quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Halloween



Quando se vivem tempos de crise, essa falta de dinheiro circulante também se reflete no #Halloween.
Com o pretexto de que as abóboras estavam  em vias de extinção, ou que eram perigosas,  já nem me lembro bem da justificação que deu, na altura, houve um ano em que o nosso Presidente da Câmara teve que reduzir o orçamento para os enfeites alegóricos, logo, tivemos menos abóboras espalhadas pela vila.
A minha tia Lurdes, então, passou o tempo a refilar.
 Cruzava uma esquina, olhava fixamente para um canto qualquer, e rematava:
 "Olha..., vês? O ano passado estava aqui uma. Que tristeza. Malandros...! Pelo menos a abóbora menina, espero que não a tenham tirado das palhinhas. Isso, então, era demais!
Ah..., olha..., ali mantiveram. Vá lá...Que linda, esta!"
E apontou para a careca alaranjada do vizinho, sentado à porta de casa.
Tudo bem, por mim está sempre tudo bem, e até percebo a sua confusão. E também ela não era pessoa que me agradasse contrariar porque  sabia, à partida, sofrer de ataques nervosos,
Limitei-me a rezar para que  o senhor não falasse ao passarmos por ele, mas, e sem saber o mal que provocava, na mais pura das delicadezas, o homem cumprimentou-nos.
Tive um momento de aflição. "Queres ver que vai começar a espumar pela boca e a dizer palavrões de fazer corar a pessoa mais ordinária do mundo?"
"Olha, Célita, são poucas mas falam! Que lindo!"
A minha boa tia, felizmente, foi só o que me disse, "Olha, Célita, são poucas mas falam! Que lindo!"
e seguimos caminho.
"Olha, Célita, são poucas mas falam! Que lindo!"
Como não se calasse, dei-lhe doi sopapos e deixei-a sentada numa paragem de autocarro, protegida da chuva.








domingo, 28 de outubro de 2018

Amélia

Se me atrevesse a perceber cada uma delas, viradas para o mar, silenciosas, a sombra dos seus jardins em flor, do outro lado da estrada, não haveria água cristalina, notas de música, e não haveria um único poema.
Enquanto  eles ficaram por lá, naquela cadência habitual, mergulhar, secar, mergulhar, nós fomos dar um passeio.
Contornámos a curva larga, atrevêmo-nos numa rua  que parecia não ter fim.
Há sempre um maestro que nos conduz, como numa orquestra,
o seu papel no universo é precisamente, conduzir os violinos, as flautas, o contrabaixo,
ou outros instrumentos quaisquer, colocados nas rochas planas, nada de falésias,
apenas rochas horizontais,  línguas de pedra húmida,
de onde, inexplicavelmente, brotavam também rosas para colher em  ramos, cada um de sua cor, para lhe serem entregues no final, em sinal de reconhecimento.
Não é fácil descrever a rua, curvando para baixo, para depois seguir, comprida,
acompanhando o mar, que está do lado esquerdo, bem o vi, atrás dos  enfeites do restaurante e das grades do terraço, como se a sua vastidão fosse um grande olho prescrutador..
Levávamos mochilas ou sacos pequenos com os nossos pertences, por exemplo a carteira, a toalha, os cigarros.
A  areia terra sujava-nos os  pés.
Que bela ideia aquele miradouro verde ao fundo da baía luminosa, o mar tranquilo e azul, não há outra forma de o dizer, o mar tranquilo e suave por todo o lado.
Sentámo-nos num banco de madeira a apreciar o grande infinito
que ali estava à nossa frente, aparentemente mudo.
Depois, seguimos para lá do fim.
Nem as pessoas por ali andam já, porque não há paciência  para aguentar o vibrar impercetível da luz do dia a morrer, e a passarada a voar em preciosos ciclos de matar o tempo.
Cada gesto que fizeste, eu bem vi, atrás de uma cortina, os teus olhos de cera líquida que nos espreitavam, com o corpo evadido
e o coração acelerado como nós, considerando-nos a todos   uns malfeitores, porque perturbamos as ervas aprumadas, que, ao momento, nem se mexem, a tua vivenda majestosa e isolada, de guarda aos  oceanos sem fim.
Nem as cigarras cantam, não se ouve rigorosamente nada, e essa ausência de som acaba por nos cobrir, como se de um manto invisível se tratasse, os ombros arredondados, a descoberto na roupa leve,





quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Amadeu

Nos últimos tempos andava a notar na mulher qualquer coisa de estranho. Havia nela uma frieza que não lhe era habitual, esquivava-se com desculpas apressadas à sua aproximação, e mesmo quando tentava um gesto meigo, como um beijo na testa quando saía de casa para o trabalho, ou quando chegava cansado, e se abeirava dela para a cumprimentar, percebia-lhe nos olhos um vazio, sentia-lhe a pele arisca comunicando em silêncio que algo não estava bem.
Um dia de Inverno escuro, de frio húmido que atravessava tudo até chegar aos ossos, um frio impossível de combater fossem quais fossem os processos utilizados para aquecer as casas ou o corpo dos indivíduos daquela terra perdida num monte, encontrou um recado sobre a mesa da cozinha.

"#Amadeu, eu vou morrer. Deixo-te para que te lembres de mim a sorrir, para que não vivas a tristeza de  me ver  definhar, como acredito que nos próximos tempos me vai acontecer. Lembra-te, Amadeu. Eu sou alegria, sempre fui, e tu, melhor que ninguém, sabes disso, e é assim que te peço, encarecidamente, que te lembres da minha pessoa, sempre a rir."

Amadeu dobrou o papel em quatro, guardou-o dentro da mão fechada, e deitou-se em cima da cama por abrir.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Beirute



A vizinha  chegou-se à varanda e sobrepôs a sua voz irritante ao canto dos pássaros.
Aquelas palavras ocas a embaterem umas nas outras faziam um ruído desagradável.
"Passemos à sala", dizia ela aproveitando para sibilar os esses, como fazem as cobras.
Nesse preciso momento, #Beirute pulou para cima da secretária.
Ficou à minha frente com as patas enroladas e a sua silhueta de esfinge negra.
"Passemos à sala" repetia, e eu a escrevê-la com um fio de tinta que me escorria dos dedos que absorviam coisas inimagináveis e mágicas.
O gato preto agora dorme, ou finge, talvez.
Sei que bastará uma invisibilidade qualquer  para se pôr alerta.
Calou-se. A vizinha calou-se e voltou para dentro.
 Ouvi-lhe os saltos que batiam nos mosaicos do terraço. Ouvi até o som desaparecer.

Encontrei um  recado ilegível debaixo da porta, escrito com uma letra escorrida sem ter traços ou pernas, ou pontos no is.
Beirute aproximou-se, devagar, e fixou os olhos na parede,

#Beirute (Emendar C)


Abriu a porta do pequeno edifício onde vivia,
num beco escuro.

Pela sua  fachada, virada a norte,
o dia luminoso nunca  entrava pelas varandas,
e os prédios em redor
tapavam qualquer claridade possível,
também muito porque a rua
era demasiado estreita.

Subiu a escada de madeira  gasta,
os cinco degraus que se encontravam
entre ele e a porta da sua casa.
que abriu,
metendo a chave à fechadura das sete chaves,
enferrujada, por causa da humidade.

Depois de entrar, deu-lhe duas voltas.
Atravessou a casa pequena
para chegar aos dois palmos de terra
um pouco descuidados, que havia do outro lado.
Soalheiros.

Lá fora, o lixo amontoava-se nos cantos,
em volumes de folhas secas,
e outros objetos tão leves que
vêm de todos os sítios,
rodopiam no ar até embaterem
contra muros de quintal ao abandono.

São penas de pássaro, pelos de gato e de cão,
empurrados pela brisa com a maior das facilidades,
e ali ficam,
até alguém os retirar para um saco do lixo.

No meio da confusão,
ao lado de uma pirâmide de  vasos
de barro, vazios,
enfiados uns nos outros,
sentava-se naquela cadeira.
cujas quatro pernas se encontravam
quase totalmente tapadas pelas ervas,
não obstante, haver no chão, em frente,
um pequeno pedaço de terra batida
que era o lugar  dos seus pés.


terça-feira, 23 de outubro de 2018

O #Aljube da Praia

Ia a formiga aos tropeções de cada vez que alguém pisava a areia.
Os miúdos, então, leves e rápidos, faziam levantar os grãos mais alto e mais longe,
bem..., os muito pesados também eram perigosos, podiam esborrachá-la com alguma facilidade.

E lá ia ela de pernas para o ar, arremessada para onde calhasse a sua sorte.

Duas das patas dianteiras seguravam, sobre o dorso, sobras de um cadáver de barata
que ela e as suas amigas tinham esventrado à sombra de um velho chapéu de sol, inclinado o suficiente para o efeito.

Ao fundo  ouvia-se o  cantar da cigarra, que vibrava entre as ervas secas, e provocava uma ligeiríssima brisa que, ouvida pelos seus ouvidos, tendia a refrescar o calor do verão, e mais ao fundo ainda, de madeira gasta pelo sal da água, era mais no inverno que o mar salpicava tudo de sal corrosivo e a própria atmosfera era húmida e desagradável, a sua casa, onde havia túneis à sua medida, entre as tábuas do chão.

Com alguma dificuldade, retomou o seu percurso, aproximando-se, inadvertidamente daquele perigo, perigoso, e parou, veja-se, parou quando por lá passou em frente, para ver o balanço dos juncos na ria.
E lá estava ela, a cigarra quase invisível,cantando as suas melodias provocatórias, "Eu é que sou feliz, eu é que sou feliz", repetia, sem se cansar.








segunda-feira, 22 de outubro de 2018

#Zoom II

Encontrámos a conhecida jovem fotógrafa Graça Zauzume mesmo à saída da sua exposição, que decorre na Gulbenkian.
Graça, e muito graças ao zoom, é uma artista genial, tal como sua mãe, Usa Usume, figura de grande destaque  nesta área.







#Zoom

Zoom concentrou-se o necessário
para comunicar com a mãe,
que estava do outro lado do mundo,
em trabalho.

Imediatamente a seguir,
viu a sua figura, num holograma
refletido , sobre o bulício da vila,
sorrindo, indiferente.

A sua imagem sobrepunha-se
ao tempo odioso do inverno,
destacava-se pelas cores
sépia
da sua figura irreal

(Antes não era assim.
Era mais comum
deixar-se um recado sobre a mesa.
Tirava-se um a folha de
um caderno velho e inútil,
procurava-se uma caneta perdida
no tampo das secretárias
dos quartos das crianças,
ou dentro de uma gaveta,
As mensagens serviam para orientar,
o almoço está no forno,
o dinheiro está acolá),

Entrou na bolha gelatinosa e redonda,
permeável a pensamentos humanos
e infantis,
só  para a abraçar.
Como num filme antigo,
ou num sonho  etéreo.

Sentiu a sua mão no cabelo desalinhado,
o ligeiro, movimento dos dedos,
as batidas do coração coladas
ao seu próprio corpo
ritmadas e fortes.
pum, pum,
pum, pum.



.











sábado, 20 de outubro de 2018

#Xarroco

"Imagina", contava-me ele com um ar indignado, "que queria  que eu acreditasse que a sogra se tinha tansformado num xarroco.
E eu perguntava-lhe se , com o passar dos anos, tinha ficado assim tão horrível, ou teria a pele demasiado escamada, o que lhe conferia aspeto de peixe, mas ele insistia, _não está com ar nenhum de peixe, transformou-se mesmo num_."
Enquanto falava comigo, fumava, nervosamente, cigarro atrás de cigarro, de tal maneira que já havia uma nuvem sobre  a esplanada, e chovia uma cinza miúda acompanhada de um ou outro cinzeiro e maços de tabaco vazios e amachucados.
"E tu não o chamaste à razão? Não lhe disseste que isso é impossível? Que, por muito que as sogras sejam chatas, não se transformam em animais?
O empregado chegou-se à beira da nossa mesa. Eu pedi uma cerveja e um pratinho de Wiskas para gatos esterilizados, para petiscar. Ele ordenou um osso para roer, por causa dos dentes, e uma tijela com água mineral.
"Disse-me que, quando chega a casa, ela está esparramada no chão, com uma grande boca de onde saem inúmeros disparates, e aparenta ter falta de ar, e,  com alguma dificuldade, pede-lhe para a ajudar a encher a banheira, para mergulhar.
"Isso é, de facto, um absurdo. Não deves alimentar esse disparate. Se eu estivesse no teu lugar já lhe tinha rosnado, ou mesmo mordido nas partes baixas, ou nas nádegas"
"Mas.., nas partes baixas? Porquê?"
"Ora, francamente! Achas que lhe chegas aos ombros, ou à cabeça, com a tua estatura? Só se o apanhares sentado"
"Não. Ele é muito esperto. Nunca se senta, com medo."
"Estás a abanar a cauda porquê? Ah, chegou a Lassie..."



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Wenders

Primeiro, Wenders não existe.
Depois, lentamente, e com a máxima concentração, podemos começar a imaginar um homem.
Muito antes de compôr o seu aspeto físico é necessário construir para ele uma certa personalidade, pois que, como sabemos, a personalidade de uma pessoa, e também a sua educação, e o dinheiro a que têm acesso, ele e a sua família mais chegada, determinam a forma como se veste, os seus gestos, o seu discurso, a sua postura no mundo.
Wenders pode ter olhos de poeta, pode ser um grande empresário, um político corrupto, um transsexual, um toxicodependente com o corpo e a mente arruinados e os braços em sangue com o sarcoma de Kaposi a subir por eles acima, acusador e mortal.
Wenders pode viver na rua, pode ter piolhos, e/ou sarna, e dormir por baixo da montra de uma loja de alta costura, onde só entra só um ou outro Wenders influente, que manda retirar dali o primeiro porque o incomoda ao passar.
Pode ser um velho imprestável, uma carga de problemas para todos enquanto morre e não morre...
E seria então  chegado o momento de dar corpo a Wenders, mas não sei por que fenómeno deconhecido e irreal, e precisamente hoje, nesta sexta feira de Outono, logo de manhã, Wenders nem o seu nome tem,  nem a minha, nem a sua  voz.






quinta-feira, 18 de outubro de 2018

flgbkn

a maré alta
entre as rochas
formou
pequenos lagos de
água salgada,
que brilham
e tudo cintila,
cor de laranja
mesmo as vagas
ou as sombras
projetadas
na  areia molhada
e vaga
e as águas dolentes





quarta-feira, 17 de outubro de 2018

#Rita Hayworth

Vão vivendo mais um pouco,
até as pessoas deixarem de partilhar as suas fotografias,
só enquanto formos lembrando.

Trabalhava as ditas cujas com amor,
todas elas, sem exceção, as notas, as vozes, as melodias,
e as próprias palavras.

Lá estava o cão, recortado ao luar,
naquela hora solitária
que escolhia  para as recordações.
Até ao fim.

Os braços estendidos, idolatrando a sua pessoa,
os aplausos,
quando se tratava de aplaudir,
o público, incansável, não deixava de bater palmas.

O tempo, um tempo artístico, todos os poetas,
os deuses,
se queixam de um tempo finito e inútil,
e eu, para os animar, canto-lhes as minhas canções.

Puxava a cortina, até ao sol já não incidir sobre o ecrâ.

Ao fundo,
já depois dos livros,
depois da parede,
depois da janela do quarto,
depois do ocaso,
depois do acaso de nos termos encontrado,
no universo flutuante dos seres.

Apenas via bolhas de ar a sair da sua boca.
Elevavam-se dentro de água,
desejando chegar à superfície
para se misturarem, rapidamente,
com o ar morno da manhã.

Era um borbulhar  indecifrável,
e líquido, e então foi por isso...,

tantos "entãos" que uso
para não dizer nada,
e então, como dizia,
a lua e o cão, a lua e o cão,
a lua e o cão...

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Ass #Unção


Dizem que uma ocasião estava a Ass Unção a limpar o adro da igreja, quando  uma figura de pedra lhe chamou a atenção por se mover, lá no canto do pátio onde estava instalada, parecendo deveras incomodada.
"Psst...," ouviu com nitidez.
"O queres tu , sua velhaca,?" perguntou, revelando alguma confiança com a dita. Mas, como era hábito, ela não lhe respondeu.
Aquilo irritava sempre  Ass Unção.  Primeiro falava-lhe, e depois ingnorava-a completamente, como se quisesse fingir que  não tinha acontecido, que nunca a tinha abordado, para depois ninguém acreditar na sua história.
Já  um pouco amedrotada com a situação, de cada vez que ia lá fora varrer sentia a presença dela como se estivesse viva, a senhora lembrou-se de arranjar uma  manta  velha para a cobrir, e dessa forma  deixar de a ver. Quem sabe, pudesse ser solução para o problema.
O anjo, por sua vez, sentiu-se completamente atabafado e cheio de calor, e, passada nem meia hora,  Ass Unção viu-se abrigada a ir ver o que se passava com ele. O anjo ardia em febre. A pedra, que antes era branca, estava agora escarlate.
Então, num ritual comprovadamente eficaz, que lhe tinha ensinado sua avó ancestral, ainda dos tempos em que andava tudo nú, sobretudo as pessoas mais pobres, ungiu a boca, a bunda e a barriguita  do anjo com um unguento gorduroso, esperando baixar-lhe a temperatura do corpo, unto esse que lhe sobrou de barrar a forma do pão de ló,
Mas foi em vão.
Dizem  que a  estátua sucumbiu aos seus pés,














segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Sem Título

Quem entrasse pelas traseiras veria o lado mais agradável da casa. Era em frente à  cozinha que pendiam, presos nos barrotes que suportavam o peso do alpendre, vasos de plantas caídas com as flores abertas e coloridas, subindo connosco os degraus até à porta.
O gato gostava de dormir no tapete. Parecia fazer de propósito, quanto mais movimento houvesse, mais ele  se espalmava no meio do caminho, a fazer de empecilho para toda a gente.
Sentava-me a um canto, no primeiro degrau, punha os pés no segundo, ou no terceiro conforme queria estar sentada. com as pernas encolhidas, ou esticadas para ver  os pés a sairem das chinelas de borracha, presas aos dedos nús de uma forma bastante simples.

O calcanhar já saía um pouco da sola, tinha que pedir à  mãe para lhe comprar outras.
O limoeiro e a doce lima, provocavam, juntos, uma boa sombra, onde o cão aproveitava para dormir a sesta, nos dias em que o sol embatia com mais força.

Os homens levam os milhares de folhas castanhas, que caíram das árvores, ajudadas pelo vento que se tem feito sentir.
Sopram-nas com o ar que sai de um tubo, agarrado com firmeza pelas mãos duras, e elas voam para a estrada e são apanhadas por um veículo aspirador que circula imediatamente atrás.
Recolhem a #talha dourada para que não haja inundações.

Os homens recolherão os milhares de folhas, que cairão.






sábado, 13 de outubro de 2018

Uma #Romã na Tempestade

Devido ao bom tempo
e às condições atmosféricas
favoráveis,
anteriores,
viveram como  aves
durante muito tempo

Mantinham-se, pairando.

Mas uma ocasião,
o vento  forte
soprou sobre um grupo
de palavras, daquelas,
mais distraídas,
que ali estavam à conversa.

Nem se aperceberam
da tempestade a aproximar-se.

Foi demasiado rápido,
e acabou por levar
o que conseguiu arrancar
do amontoado.

Nomeadamente as coisas
soltas.

Algumas amparavam-se,
entre si,
esticavam os  braços
o mais que conseguiam,
entrelaçavam-se
umas nas outras.

Até se abraçavam,
para fazer frente à ventania,
mas acabava sempre
por fugir qualquer coisa.

Voava tudo
o que estivesse solto,
os barcos batiam nas rochas,
os destroços vogavam
nas ondas.

Voavam os carapuços
dos sobretudos,
os aneís dos dedos,
e a mão dormente que
segurava o guarda chuva.






quinta-feira, 11 de outubro de 2018

#Praxe, ou Ritual

"Separou-se do corpo,"
era só o que pensava desde cedo,
evitando olhar o espelho
para  não deparar com
o seu sósia,  a rebuscar
noutra coisa qualquer.

Puxava utilidades dos cantos da casa,
e punha-se a remexer
nelas.

Mas a ideia movimentava-se
em pequenas espirais, na atmosfera,
como se movimentam as folhas secas,
rodopiando as cores

"Separou-se do corpo".
diriam os anjos, talvez,

mas premente era agora,
em que urgia
separar o corpo do joio,
o trigo das planícies,
os salgueiros das margens
do rio, um dia viriam
os homens e as máquinas,
e arrancá-los-iam pelas raízes.

Felizmente é cedo.

Ainda hoje me virão entregar
mais uma remessa de palavras,
que gastarei como quiser.
Lá para as dezoito horas.

Tenho a noite toda,
e o dia de amanhã.

"Separou-se do corpo"



quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Meu Querido Boris Vian

As três irmãs viviam numa casa, ao cimo da rua, suspensa no ar.
Naquela tarde desceram  juntas, era raro verem-se juntas a descer a rua, habitualmente descia uma de cada vez e encontravam-se em frente à loja de corações que fazia esquina com a grande avenida por onde passavam os comboios sem carris, os autocarros sem rodas e as motoretas com asas de morcego, muito em moda naquela época de crise financeira, por não necessitarem de grande quantidade de combustivel.  Duas ou três moscas por dia era suficiente para percorrerem uma enorme quantidade de quilómetros.
Birra, #Ópio e Aguardente, eram muito educadas. Cumprimentavam a vizinhança sempre com um sorriso nos lábios, Ópio não, porque não tinha lábios. No seu lugar podia ver-se uma chave de parafusos que sempre tinha o cuidado de pintar com um baton muito encarnado para ficar mais bonita.
Mas, dizia, sendo filhas da classe média alta, estavam, desde pequenas habituadas a uma razoável educação, e então, quando passavam por alguém conhecido, cumprimentavam sempre. Birra dava um salto mortal à retaguarda, Ópio atirava o que levasse na mão para o alto, normalmente a mochila que voltava a apanhar e a colocar nas costas, e Aguardente elevava o corpo um metro ou dois do passeio e, quando aterrava, fazia uma grande vénia, tocando com a testa no chão.
O sr. Cabranaço estranhou terem passado por ele sem quase o verem, como se tivessem todas o pensamento ocupado com alguma coisa preocupante.
Ficou a vê-las seguirem o seu caminho, com passos decididos, muito embora dessem dois para a frente e um para trás, numa coreografia a que ele não estava habituado.
Viu-as entrar na loja dos corações, e de imediato, saírem a correr com um fígado de porco ainda a pingar sumo de laranja, e no segundo seguinte, o dono da loja, o sr. Palermoíde, assomou à porta com uma faca na mão.
Meia hora depois, a polícia, fardada a rigor para ocasiões de assalto, fatos de mergulhador aos quais não faltavam as barbatanas, apareceram no local, mas já Birra, Aguardente e Ópio se encontravam muito longe, sentadas no telhado da igreja, a tirar das unhas os restos de sangue.


terça-feira, 9 de outubro de 2018

No País das Gaivotas

Enfiavam-se no início da onda,
e saíam do outro lado,
quando ela esmorecia na outra ponta,
eretos e corajosos,
homens e mulheres a enfrentar o mar,
num desporto, rasteiro e espumoso
que invadia a praia,
dissolvia-se na areia, e morria ali.

Um grupo de gaivotas ,
reunidas a apanhar o sol da manhã.

Naquela, por exemplo, cabia tudo,
de tão grande que ela era,
e aquele mar imenso,
sei lá porque o mar imenso
sempre me encanta tanto,
que volto em passeios para o apreciar.

E é por isso que aqui estou,
simples e inofensiva
a gostar de estar em palavras,
e mesmo que mal contadas
que ao menos recordem
vagamente o seu azul arrebatador
e inexplicável.


As lamúrias dos peixes
os segredos das algas,
a #nostalgia das estrelas em noites
sem uma nesga de luar.

Pois se o tenho à minha frente
sempre que me apeteça
em apenas uns quilómetros,
e de todas as formas.

Em quase todo o lado o mar está perto,
e, claro, elas apoderam-se das cidades,
quando têm vontade,
ou quando precisam de abrigo,
porque ele se revoltou e agigantou as ondas,
de forma a causarem medo
por não se estar em terra firme.

As rochas erguem-se altivas e  perigosas,
na maré alta,
naquele canto aquoso de murmúrios insondáveis
da água a passar por entre as pedras,
enquanto a areia brilha ao sol.

Cada grão pode ser um polígno de mil lados,
que podem refletir a  luz,
e a refleção incidir no céu majestoso,
que por sua vez reflete na superfície do oceano,
e esse vaivem de moléculas na atmosfera
torna a claridade  quase insuportável.











segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Sempre, ou #Maniqueismo, ou o Bem, ou o Mal.

Sempre que me sento aqui, discutindo assuntos contigo, reparo que pouco envelheces.

Conforme o crescimento das folhas, assim muda o teu perfil, de gigante aletátorio nascido dos plátanos.

Uma invenção, é verdade, mas, o que é facto, é que, mesmo quando não há folhas, porque o inverno já as levou todas para o chão, a tua silhueta não desaparece, continua definida numa renda de madeira viva.

Reparo que perdeste o queixo ponteagudo, de um ano para o outro, e ganhaste uma expressão  de criança inocente, de contornos  arredondados, um capricho da mãe  natureza, e com o qual nada tenho  a ver, nem me parece que corresponda verdadeiramente à tua personalidade.

Os buracos das órbitas, esses, mantêm-se intactos, desde sempre, como  parentises necessários para uma explicação aparte que preciso dar a alguém, e, como poderias perfeitamente ser um pássaro, alinham-se para que eu os veja, daqui,  sobrepostos como se fossem um só.

 Felizmente que assim é, porque, quando desaparecer esse espaço vazio, ou esses espaços vazios, convenhamos, é porque um de nós, muito provavelmente, já deixou  de existir.
É o lugar cativo dos olhos. Oco, para haver abertura.

Fico tão feliz por te conhecer, já tantos anos passados, de amizade, em que me acompanhaste no tempo, aquietando-o.

Temos oportunidade de conversar sempre que queremos, um previlégio, acredita, e também serve para evitar a confusão. Não gosto de confusões na cabeça.
E assim tenho-te a ti,

Estão recriados os moínhos de vento.daquele outro sonhador, quero lá saber, é uma mentira excecional que resolveu ganhar vida, e disso eu não me esqueço, nunca. Mas atenção, porque estes são mais verdadeiros, mais reais.

 Estão, efetivamente ali, recortados na paisagem. disponíveis para quem os queira..., mas parece não haver ninguém...

O mau tempo vai levar tudo. Aliviar-te-á desse verde brutal que te encurva as costas, por causa do peso das folhas de papel, sempre vou  roubando uma ou outra, como  um vício.

Mas falaremos na mesma, tu não és como eu. Tu não tens frio, ou qualquer outro desconforto, só sede, eventualmente, nas estações mais quentes, talvez...

Portanto, ainda que debaixo da chuva, ou de outros temporais gelados, serás meu amigo, e não é este vidro que nos separa, um simples vidro, frágil, que não me fará recordar-te para sempre e estou certa que farás o mesmo comigo.


São troncos em desordem, impossíveis de aproveitar como linhas paralelas para escrever poemas.
E são atirados para o céu, como braços.











domingo, 7 de outubro de 2018

Versos para uma #lápide impensável



Só imagino  o pânico dos animais daquelas árvores, os buracos das toupeiras, os pássaros residentes
a dormirem nos abrigos, quando as chamas, rápidas,...os coelhos, os veados...

Só imagino tudo a arder, a começar lá por cima, pelo topo.

Quem já lá esteve, em dias como esse, sabe que o vento é quase tão poderoso como o peso
do nosso insignificante corpo, e nos quer derrubar pela falésia abaixo, para as profundezas do nevoeiro insondável.

Por um pouco, não é mais forte do que nós.

Só imagino as chamas alimentadas precisamente por ele, descendo a encosta e varrendo tudo.

Abeirava-me da janela e via, lá ao fundo, a bola de fogo, tremeluzente.

Só imagino a estrada sinuosa e verdejante do caminho até lá.

Só imagino também isso a arder e lembro-me, outra vez, dos pássaros em debandada e das outras criaturas pequenas que vão morrer.

Depois imagino um dia limpo, para ver o infinito na vastidão de mar que é possivel ver de lá de cima.
Dali do meu posto, naquela posição de olhar em volta, com os passadiços a riscar a mata infinita,

E nós, abrigados na capela dos monges solitários e antigos, na vida que pulsa, caminhando sobre a terra, debaixo das pedras.

Só imagino tudo a arder.















terça-feira, 2 de outubro de 2018

#Kit de Outono

A ressonância provocada pelo camião a passar na estrada,
o cão que ladra, o berbequim num jardim indefinido,
a espalhar-se, elétrico e desagradável,
sobre  esse casario que te circunda,
deixam-te em completa inércia.

Quando  todos se calarem demais,
alcanças um livro de poemas de pó,
dispersos e voláteis, sempre desarrumados,
mexem-se  durante a noite, ganham vida enquanto dormes,
sobrepondo-se, às vezes, uns aos outros,
na mesma página, para deixar outras em branco.

 A aldeia, que  também era branca
quase caía sobre a falésia, num golpe de televisão,
que viste com um olhar furtivo lançado para o mar magnífico,
contido no pequeno ecran.

Se espreitares pela janela, verás as folhas amarelas a caírem,
devagar, só uma ou outra,
leves, leves, leves, leves,
como tão bem exprimem os versos que caíram do livro
quando o abriste.

As palavras, indeléveis estavam no olhar do homem
ao reunir os seus filhos em volta de uma mesa
para que todos juntos combinassem corretamente a sua morte.

Com muitos sorrisos, também brancos.

Mas dinheiro vivo, era o sangue dos corações,
a valerem qualquer coisa enquanto existem,
a latejarem no tampo.
Não era a contemplação das árvores que se despem lentamente
inevitáveis, ano após ano, nos mesmos gestos de sempre.






segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Uma #Gaveta na Estação



Enquanto esperava, encaminhei
o olhar até  ao fundo do túnel,
onde morriam de velhice
as longas linhas de luz.

Pareceram-me, aos olhos
dos meus olhos fracos,
de míope,
teclas de um instrumento
que ainda não foi inventado,
ou então...,
um rio de margens difusas,
e brilhantes.

Levantei os braços e abri-os
o mais que pude,
para agradecer, verdadeiramente
à plateia imaginária,
que se acumulava,
de todas as cores,
muito embora não estivesse
mais ninguém,
àquela hora, na estação.


Fiz, não sei porquê,
uma vénia exagerada,
para cumprimentar os bancos
de madeira, vazios,
com as traves desalinhadas,
e  a água da chuva
tão clara como
a manhã transparente
que acabara de nascer.

Pareceu-me sentir,
no momento em que toquei,
ao de leve, o chão,
com as pontas dos dedos,
numa vénia exagerada,
de quem está com muito sono,
os pássaros a entrarem
pelas aberturas do teto,
altíssimo,
e a pousarem nas vigas de ferro,
nos postes, e nos fios elétricos
para ouvirem,
como eu, os ligeiros ruídos
do silêncio extraordinário,
que transfigurava tudo.

Talvez tivessem entrado
em bando
para atualizarem
o  seu
velho ofício
de maravilhar as pessoas.

Estavam concentradas, e felizes,
as aves, não sei porquê,
viam-se a rodar
as contas dos colares,
com as pontas das asas
em sinal de aprovação.