terça-feira, 26 de outubro de 2021

O Atraso

Casas ancestrais por onde passei em tempos.
O chão castanho e as paredes terrosas, confundiam-se com a madeira, as janelas ofereciam somente a luz que o verde cerrado das trepadeiras por tratar deixava caminhar pelo pó. Estas, livres e fortes, comiam as pedras por dentro e por fora, aproveitando todas as frestas, criavam raízes de força hercúlea debaixo de tudo.
Os pássaros, nos telhados, calcavam as telhas, que gemiam a cada pisar das suas patas.
Os gatos, incorpóreos, nunca se deixavam perceber, apenas se sentiam, como figura existente na noite.
Nem me lembro do motivo exato, mas sei que não era possível atribuir ao vento nenhum murmúrio, nenhuma vibração.
Todas as excadas tinham escuridão nos seus fins. Os últimos degraus desapareciam na sombra.
Um cão visitava o quintal. Andava devagar, mas os seus movimentos desengonçados batiam nas canas do feijoal.
Os mochos pousavam nos ramos de dentro e rebolavam os olhos redondos por entre as folhas, e depois piavam não sei de onde os seus gritos devastadores, não  sei de que local.
O céu era pavoroso, sempre dourado de estrelas e tão infinito quanto podia ser, mas tão negro que me engolia na sua escuridão.
A água caía em fio na fonte. Havia momentos em que alguém  se debruçava no silêncio  e lhe cortava o caudal, e essa descontinuidade podia ser por mim imaginada, ou não.






domingo, 17 de outubro de 2021

Um dia, já sem pernas, 
sem braços, sem nada, 
o corpo de um corpo 
desapareceu, finalmente.
Reduziu-o o tempo, 
primeiro para o tamanho
de uma fotografia, 
e depois para o de uma 
antiga conta de colar, 
presa num rodapé, 
até que se transformou
em moléculas  
de saudoso aroma
ou, quem sabe, no sabor 
esbatido de um biscoito
comido ocasionalmente.
Mais tarde, quando o 
futuro se aproximou,
e o passado correu numa 
viagem sem fim nem forma, 
as flores do cabelo
e os aneís dos dedos
caíram-lhe, de repente.
E então, numa paisagem de 
qualquer que seja o mar adentro,
num azul de pintor azul
de uma massa de água agitada,
viu-se submerso
no belo quadro de uma parede.



domingo, 3 de outubro de 2021

Era uma vez uma bruxa tão branca, tão branca, que lhe chamavam a Bruxa de Neve.
Por ser branca e vestir de branco, passava despercebida nas zonas mais a norte do condado, onde no inverno nevava intensamente.
Por esse motivo, sobretudo, a Bruxa de Neve rondava as pequenas aldeias metidas nos montes, ou encaixadas em vales profundos, quando o inverno rigoroso se fazia sentir, sendo que nas outras estações do ano se refugiava na sua cabana, saindo apenas para se esconder nalgum lençol branco que por acaso estivesse a branquear ao sol, estendido numa corda em qualquer quintal.
A Bruxa de Neve tinha muito orgulho na sua cor, imaginando ser única no mundo, contando com as mulheres de todas as idades, credos e nações, porque ser único, todo branco, bonito e mau é, de facto, algo de muito especial.
Um dia, estando escondida nos reflexos da água de um grande tanque de lavar roupa, viu aproximarem-se duas mulheres de meia idade. Uma delas era uma criatura perfeitamente normal, de tez queimada do sol e trajes floridos, mas a outra tinha uma pele tão clara que podia confundir-se com o interior de um coco, ou com uma taça de claras batidas em castelo.
A Bruxa de Neve sentiu-se muito revoltada, sendo incapaz de aceitar o destino que agora a obrigava a ser a segunda escolha para os deuses, fossem lá quem fossem os deuses das bruxas daqueles lugares.
Preparou, então, um #engodo à pobre mulher, porque é disso, verdadeiramente, que trata esta história, de engodos suscetíveis de virar texto, pousando sobre uma pedra uma irresistível maçã, munida de poderes mágicos para ser comida apenas pela sua rival. 
Apesar de saberem da existência da Bruxa de Neve, as duas mulheres caminhavam cantando e rindo, esquecidas dos cuidados a ter, e assim, quando passaram pelo fruto, Aldemira declarou estar com uma fome terrível, não dando nem um pedaço à companheira e engolindo de um trago aquele presente amaldiçoado.
O seu corpo começou imediatamente a contorcer-se e, durante uns momentos, faíscas coloridas iluminaram um largo perímetro à sua volta.
Quando se restabeleceu, Aldemira estava transformada numa pipa de vinho tinto e a Bruxa de Neve ria à gargalhada, tão alto que pude ouvi-la aqui em casa.

sábado, 2 de outubro de 2021

Figurava na estante, à espera de ser falado entre amigos, com os risos em volta, os copos a meio e os garfos nas mãos persistindo no ar.
Ou era mencionado numa conversa ocasional, num autocarro, espreitando do colo de alguém, de páginas abertas, sentado no banco, passando através dos olhos que se olham, ora de  frente, ora mirando o seu ponto comum através das janelas em movimento.
Outras vezes, numa conversa irreal, num corredor comprido e iluminado, sem mais ninguém por perto, povoando o mundo das inexistências noturnas.
Outras vezes, ficava retido para sempre nos meandros de um qualquer  pensamento.