quinta-feira, 22 de junho de 2017

Vieira

O cinzeiro improvisado
era uma concha de vieira
que recebeu
para um alojamento de meses
um pequeno papel,...
sobras de uma embalagem
de sedoso sabonete.
Nem sabíamos se daria para escrever.
Guardou-nos,
aquele tempo todo,
uma palavra solta, muito normal
escrita em tinta vulgar,
mas naquela altura
suspeitámos
provir de um mundo diferente.
O sol,
teimosamente a incidir
sobre o parapeito,
assimilou-a
deixando-a praticamente invisível
para percebermos,
de uma vez por todas,
que aquela palavra
e os seus átomos instáveis
são a medida de um tempo
inexistente.

Urgência (EI)

Não tenho nada, assim,
com muita #urgência
para fazer.
Por isso
vou ficar aqui esparramada ...
a escrever
(o que me apetecer)
e verifico, satisfeita,
que
com duas ou três palavras
apenas,
transformei
o imediato da urgência
na lentidão do lazer.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Quarta dois (EI)

Porque coxeia, a centopeia?
Danificou a #quarta pata
do lado direito
de quem olha para ela.
Do outro lado, ...
diametralmente oposto
mas de algum modo
aleatório
a mesma pata, a quarta,
só que desta vez
facilmente observada
pela própria.
Donde,
sem grande esforço
se entende a relevância
da obrigatoriadade
de usarem as centopeias
espelhos retrovisores

Quarta

Não foi quarta-feira,
lamento,
foi sim no sábado
que, de olhos abertos
projetou no teto...
branco (como a maioria dos tetos),
uma floresta
de faunos encantados
de felinos silenciosos
de árvores sussurrando
o mesmo
que vem nos livros,
folhas falantes
discursos incompreensíveis
e água invisível
de forte corrente
transparente
no teto branco.

Rimini

  Não fosse o caso da menina ter uma estatura tão pequena, bem esticadinha media apenas um centímetro, Rimini, assim era o nome dela, demonstrava ser uma criança em tudo normal.
  A maior parte das vezes usava um vestidinho encarnado, e, quando chovia, abrigava-se debaixo de uma das múltiplas folhas que profusamente existiam naquele quintal.
  Até aqui nada de extraordinário, quantas vezes já nos deparámos, nas histórias para crianças, com personagens minúsculos, ou, pelo contrário, gigantes transfigurados, partindo sempre da nossa base mais que sólida, assente numa estatura dita normal, não havendo, portanto, para esta criança, qualquer desproporção.
  A verdade é que a realidade era daquele tamanho, e não se espantava, como nos espantaríamos nós, se as gotas de chuva, fossem muito gordas e altas, e contivessem reflexos de aurora boreal.
  Certo dia, em que mais uma vez observava o enorme pingo pendurado de forma instável, na pontinha da folha de borragem, por baixo da qual se encontrava abrigada, Rimini, muito a medo, não fosse aquele enorme depósito de água rebentar e a levar na enxurrada, esticou uma perna, e, com o pé, bateu devagar na parede cristalina.
  Mas aconteceu o que a inocente criança não esperava, e ainda para mais assim tão pequenina. A cápsula de água não ofereceu qualquer resistência, e, a miúda, curiosa, acabou por entrar.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Lustre (EI)

Quando eu era miúda havia um #lustre lá em casa.
De vez em quando calhava-me limpá-lo, uma espécie de tortura chinesa que me inflingiam, sem qualquer necessidade, já que havia uma pessoa paga para limpar.
Era, portanto, pura maldade, e eu olhava para o teto e via aquele pequeno monstro, com dezenas de penduricalhos e outras pecinhas malvadas.
Mas como, e muito justamente, os estudos estavam naquela casa sempre em primeiro lugar, meia hora depois de iniciada a tarefa, já eu estava sentada em frente à escrivaninha ( ninguém se senta frente a uma coisa destas, hoje em dia, é mesmo do tempo dos lustres), com um livro aberto à minha frente, e não raras vezes, sobre a matéria obrigatória, disfarçado, um outro livro dos meu interesses.

Mátria

Eu bem o vi,
imóvel,
apoiado
numa só perna
esguia
e alta.
Rodava o pescoço
cento e oitenta
graus
como as aves
enquanto cantava,
convenhamos,
divinamente:
Celina pátria
nodosa,
ureia e creatinina,
e mátria polpa
pomposa
e sátira à música
lírica,
e pânico satânico
do muito medo
merdoso.
Lá lá lá
Lá lá lá!
Repetiu, cantando,
vezes sem conta,
o mesmo,
e de repente desapareceu.

Nívea (EI)

Sentado na toalha, apoiado nos braços, com o sol a incidir sobre toda a superfície da sua redonda e lustrosa barriga, observava um jogo de voleibol que umas catraias e uns catraios se entretinham a jogar.
De um dos lados, a esposa, esticada de costas, quase a dormir, naquela letargia provocada pelo calor, do outro, o creme solar #Nívea, com fator de proteção 30 Plus, meio enterrado na areia.
"Joca", chamou suavemente a senhora, quando acordou daquela sonolência, por se te...r lembrado do problema da escolha do jantar.
O Joca olhou para o lado, gesto que não passou despercebido a uma das jogadoras, talvez a mais habituada a jogos com bolas, e também de exímia pontaria.
Calculou a distância do mirone, o efeito do vento na trajetória, e vai de lhe acertar com o projétil em cheio.
"Fds"
"Francamente, Joca, nunca se pode falar contigo!"

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Kai

  Mais visíveis à noite, os anúncios luminosos, placas de néon, números atómicos de cores vivas, que mudavam a cada três segundos.
  A televisão publicitava a toda a hora, e hologramas enchiam os estádios no intervalo dos jogos.
" Nova livraria. Magnífica livraria universal abre já este mês. Grande inauguração no dia 21."
  Como pode ser? Como não vê #Kai, neste negócio, um nado morto? Porquê?
  Pareceu-me de bom tom, meu dever, até, avisá-lo do prejuízo latente, falar-lhe do dinheiro já gasto, desperdiçado, deitado fora.
  Os écrans enchiam-se de frases, curtas, com o propósito de facilitar a leitura. Frases mágicas, enigmáticas, e usavam todo o tipo de palavras, umas rugosas, outras macias, mais ou menos consistentes.
  Havia até um concurso a decorrer: "Se fosse sua, que nome lhe daria, à nossa livraria?"
  "Livraria de todos."
  "Partilhe connosco os segredos da imaginação do homem!", e as letras negras sobressaíam sobre um verde incandescente.
  "Venha!", e o "venha" era forte e intensamente laranja.
  Oh! Como não vê a morte anunciada? O espaço sem ninguém logo nos primeiros dias?
  "Sabia que os livros protegem do calor e do frio?"
  "Viva outras vidas para além da sua!"
  "Atendimento personalizado. Diga-nos quem é, e dar-lhe-emos o livro que o mudará para sempre!"
  Mas como não vê Kai, que nem sequer ele existe?