004 vão ganhar essa pipa de massa, que eles até se vão passar da cabeça. E sobe a uma oliveira, que é mais fácil que um eucalipto.
E pronto, cá estou eu. Não sei se isto é uma oliveira, mas já estou cansada de estar aqui! Os pastorzinhos olharam uns para os outros e pensaram: "Que linda senhora. Nunca vimos nenhuma assim - Donde vieste? Quanto é um euro? Tens algum aí ?
- Vim do céu, ora bolas! Os meninos não vão à missa? Não sabem que existe o céu? Ai! As minhas costas! Vou descer daqui! Euros? Não tenho bolsos ó putos! Náo me deixaram trazer malinha, nem mochila, nada! Que não ficava bem à Nossa Senhora vir de mala.
Os pastorzinhos sentaram-se, as formiguinhas a passar na erva seca, "Anda, senta-te aqui ao pé de nós".
- Ai! Obrigada, estou toda partida da viagem e ainda tenho mais dois milagres para revelar. Deixa ver se me lembro.
Deixa lá isso Nossa Senhora. Quanto vale um euro? Cinco escudos? Dez?
- Duzentos escudos putos, vão ficar ricos graças a mim, por isso, agora a seguir, vão já dizer a toda a gente que me viram. Não dizem os milagres, só dizem que me viram e que estive na conversa e que desbobinei que iam acontecer umas coisas. Ai!! Os outros milagres parece que não me lembro, depois inventem vocês!
Os pastorzinhos sacaram dos seus pães com chouriço e ofereceram.
Ná, obrigada! Não como chouriço nem enchidos nenhuns, fazem-me mal à tripa, e tenho que me ir embora. Pensei que ia encontrar mais gente, mais pastorzinhos! Gostava tanto de ver um pastorzinho bébé! Bem, mas correu bem assim. Corram agora vocês, pastorzinhos. Corram a dizer ao pessoal que me viram, mas atenção, não digam tudo o que eu disse. Vou-me embora. Que vestido horrível para andar aqui!!
E os pastorzinhos acabaram calmamente os seus pães e largaram a correr encosta abaixo encosta acima, encosta abaixo encosta acima, encosta abaixo encosta acima, como a Nossa Senhora lhes tinha mandado, mas depois perceberam que talvez fosse melhor ir diretamente para a aldeia contar tudo mas sem revelar nada. Tantos milhões de euros era muito dinheiro!
Que linda senhora!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O politicamente correto

O politicamente correto
Não dizer caralho próximo de senhoras de idade.
Não dar peidos em reuniões do concelho de ministros, ou outras.
Não escrever Deus com minúscula.
Em caso algum lavar a peida em público.
O politicamente correto
Nunca reconhecer que há dias em que o sexo é uma verdadeira merda.
Não tirar macacos do nariz fora do automóvel.
Não fumar, nem no quarto, nem na sala, nem na casa toda, nem em nada que tenha telhado e parades. Só à chuva.
Não fuder o juízo às pessoas.
Não mentir, pelo menos descaradamente.
Não esperar um colhão de dias para apanhar a roupa do estendal.
Não tirar a dentadura num espaço com menos de cem metros quadrados.
O politicamente correto
Nunca cobiçar os "bonzaços" das outras.
Não bater, nem no pai, nem na mãe, nem na avó, e não bater com a cabeça nas paredes (brancas).
Nunca mijar pernas abaixo, mesmo velho e doente.
Nunca bater punhetas à luz do dia,
E não ter maus pensamentos,
Nunca por nunca ser!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Peninha

  Ainda que pareça uma frase feita
a verdade é que o vento lhe fustigava todo o corpo,
que parecia querer caír
sobre o mar distante.
O mar,
que o nevoeiro raramente deixava ver.

O som,
esse era tenebroso.
convidando-te a descer
o inquietante abrupto horizonte.

Não há palavras!
Ou se as há
eu não as tenho.
Não nesta mesa de cozinha,
no sopé do monte.


    Di:

Está um pão no micro para arranjares para levar.
Almoça. Há canelones no frigorífico, ou arroz com atum.
'Tá aqui 10€  (empresto).
Bjinhos

                                          Mãe Edite

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Sem título

  Havia uma infinidade de coisas entre os seus olhos e as gotas que pingavam da torneira, e vagos pássaros e longínquos automóveis a preencher o silêncio cheio. Não lhe interessava se estava sentado na sanita, ou num banco, ou na varanda mais bonita, O que lhe interessava era reconhecimento da existência e da vida, e era o que os seus grandes olhos olhavam. Apenas os pingos, um a um, que caíam!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O arrogante João e a parva Inês

   O João tinha uma vida de muitas e lindíssimas mulheres, exibidas como troféus, aos amigos e aos conhecidos, em festas de ocasião.
   "Esta é a Inês. Eu tenho cinquenta e ela tem vinte e três". Como aos amigos tanto lhes fazia que a Inês tivesse aquela, ou outra idade qualquer, o João prosseguia na descrição pormenorizada da fortuna do pai da preciosa Inês, um homem que afinal até era para a mesma idade que a sua, e até se tratavam muito familiarmente por "tu"!
   E como os amigos pouco interessados estavam em hectares próximos de Beja, ou Viana do Castelo, ou o que fosse, o João insistia que ele e a Inês se davam maravilhosamente, desde que se tinham envolvido, havia dois ou três meses. E não querendo saber os amigos de tão fugaz felicidade, o João passava para os conhecidos, que sempre simulam uma expressão de interesse, e de inevitável delicadeza, como quando se conhece mal alguém, e se tem esperança que da sua conversa nasça alguma coisa de relevante.
   E a Inês? A Inês não podia dizer: "Este é o João, e tem metade da minha idade, pois sobrar-lhe-iam apenas onze anos e uns quantos meses de pessoa, o que é um pouco absurdo, e nada vangloriador! Também não podia falar de fortunas, porque o João nada tinha, para além da sua voz quente! O que podia dizer aos amigos era: "Estou completamente apaixonada por este velho a dar para o gordo", mas isso também não ia dizer, porque não é coisa que se revele nem aos amigos, quanto mais aos conhecidos. Até porque, se calhar, disso a Inês nem se apercebia, porque o amor não escolhe idades, nem densidades, nem volumes, nem recheios de carteira!
   E não tendo nada de relevante para dizer sobre o João, amando-o só porque o amava, a inocente e inexperiente Inês participava nas conversas, calada, apenas deixando, involuntariamente, os olhos brilhar!


 

Canção

Um mero pensamento
um gesto afetuoso do vento
um mar de palavras
amor de brisa em movimento,
e noutro momento
a chuva em bátegas

Às vezes o dia seguinte
o sol molhado sobre a erva
e depois o tempo
que cai sobre a pele
e sobre o rosto
substituindo
a lágrima transparente
dos olhos breves
e inocentes....
e noutro momento,
diferente,
a chuva em bátegas.


Janela de sotão

O intenso da chuva por trás
por trás a janela do sótão
a sugestão do vento
o tempo cinzento.

À frente uma eloquência de livros
um cavalgar de cavalos
um alento grandioso
uma quimera, sei lá!

À frente um poema sem nada
oco por dentro, evidentemente
pulsando de vida quente
e macia

O intenso da chuva por trás
a janela do sótão
a sugestão do vento
o tempo cinzento...

EG, abril de 2019

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

   Quinta-feira

O meu dia do corropio é quinta-feira! E o seu? É à sexta não é? É como o meu, dia após dia, nem sábado nem domingo hão-de escapar. A sua hora tranquila é à noite, no sofá, não é?  Começa a ver televisão, e o som vai-lhe fugindo junto com as imagens, devagar!  E cochila um cochilo torto, e acorda, e mete-se na cama depois de acordar. Estranho não é?
À segunda começa a semana, começa o mês, começa o ano, começa o que começar. À terça começa igualmente qualquer coisa, para mim e para si, não é?
Começa com um apito, um trinado, uma sinfonia, um homem a falar. Qualquer coisa que entre no seu sono profundo, e que, à quarta-feira, ou outro dia à sua escolha, o faça recomeçar.


Não está chuva nem orvalho,
está um frio do caralho!

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

             Lisboa 2

Pisando a calçada molhada
devagar
Cada passo triste
Cada gota de chuva
é Lisboa a chorar.
Pisando a calçada molhada
devagar
Cada memória perdida
é um fio de vida
uma gaivota
abrigada do mar
Cada passo triste
Cada gota de chuva
é Lisboa a chorar.
Pisando a calçada molhada
devagar.

 



        Lisboa 1

Lisboa vista desta janela,
numa colina
sobre a cidade.
É isto, Lisboa
tanto soalheira,
como beldade adormecida.
Para mim,
às vezes,
é a demência amarrada às macas,
a sala de trauma,
os condutores imprudentes,
o escuro!


sábado, 3 de janeiro de 2015

Leia!

Leia! Leia muito português
Que não lhe servirá para nada
Leia a Bola e a Maria
E faça as palavras cruzadas.
Leia jovem, leia adulto,
No país das golpadas,
e discuta consigo mesmo
tudo o que ler lhe deu,
mas que nenhum dos outros leu!
Leia. Sente-se e converse!
Quando fôr falar com um chefe,
um homem bem sucedido,
que sem ler a ponta dum corno
foi sempre sendo promovido.
Comece a ler de pequeno,
Mas não leia Dickens nem Grimm,
leia contos de atrasar,
" A avó foi fazer cócó",
"O penico pequenino",
para  não assustar o menino!!
E em jovem leia legendas,
que não é mau para começar!
Leia e escreva mal!
Se quiser ter um bom emprego
é condição preferencial!
Leia muito em Portugal!
Leia ordens de serviço,
A fronha de quem as escreveu,
que de tão incompreensíveis
são as que toda a gente mais leu!
Leia Camões e Pessoa
Ponha os seus óculos de sol
e vá conduzir na broa,
enquanto lê o jornal!