quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

#Oxigénio

Tudo começou pelo rumor das rosas.
Era um murmúrio, apenas, ninguém acreditaria em mim.
Mais tarde, era já  uma mulher, ouvi a espuma do mar contar-me histórias, num dia de céu  tão cinzento que nem percebi a previsibilidade do que ia acontecer.
Não foi por causa disso, não teve esse efeito, não. Já antes preenchia folhas aleatoriamente,  quaisquer umas, podiam ser guardanapos onde desenhava centopeias, ou aranhas, ou olhos de boneca, mal feitos, como fazem as crianças que não  têm nada para fazer.
Os choupos, tinha eu talvez quatro anos, alinhavam-se no choupal, tão simetricamente belos e inteligentes, que ficava siderada a olhar para eles.
Escrevi tudo isso num canto de jornal.
Inspirava o ar que vinha dos montes, pleno de #oxigénio, à procura de fantasmas atrás dos rochedos, tendo como certo que eles existiam, e ainda hoje os reconheço como meus.


domingo, 27 de dezembro de 2020

Uma #Lebre à Espera da Chuva

 Hoje, quase choveu.

Contudo,

o céu abriu de repente,

o vento impôs-se 

aos outros elementos

e a roupa nas cordas

quase voô pelo ar.

Quando ele veio,

moldou as palavras juntas

para que ficassem 

coladas umas às outras

para sempre.

Eram vários os 

argumentos válidos

para olharmos a paisagem

extasiada em nós.

Era quase um dia qualquer

de janelas inúteis, sem 

a queda de gotas concêntricas

iguais a perguntas

no lago dos peixes.




sábado, 26 de dezembro de 2020

O #Oxigénio é Transportado Pelo Vento


 Nesse dia,  soprara tão forte 

que levara das varandas alguns vasos. 

As trepadeiras, 

que se entrelaçavam em estacas 

mal seguras na terra, 

formavam mantos propícios 

ao enfolar do vento 

e esses retalhos floridos 

procediam tanto a pequenos vôos, 

curtos, 

como a vôos muito longos, 

e uns caíam logo nos primeiros telhados, 

ou nos passeios, 

ou ficavam presos nos galhos 

mais intrincados do inverno, 

outros desapareciam do nosso alcance 

pelo azul do céu.





quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 _Que lindo Halo que tens hoje! É novo?_

_Gostas? Mandei vir da terra no último que subiu. São mais baratos e muito bons. Pede à Nossa Senhora, ou ao Pai Natal, que eles trazem-te um. Olha, esse anda sempre em circulação, trabalha que é uma coisa estúpida. Já não posso ver o velhote. Qualquer dia dá-lhe uma coisa._


 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

o Natal

Os meninos estavam todos sentados no chão da sala. 

Rafaela, no meio deles, cantava a canção ensaiada mil vezes, maquinalmente, enquanto pensava na noite da consoada. 

Os primos iriam lá estar e brincariam todos no seu quarto, que era o maior, ansiosos por que passasse o tempo e fossem horas de abrir as prendas. Ainda teriam de esperar uma eternidade até ao jantar, os adultos conversariam fazendo tempo para a refeição, alguns atarefavam-se na cozinha, outros juntavam-se na sala da árvore, que piscava as suas luzes intermitentes, e segurava nos ramos pequenos enfeites de chocolate, embrulhados em pratas. 

As bolas vermelhas luziam de vez em quando, conforme algum reflexo de luz lhes tocava a superfície. Debaixo da árvore as prendas amontoavam-se, mais ou menos desorganizadas, apenas seguindo a lógica dos diferentes volumes e tamanhos. 

O jantar foi extenso, quase interminável, e Rafaela batia os pés na cadeira contando de um a dez muitas vezes, à espera do seu fim. Olhou, pela milionésima vez, para os presentes coloridos.

Das sete fadas intactas do papel que revestia um dos embrulhos, porque a tesoura tinha desmembrado algumas, as que encontrou no caminho percorrido pelas suas lâminas implacáveis, uma delas aventurou-se a existir, apesar dos avisos insistentes das outras em relação ao perigo, e separou-se das imagens onde estava estampada ganhando corpo, volume e vida. Deu um grande salto e sentou-se num dos galhos do pinheiro, entre uma estrela dourada e uma luzinha intermitente, ora azul, ora vermelha, ora apagada.

Pela #abertura que ficou no papel, Rafaela percebeu que o que estava lá debaixo era aquela boneca por que ansiava desde sempre e com a qual sonhava acordada, de olhos fechados, todas as noites antes de adormecer.

Nem relevou. O que vale uma boneca de plástico, se a magia pode acontecer?




sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O OURIVES

 Ao ourives bastavam-lhe

uns momentos de inverno

para cinzelar os galhos

das videiras contra o céu.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020


 Em inconscientes passos verticais, subíamos a encosta rochosa, 

colocávamos os pés e as mãos nas saliências da pedra, até ao topo dos topos.

Até lá, a esse cume de vistas desafogadas, de céu aberto para o resto do mundo, 

víamos  árvores nuas entristecerem o caminho,  víamos letras onde elas não existiam, 

sílabas que se juntavam, palavras subreptícias e desconexas no meio das altas ervas, 

 frases contidas nas águas do rio indomável, que preenchia de sons líquidos a atmosfera fria.

Depois, nem sei quantos seríamos por essa altura, 

numa alegoria absolutamente desnecessária e disparatada, 

inventávamos em torno do bucólico cenário, um enorme acontecimento, que cantávamos juntos preenchendo os recantos da floresta com as nossas vozes.

Névoas de nuvem cobriam, com efeito,  vários pontos da paisagem. 

Espalhavam-se pela serra como a espuma dos mares a norte, ou em esferas de algodão doce, 

que  entidades colossais e secretas deixavam cair do céu,

após sumptuosos banquetes 

 só permitidos e difundidos no  universo dos deuses

Ensombravam, tapando aleatoriamente o chão com as suas sombras circulares.

Impressionantemente belo, 

e nós, com tamanha dificuldade em retratá-lo com justiça, 

com a justiça pobre dos nossos olhos bem abertos.

Após totalmente aniquilado, 

o outono desaparecerá das colinas, para dar lugar ao inverno, 

e acabar-se-ão algumas cores

Nessa altura, naturalmente nevará, 

já as palavras escorregarão pela montanha, 

munidas de equipamento alegre e confortável 

e de uma folha  suficientemente grande

onde possam ser transportadas, 

para que desçam vertiginosamente a encosta sem se magoarem,

nem que para isso sejam necessárias portas e janelas,

canetas e papel vazio, 

paredes de cimento protetoras. Nalgum lugar muito distante.. .

O vento assustador gritava aos nossos ouvidos coisas infinitas, 

silvava palavras eternas, 

essas palavras que também tinhamos o cuidado de  soltar 

quando se enrodilhavam  na vista desfogada,

ou recolhê-las, quando ficavam soltas por aí,  por essas estradas desertas.

O vento era um aliado poderoso, nosso aliado de sempre,

mas, quando se zangava, socorria-se com violência da sua invisibilidade 

e quase nos fazia cair. 

Longe do mar em chamas, longe do metal gelado das tempestades, 

procurávamos  nos pinheiros, a prestimosa cura,  

a redenção no granito consistente, na policromia dos seus cristais, 

cristais esses que nos obrigavam a franzir os olhos para melhor os ver.

O chão, repleto de agulhas, segmentos de reta sobrepostos em forma de língua, 

tentavam falar, 

mas, para isso, era necessário antes silenciar os mamutes camuflados atrás da densidade dos montes

teimando em assombrar o mais medroso de todos os caminhantes, 

a criança pequena dos reflexos de solidão, brincando com 

as raras entradas de sol insinuante 

debaixo dos esquilos e das manchas moribundas.

Para nós, era claro como água, límpido, transparente, 

que havia versos escondidos nas nascentes, palavras sequiosas de existir, 

ligadas tão poeticamente umas às outras, invencíveis e imortais, 

espreitando por trás das giestas em flor, turvas de nevoeiro.

E  eram os nossos nomes que vinham nos silvos do vento,  

nos murmúrios abstratos da água e era o que gritavam, os gritos  adejantes das aves.














segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Casas

 Casas. 

Monstros solitários espalhados pela serra, espreitanto, 

envelhecidas pela floresta imparável, 

essa que cresce em sintonia com as décadas e com as coisas abandonadas. 

Um dia,

resolvem ganhar vida através das imperfeições que o tempo lhes concedeu. 

Um buraco no telhado, a intensidade da chuva de inverno batendo com a força de um Hércules, 

nos telhados, 

nas portadas de madeira, 

que cedem pelas dobradiças e quase tombam no chão. 

Entra uma brisa em círculos imutáveis pelos fios das aranhas

encontra-se por todo o lado. 

acumula-se no orvalho impenetrável da manhã, 

deixa-se bordar por entre os galhos indomáveis,

onde brilham as suas gotas no desconforto das folhas desconfortáveis,

até  o céu se tornar de um cálido azul impossível.

Casas

que suportam, ainda, milhões de passos fantasmagóricos, 

comidas cheirosas em panelas de ferro, 

vassouras que varrem o chão novo e encerado,

as paredes negras de cinza negra, 

as arcas de sotão nos cantos, 

e as nascentes límpidas e frescas dos caminhos, 

rios de salgueiros perseguindo um troço de riacho, 

como uma roupa envolvente e protetora.

As pedras, blocos de granito mudos  há muito, 

pois não sentem nenhuma vida dentro delas, 

não as há, as crianças cristalinas,

nem os resmungos do velho impaciente para as aquecer,

 nem se recordam, tão pouco, de quem ali os colocou, uns sobre os outros 

até ao sotão  das patas dos pássaros a crepitar nos silêncios da telha seca.

Casas.

 As auras dos felizes habitantes foram

as promessas de uma luz sem fim e de um calor proveniente dos cabelos de uma criança,

enfeitados com violetas bravas presas à bandolete.

Até os dois  pinheiros perderam  a pose toda,

invernos de vento cíclico  espalhando por todo o lado as gotas de água acumuladas nas rendas do seu vestidos verdes,

atingindo as gabardinas de quem passa.

Admiravam as últimas flores, aquelas que o inverno se ia esquececendo de levar.

Casas

permeáveis, 

sensíveis às estações do ano, aos soís abrasadores,

aos temporais e aos jardins arrancados das memórias, intactos,

como se o tempo não  existisse assim.







domingo, 22 de novembro de 2020

 _Sabes o que é, Celeste, é que as pessoas são curtas de vista e franzem os olhos para nos ver, e às vezes até param um bocadinho para se concentrarem melhor. Quanto mais olham, mais curiosas ficam. Esta gente é  muito curiosa, realmente, Celeste. Não têm que fazer, se tivessem não ficavam tão entretidas connosco. Mas deixa lá. Olha ali._

Isilda apoiou-se numa das canadianas e levantou a outra para apontar na direção que pretendia.

_Aquilo não são #demagogias? Olha que são... Eu conheço a árvore.  A minha avó tinha uma. E se eram boas! Era a única na aldeia, ninguém mais conseguiu, por causa da geada. Queimavam todas. Mas aquela estava ali num canto, protegida, e ia-se safando. Agente sentávamo-nos lá debaixo e era com cada barrigada, que nem te conto. Frescas, sumarentas! Cruzes! Que maravilha!

Vamos lá perto, para eu ver melhor.  Anda daí, olha, pois são. Prova lá. Ah! Vês? Até reviras o pescoço para trás. Ó Celeste, calma. Espera lá. Olha que te magoas. O pino ainda podes fazer, mas um mortal à retaguarda, já não tens idade. Pára lá, por favor. Levas com a canadiana! Se isso te acalmar, não hesito Não comas mais! Pareces  louca. Se calhar é alguma  alergia. Lá estão eles a olhar. Não percebo. Coscuvilheiros, pá... É lá, meninos, estão a ver o quê? Ajudem-me a agarrar a minha amiga. Ó Celestino, também aí estás? Ajuda-me aqui a segurar a tua avó. Não? Ok... Eu também não quero saber, então. Olha onde ela já vai, no fundo de vila, E eu ralada. Tu é que és família. Pronto, claro, tinha que ser. Ficou presa nas silvas. Assim, acaba por sossegar. Vou para casa.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

 Sempre fora assim. Lá fora rastejavam criaturas cinzentas camufladas pelas sombras da noite e ele, sentado à secretária, olhando-me por cima dos óculos.

_Então, menina? O que foi hoje?__

_Os cavalos selvagens dormitam debaixo do salgueiro grande, os ratos atravessam o caminho de terra batida, o cão do Anselmo ladra  à passagem do fantasma da casa branca, enquanto o fantasma segue a sua vida, indiferente ao nervosismo do animal causado pela sua presença. Os pirilampos tentam, em vão iluminar as ervas,  a aldeia dormita sem grandes precalços, tudo está pousado tranquilamente na página doze, nem uma página para trás, nem uma para a frente, Só um livro é que ficou na beira da cama e a criança, ao mexer o braço, bateu-lhe com o cotovelo e ele caíu ao chão, mas nem se abriu, nem se estragou, impecável. Amanhã alguém o há-de apanhar e colocar no sítio._

Depois de acabar a explicação, senti-me um pouco nervosa. Intuía que não lhe ia agradar a incorreção do procedimento, sabia, por ocasiões idênticas, que bastava um pormenor para desiquilibrar a sua suavidade, o seu ar bondoso, a total disponibilidade que demonstrava no seu papel de guardião, 

De facto, não podia ter sido mais expressivo, nos pequenos trejeitos, no levantar quase impercetível de uma das sobrancelhas, no lábios que pareciam tornar-se  mais finos, talvez pela contração involuntária dos cantos da boca. 

Endireitou um pouco os óculos num tique que já lhe conhecia, óculos esses que, aliás, acabavam por ficar quase sempre na mesma posição, e perguntou secamente

_Porquê? Porque não trataste logo de corrigir essa situação, não desfizeste o erro?_

_Não tive tempo._ Justifiquei-me como pude,_ Ainda voei até cá, no nosso mais veloz cavalo alado, galopei até sobre as nuvens, mas não cheguei a tempo. Vai ter de ficar assim para amanhã de manhã. As minhas desculpas._

_Atentas contra as nossas vidas, deixando a possibilidade de deitarem o livro fora, ou de o estragarem de alguma forma. Viste qual era? Nem importa, isso. Se não formos nós, será pelo menos um do nossos,

_Acaso queres desaparecer do planeta? Onde estiveste? Imagino. Junto ao riacho zumbidor, conversando com os faunos, perdendo tempo, distraída, e em todo o lado tudo a poder acontecer. Tens que estar mais atenta. É só o teu papel. Está explicado na página vinte, acompanhado de umas das mais belas ilustrações que já vi. E estamos lá, embora muitas vezes a nossa existência permaneça nas folhas, ou se esconda atrás das árvores e das aguarelas do rio, e ninguém dê por nós._

_A estátua de bronze da praça da aldeia não parece descontente por acordar durante a madrugada e estar umas horas bem viva, os gatos pretos  vieram, em conjunto, dar-me os parabéns pela liberdade. Desacorrentá-los das folhas não me pareceu nada mal._ respondi, sem medos, irritada com a sua prepotência.

Levantou-se bruscamente da cadeira. O seu aspeto débil e envelhecido não faria supor movimentos tão ágeis, mas, a verdade é que no espaço de um escasso segundo estávamos frente a frente. Falou-me com a voz alterada, o meu atrevimento era imperdoável, Nada era, afinal, mais importante do que preservar a eternidade dos personagens.

_Sais agora mesmo e vais colocá-lo no sítio. Acordas alguém naquela casa, pode ser a criança, pode ser um dos pais, ou o irmão, e farás com que passem pelo livro e o apanhem do chão. Se vires uma menina de laçarote vermelho armada em curiosa, bisbilhotando todos os cantos, agarras nela e conduze-la para dentro das páginas. É lá que ela pertence. Só tens que te introduzir sorrateiramente nos sonhos de um deles. Tu sabes fazer isso. E até muito bem._

O elogio amansou-me um pouco. Anuí em sair outra vez para  rondar as criaturas adormecidas, as paredes cinzentas dos edifícios, até chegar ao quarto, apanhar o livro de alguma forma, e procurar a criança intocável e eterna que não deve abandonar a sua história.  Percebi, do que me fez entender, que o meu papel como seu braço direito, não podia falhar, ainda que para isso prescindisse da minha própria liberdade.

Esfumei-me em neblina e  percorri as ruas e os caminhos do lugar. Entrei pela janela semi aberta da cozinha, passei pelas fresta entre a porta e o chão, e provoquei um pequena corrente de ar que içou o livro nas alturas como se tivesse adquirido asas no lugar das folhas. Após um esvoaçar hesitante pousou na beira da cómoda, onde havia um retângulo vazio, e onde haveria de esperar, depois de devidamente apreciado, pelo regresso ao espaço na estante que lhe era dedicado.

_Não te esqueças, apanha a rapariga do laçarote._tinha-me gritado ainda, da porta da rua. _ Não se pode perder por aí, e logo ela, que sofre de curiosidade compulsiva. Apanha-se neste mundo, do lado de cá. E para mais com aquelas vestes impróprias, num instante dão por ela e caçam-na com uma rede de caçar fadas, que ainda é o que têm de mais eficaz._

A um canto escuro ao lado da janela, algo se moveu. Nesse movimento, um laço encarnado ficou visível, surpreendido pelo luar que entrava, opaco, pela janela. 

Os olhos inquiridores da menina encontraram, redondos, a inexistência dos meus, no meio da neblina artificial que me dava corpo.

Percebeu, sem quaisquer palavras, não eram necessárias, que alguém a iria privar da liberdade, obrigando-a a recolher à sua dimensão, e que esse alguém era eu, efémera e volátil, sem qualquer sentido ou noção de justiça, ou partilha da sua felicidade pela descoberta. A sua vida podia, afinal, não estar presa às garras de um livro.

E eu, não fui capaz de lho impôr o degredo, chamei, assobiando, o recém nascido dragão vermelho e pedi-lhe para a esconder, o tempo necessário até eu vencer o velho guardião. 


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

#  Visualizar   AtualizarUrucubaca ou Feitiçaria

 Recebeu-me com os modos que sempre lhe conheci.

 Polida, sorridente, evasiva, com um sorriso franco, não tão franco que não lhe reconhecesse uma certa invulgaridade, ou um segredo bem guardado, escondidos subtilmente naquele sorriso aberto, na voz límpida e serena, semelhante em tudo à das pessoas que nada têm a esconder. 

Tínhamos subido, eu atrás dela,  umas escadas estreitas e bonitas que davam acesso à habitação propriamente dita e que conduziam quase diretamente, apenas se atravessava em dois passos um pequeno hall iluminado artificialmente e que fazia brilhar o ambiente envernizado, a uma sala de grandes janelas que nos ofereciam a cidade inclinada deslizando até ali.

Eram tão enormes, as janelas, que me senti dentro de uma gota que tivesse levantado da terra, ou de uma folha pendente, devagar, desafiando as leis da gravidade, e pudéssemos viver dentro dela para ficarmos ali pendurados o tempo que nos aprouvesse, no meio de um sonho inquieto.

Curiosamente, e apesar de o edifício se encontrar na baixa da cidade, apenas a geometria dos telhados intercetava a paisagem que trespassava a transparência espessa do líquido das paredes, nada de portas que se vissem abrindo e fechando, nada de gente passeando, nada de árvores,  só as aves tocavam as pontas dos candeeiros nos seus passeios e  as pontas dos candeeeiros arredondavam de luz as telhas até ao topo do outro monte.

E havia uma cor violácea no céu, como nos países das noites invadidas pelos dias, esses países em que os dias engolem a escuridão deixando-a num tom indefenível.

Reparava eu que as lâmpadas elétricas ponteavam os vidros e todas as superfícies refletoras, reverberando pela encosta acima, potenciando a paisagem sonolenta pintada de ambar por todo o lado, ou em minúsculos pontos, ou com grandes pinceladas  sobre  o fundo azul e sobre as  cores do ocaso, roxo e cor de rosa,  enquanto ela me oferecia um chá, ou um café e deixava as suas pegadas silenciosas marcadas no chão impecavelmente macio.

O chá veio fumegante, duas mini piscinas de água quente e ocre em chávenas redondas dentro de um tabuleiro, aproximou-se do meu olhar pela janela, viu a minha curiosidade nas telhas refletidas no líquido da tisana, cujo aroma se insinuou pelo espaço.

O vidro transparente da água era tão fino, sem qualquer aresta, que me era impossível tirar os olhos delas, dessas cores oníricas que entravam e saíam da casa da mulher de sorriso aveludado.

Uma gaivota destacou-se da imagem por não lhe pertencer, não se misturava bem na miscelânea de tons violáceos e acinzentados, e tal como ela em dias de tempestade, ou pousada, ou andando na praia, na nossa real praia, cheia de sol, nas minhas noites escuras e amedrontadoras,em que se encostava a um beiral, ou dormitava ao sabor da ondulação do mar calmo, com as asas bem encostadas a si, os olhos fechados e as patas recolhidas, por isso se destacava, por lhe ser necessário o mar para viver feliz.

Quando falava, quando falava, a mulher dissemelhante salientava-se tal e qual como a ave, a sua voz inumana tilintava nos cristais. o chá substituía a falta de sol, a ausência da escuridão da noite mais escura, a madrugada sem sombras ponteadas e revivificadas pelos remorsos dos eternos amantes, crueís e em chamas, abraçados para lá do visível.

O céu teimava, em apoderar-se do quotidiano dos outros, a casa pingava brilho do primeiro andar daquela sala, não eram quaisquer águas furtadas, com diminutas entradas de luz, que nos propiciavam aquelas cores, 

Por ali, ela cirandava, sorrindo, como se a sua história fosse a mais importante de todas, e as suas cintilações elétricas fossem únicas, e os alaranjados fossem apenas seus, como se ninguém os tivesse verdadeiramente visto por outros lugares, 

Sensível às tonalidades invulgares da atmosfera e à acústica da sua voz, eu olhava, pasmada, para as linhas horizontais riscando as colinas e para a ausência de amarelo, recorria aos mais variados sentidos para entender a luz artificial, deixava-me encandear pelo extraordinário que brevemente  me encantou.

As flores vibrantes do seu vestido branco substituíam com exatidão as velhas flores do campo, inúteis e desaparecidas, não havia nenhuma em toda a região, podíamos comprová-lo ao rodarmos o corpo sobre nós próprios, trezentos e sessenta graus, e não encontrando uma só em todos eles.

Quando a gota de água não conseguiu suportar por mais tempo tamanhas impossibilidades, desceu, vertical e vagarosamente até ao chão.


 





 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Maquilhagem

 Eu focava os olhos nelas, naquela mancha viva e verde 

que bamboleva conforme as correntes de ar, 

via-lhes os movimentos infligidos pelo vento, 

via-lhes as caras de árvore, tristes no inverno.

e pesarosas no outono.

Via o chão repleto de folhas incómodas e multicoloridas, 

que as pessoas preferem, malogradamente, não pisar, 

não encher as sarjetas de mantos castanhos, 

que entopem as saídas de água, 

para os automóveis não avariarem nos charcos, 

para que a cidade de cimento não desapareça. 

Eu tinha as raízes iguais, por empatia com o seu silêncio, 

por simbiose com a sua seiva que parecia 

fluir-me nas veias sob a forma viscosa de sangue.

Distinguia-me da sua imponência 

 não porque não tivesse a terra presa aos pés, como elas, 

e as flores selvagens e miúdas espalhadas em meu redor, 

distinguia-me apenas quando, excecionalmente, 

dava uns passos curtos, incertos e particulares.

Revia-me na sua força, que rebenta as estradas, 

serpenteava com elas debaixo das construções 

na busca de minerais imprescindíveis para a minha subsistência.

Eu mirava-as, tornava-as meus ídolos, amava tudo quanto lhes respeitasse, 

os pássaros que as agitavam levemente, 

sentia-me tão prisioneira da sua imobilidade como elas, 

sentia igualmente a  sua impotência para fugir de uma guerra, 

de qualquer guerra pequena. 

Era tão vulnerável como um plátano adamastor, ou um velho castanheiro.

Gozava do sol, como se tivesse folhas perecíveis e galhos 

que formassem rendilhados 

indiscutivelmente belos no inverno, 

e também eu aproveitava os ocasos para me aquietar, 

para quadricular os raios de sol em milhares de joías luzidias nos dias brilhantes.

e também era eu que tinha folhas perdidas pela casa 

como o outono lá fora pertubaria as suas copas, agitando-as,

 para que as poucas palavras que ainda murmuram caíssem mortas.







 

 

#BELEZA

 Eu quero uma 

rocha

com a beleza 

do mar

em frente

para o olhar

por dentro

e esquecer-me

que existe

mais tempo,

só esse 

de contemplar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

BELEZA

 Eu quero uma rocha

com a #beleza do mar
em frente
para o olhar por dentro
e esquecer-me que
existe mais tempo
só esse de contemplar.
Elisa Costa Pinto, Fernanda Neves e 32 outras pessoas
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segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A #Ofensa

 Esta é a minha cidade das colinas, dos miradouros, das manhãs azuis.

 Mas tenho eu alguma cidade que seja verdadeiramnete minha,

algum chão que suporte o peso do meu corpo? Que me chame filha?

Serei eu pertença de algum lugar?

Haverá amanhecer que mais me adore, tanto quanto este, como eu faço com ele 

e com a árvore das flores cor de rosa, 

que admiro sem tão pouco saber o seu nome?

Esta é a minha cidade, 

onde recorto as cores do outono nas paredes amarelas das casas,

enquanto me inclino pelas ruas inclinadas,

que podem e devem anoitecer debaixo das luzes dos candeeiros,

 ou das luzes dos automóveis parados nos sinais, 

e depois outra manhã e mais outra, em que respiro o ar fresco e silencioso. 

Mas será esta cidade que me acolhe verdadeiramente minha e eu dela?

Ou será que subsisto e flutuo em partículas de leveza notável, 

sobre o rio, sobre as avenidas, sobre a terra, e não sou,

nem existo, em nenhum lugar especial?



quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Sombras de Verão

 Havia um bairro perto da praia, de gente endinheirada, com belas vivendas todas arranjadinhas e grandes jardins. 

Pelo meio delas, haviam respeitado o crescimento dos pinheiros e eram, havia muitos anos, grandes exemplares, altíssimos, que proporcionavam #sombra e frescura e tudo era paz e tranquilidade.

Muito embora não se vislumbrasse o mar, devido ao facto de o terreno ser aplanado, sentia-se que estava ali por perto, na terra arenosa dos canteiros das flores ou na brisa salgada que não raras vezes refrescava a atmosfera pela manhã, ou ao fim da tarde.

No verão, a luminosidade também antevia o que não era visível aos olhos de quem passeava procurando as sombras, a vastidão do oceano estava presente no azul excecional do céu, como se a água salgada cristalizasse o calor em átomos invisíveis e brilhantes, no orvalho da manhã, no silêncio das sestas e da temperatura morna. 




 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Levantei-me da cadeira, aborrecida com a história inacabada.   

Era claro, para mim, que Dióstenes, quando escondeu a boneca, fê-lo num local que achou ser o último onde iriam procurar. Eu, pela parte que me tocava,  tinha a forte convicção de que ele era um gigante bom, daqueles que procuram não fazer mal a ninguém mas que, por força da sua ingenuidade e do sentido evidente da justiça que a pureza lhe conferia, podia espancar até à morte, num descontrolo do seu imenso poder físico e da sua força brutal.

Não obstante ser óbvio porque escondia ele uma boneca velha e suja num canto inacessível, dada a sua condição de criança grande, não era perdoável que fizesse justiça com as suas próprias mãos, apesar de  ser claro, para ambos, ele e eu que o inventei, estar, com os seus atos,  a impedir determinado indivíduo de praticar um mal maior do que aquele de fazer desaparecer um indivíduo de pérfidas atitudes. 

Dirigi-me a uma das janelas poente da minha casa e olhei a imensidão. Incomodava-me não saber para onde se dirigiu o meu personagem depois de ter tapado o brinquedo com uns trapos que por ali tinha e sair à pressa, claudicando pelo caminho, que, à medida que os minutos e as horas iam passando, se foi tornando mais escuro e denso por força do anoitecer.

Dióstenes só escondia a boneca quando tinha medo que lha tirassem, convencido do seu valor estimativo, como se não houvesse outro valor para além desse, como se fosse para a toda a gente a única quantidade mensurável que nos faz mover, ou talvez, porque sabia da forte possibilidade de a quererem para si, ela que era tão bonita com o seu vestido de cor não identificável e alguns vestígios de azul, indicando a frescura de outros tempos, quando foi comprada por bom preço e retirada de uma montra de natal.

Na sua ausência, uma criança entrou, sorrateira pela barraca, afastando um pouco um painel  de alumínio que estava a tapar um buraco da parede.  Entrou, procurou por todo o lado e voltou a sair agilmente, com as mãos livres por serem o instrumento mais valioso para enfrentar as dificuldades e os obstáculos que lhe surgiam pela frente, mas o volume que o brinquedo ocupava era maior do que o espaço contido no bolso e então a cabeça de plástico e cabelos andrajosos, pendia juntamente com quase meio corpo, perigosamente inclinado,  declinando os cabelos emaranhados sobre as calças roçadas do rapaz.

Dióstenes tinha e tem umas mãos enormes. Esse pormenor é incontornável, tem que ser sublinhado dada sua enormidade e a sua postura deformada, o seu semblante mudo, assustado e temeroso do mundo. 

Afastei-me dos vidros, absorta no seu olhar desconfiado. Sentei-me outra vez e anotei, para não me esquecer e no fundo de muitas outras notas,  o seu olhar desconfiado. 

Abrindo um parentises no meu raciocínio, estamos sempre a ser interrompidos por meras trivialidades, como alguém que nos cumprimenta, por exemplo, ou a necessidade súbita de beber um café ou ir ao wc,


( dei por mim a pensar em como existem milhões de formas de escrever, desde a procura da utilização do maior número possível de palavras, para que o corpo da história se torne riquíssimo e percetível...)


Voltei a debruçar-me sobre a floresta que ia sendo atravessada por Dióstenes coxo e solitário. Ao fazê-lo, apercebi-me de que o nome que escolhera para ele viver não me agradava. Troquei-o. Dióstenes mudou de nome próprio e passou a chamar-se... Não sei... Por agora fica assim, já que, entre pensamentos, me reapareceu o problema da finalização.

O miúdo encontra-se agora em sua casa. Uma pobre casa rodeada de hortas mal amanhadas e um simulacro de jardim. Está sentado na beira da cama da irmã que, por sua vez, faz festas no cabelo de Jacinta, a boneca do homem sem nome, aquele gigante que vive aterrorizado com o terror que o seu próprio aspecto produz nas pessoas que se cruzam com ele. 

Dióstenes calcorreia os bosques na mais completa escuridão. Conhece-os demasiado bem para se perder, já os percorreu tantas e tantas vezes, afastando raízes e troncos selvagens com as suas grandes mãos,  calcando mato bravio com os seus enormes pés descalços, adaptáveis  às pedras, aos espinhos das plantas enrodilhadas em si mesmas, até ele passar, vezes sem conta, e abrir caminho por entre elas, arquitetando um túnel  até ao sopé da serra, onde viviam, numa pequena aldeia, duas ou três dezenas de pessoas, que Dióstenes espreitava sempre que  alguma desconfiança lhe nascia, na sua mente infantil.


Bebo um golo de àgua. A água faz-nos maravilhas, dizem, pelo menos é fresca e sabe bem. 









sábado, 19 de setembro de 2020

A borboleta Incongruente

 Mais um #reparo, uma situação inusitada, ou impossível, ou improvável, não sei, 

mas passou uma borboleta desesperada junto a mim.

Enquanto ia passando, contou-me que estava meia perdida naquele universo próprio dela, 

onde as flores eram tantas e as árvores se juntavam de tal forma umas às outras,

 que o aroma do sémen das plantas se dispersava e confundia no seu nariz de curta vida, 

e ela, arreliadíssima com essa desorientação que a fazia desperdiçar um tempo precioso, 

lhe baralhava os sentidos e a impedia de farejar como um cão farejador.

Ainda para mais, a criança pegou-lhe pelas asas, 

destruindo mais de metade do pó de borboleta que a cobria, e acabou por a deixar cair das mãos.

A pobre ainda deu três voltas desnorteadas em queda livre, mas, felizmente, lá se recompôs, 

mesmo antes dos seus olhos se espatifarem contra o chão.

Essa manobra infantil fê-la perder grande parte da leveza que tanto a ajudava em tudo, 

e que ficou estampada no sorriso da criança, revelando-se em espanto e alegria inocente.

"Imagine", desabafava, agitada, " muni-me de humanidades idiotas, 

e invejei a capacidade que tem a águia de se elevar nos céus e, com os seus olhos de lince, 

perceber,  lá das alturas, qual dos caminhos a seguir."

"a chuva, ao contrário daquela que ousa sair dos poemas, límpida e brilhante,

 cheia de beleza enganadora, revelou-se perigosa, por isso me escondi debaixo de uma folha, 

para não me aborrecer com o tempo perdido em voltas a mais, e de onde saí, atarantada, 

tentando localizar as gotas de néctar contido nos cálices e nas pontas das pétalas, 

isto se não chovesse mais."

E se era aquele o lugar ideal, o paraíso  para os insetos mais bonitos do mundo, 

por causa  das suas protuberantes asas pintadas,  

para todas as pessoas e também para os harmoniosos deuses que afinal pouco faziam para travar as intempéries.

Era mesmo coisa de borboleta, aborrecida com as horas que passavam, desnecessárias e lentas, 

e que lhe afetavam as cores dos olhos minúsculos, acastanhados e raiados de azul.


 





sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A BORBOLETA INCONGRUENTE

O impossível aconteceu. Impossível talvez não, antes improvável, a verdade é passou uma borboleta desesperada junto a mim. 
Vinha perdida naquele universo próprio dela, onde as flores eram tantas, e as árvores juntavam-se de tal forma umas às outras, que o aroma do sémen das plantas se dispersava no seu nariz e ela com curta vida, arreliada com uma procura que a fazia perder um tempo precioso, que a fazia baralhar os sentidos, e a impedia de farejar como um cão farejador.
Ainda para mais, a criança pegou-lhe pelas asas, destruindo mais de metade do pó de borboleta que a cobria, para a deixar cair das mãos.
A pobre ainda deu três voltas desnorteadas em queda livre, mas, graças a deus, mesmo antes dos seus olhos se espatifarem contra o chão, lá se recompôs, a custo, e uma das muitas consequências, talvez a mais grave, foi perder grande parte da leveza que tanto a ajudava em tudo, e que ficou, muito belamente, estampada no sorriso da criança,  entre o espanto e a alegria inocente.
Era quase impossível que fosse desespero. Podia também ser tristeza, falta de rumo. ou ainda, alcoól no sangue, tóxico e mortal, mortalmente específico para aqueles insetos insetos mais amados do planeta, só pelo peso das coloridas e protuberantes asas.
A chuva, ao contrário daquala que ousa  sair dos poemas, límpida e brilhante,  cheia de beleza enganadora, também não ajudara em nada.
Ficou irritada com o tempo que lhe ia sendo retirado na proporção do que ficava perdido nas voltas a mais, a chuva foi-se, e ela saíu atarantada debaixo da folha, e prosseguiu.para beber, se conseguisse, o nectar que ficara contido nas gotas dos cálices, nas pontas das pétalas, se conseguisse voar ainda, depois de tão devastadora intempérie.
Mesmo naquele espaço limitado, o paraíso ideal para as borboletas, para as pessoas e para os harmoniosos deuses que nada viam, a borboleta, 
A borboleta, munida de humanidades idiotas, invejou a capacidade da águia se elevar nos céus, e, com olhos de lince, perceber lá das alturas, os caminhos a seguir.
Aborrecia-se a toda a hora, que passava, desnecessária e lenta, que lhe afetava as cores dos olhos minúsculos, raiados de azul.







terça-feira, 15 de setembro de 2020

Narcido

#Narciso passou

em borboleta, 

de cauda preta,

mas desapareceu 

rapidamente.

Primeiro,

rodou três 

vezes no ar,

depois,

atravessou o vidro

sujo,

e os buracos das

persianas.

animando, 

com a sua imagem

fragmentada,

e por breves

segundos,

uma das quatro

paredes.


domingo, 13 de setembro de 2020

 Ao dia sete do mês de agosto do ano de 2018, deu entrada no hospital central de uma qualquer grande cidade, um homem sem nome. 

Embora garantisse chamar-se Pedro, também dizia ter trinta e sete anos, mas o seu corpo, a sua expressão, a sua fisionomia, revelavam, a qualquer um que olhasse para ele, mesmo distraidamente, tratar-se de um jovem que não deveria ter mais do que duas dezenas de anos, o que levou os profissionais a desacreditá-lo, também, em relação à identidade que afirmava ter.

Foi por essa razão que passou a ter como identificação aquela que se dá nestes casos, que é precisamente, chamar-lhe não identificado,e atribuir-lhe os números habituais, que servem, como outro artefacto qualquer, para nos diferenciarmos uns dos outros.

O seu aspeto era franzino, muito mal cuidado, e para além das palavras que proferiu, numa colaboração  quase mecânica, mais não disse todo o outro tempo que permaneceu na instituição até deixar de ser visto.

Pedro lembrava-se, constantemente da mulher e dos filhos saindo de casa de manhã cedo, via-os sentados no automóvel a passar o portão que acabava por ficar aberto o dia todo, para seguirem a sua rotina, ela deixava-os na escola e seguia para o trabalho.

O dia em que de mais nada se lembrava a partir dele, tinha começado igual aos outros, com as torradas acabadas de fazer e um último acenar de mão pela janela da cozinha ao filho mais novo que sempre lhe dizia adeus do banco de trás do carro.

Depois, talvez, se tenha dirigido à casa de banho para acabar a sua higiene matinal, mas havia um lapso perdido nesse curto período, como se o que se pudesse ser preenchido pela memória de outro dia , repetidos vezes sem conta, cabendo na perfeição no vazio que, entretanto, se formara. 


Os médicos empenharam-se com algum sucesso, e ele, aos poucos foi recuperando , primeiro em pequeníssimos fragmentos, e depois em registos maiores, solta no seu pensamento, uma vida passada que poderia, talvez,  não ser a dele.

João adormeceu no passeio, após uma noite de copos. Foi apanhado pelos bombeiros que o levaram ao hospital. Todo o tempo que lá permaneceu, não disse uma palavra. 

Felizmente tinha um cartão com a sua fotografia no bolso, que revelava a indiscutível identificação.

Ele queria falar, mas não conseguia, para lhes dizer que não se chamava Pedro. Trataram-no dessa forma até ao final do tratamento, altura em que foi para o domicílio acompanhado da mulher, uma senhora que dizia ser sua esposa, mas que se lembrasse, nem sequer a conhecia. Tinha um vazio na cabeça com se existisse apenas há escassas horas. 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

 Era uma vez, num reino muito distante, tanto do tempo em que vivemos, como do espaço que ocupamos, semeando vida humana por todo esse planeta, numa distância incomensurável e portanto incompreensível de limitações inimagináveis para quase todos nós, exceptuando uma ou outra criatura que por vias de possuir alguma característica ou objeto diferentes, tais como os donos das bolas de cristal, ou os amigos dos unicórnios que lhes dão guarida e alimento nas suas quintas perdidas nas clareiras das montanhas mais desertas do mundo onde neva metade do ano e  na outra metade as folhas rebentam das árvores assinalando mais um ciclo astral, ou por vias de alguma diferença congénita na forma de olhar ou de tocar, o que não existe, era uma vez nesse reino um homem que vivia junto a um lago que gelava metade do ano e na outra metade cintilava a sua água pelo terreno circundante, e onde podíamos ver, frequentemnte, a aproximação dos veados bonitos e dos duendes pequenitos,  perfeitamente deliciados. 

Carmela chegou-se ao lago, para  mirar a cara ondulada numa das margens, isto se estivesse o tempo prazenteiro que parecia estar. Naquele reino inimaginável e distante, como já tentei tantas e tantas vezes descrevê-lo, sem conseguir,


Hoje, estava eu a escrever um textozito, só aquilo de fazer o gostinho ao dedo, nada mais, coisa muito humilde, porque a humildade é importante para que se apenda, quando resolvo, num gesto habitual, ver a palavra do dia. Não sei o que aconteceu, mas a bendita #ilharga começou a entrar-me pelo texto dentro.

No reino solitário que procurava descrever, longe do tempo em que vivemos, numa imagem que se ia realizando na minha cabeça, não havia espaço para essa palavra, mas ela sobrepôs-se ao meu raciocínio e à minha sensibilidade, associou-se, deliberadamente, às crianças de colo encaixadas na anca e eu não consegui retirar, nunca mais, do homem que inventei, um puto agarrado a si como se tivesse uma cola especial.

Carmela, que eu lhe oferecera como filha e quase uma fada encantada, que mirava a cara ondulada numa das margens, começou gritando "Olha a ilharga! Olha a ilharga!", e eu não pude fazer nada rigorosamente nada, para a calar.

E mais.  Os peixinhos do lago, quando nem sequer era suposto que o lago tivesse peixinhos, nunca foi minha intenção, apenas o vi gelado metade do ano e na outra metade cintilando pelo terreno circundante, saíram da água com os trocos preparados para pagar a Carmela, que as trazia fresquíssimas do mercado municipal. 

Pior, muito pior. Ao longe, bem lá ao fundo,  debaixo da sombra dos sabugueiros, uma ilharga parecia espreitar.





segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Verão

Por vezes, ali por meados do verão

o tempo ludibriava-nos

apresentando-se em dias escuros e nevoentos,

passe o facto da atmosfera 

se exibir igualmente muito quente e abafada.

foi num desses dias de agosto que,

completamente impreparadas para a chuva,

de sandálias com unhas pintadas e roupa fresca,

saíram de manhã cedo,

já a manhã era manhã luminosa.

acabadinha de nascer.

Nesse momento, quando se viram na rua

nada deixava adivinhar que chovesse, mas,

ainda que fosse possível ter uma vaga ideia

da modoficação que iria acontecer, ninguém,

com tanto calor logo pela manhã,

se incomodaria a pensar num guarda-chuva,

ou numa capa protetora para meter no saco,

à laia de segurança.

Quando eram, talvez, sete e meia, oito horas,

da noite,

se, por mero acaso, o sol não se tem escondido entretanto,

ainda o sentiríamos por todo o lado,

forte e apetecível,

terminando em beleza mais um dia

comprido e quente,

ou brilhando, ainda, diretamente nos objetos

ou deixando-lhes com oferta prestimosa

o calor resudual de um dia abrasador.

Mas as nuvens taparam-no,

e que nuvens teriam de ser necessárias,

ou quantas, densas e escuras,

para apagarem tamanha luminosidade.

Eram sete e meia, oito horas da noite,



domingo, 30 de agosto de 2020

Por vezes, ali pelos meados do verão, o tempo
 ludibriava-nos apresentando-se em dias escuros e nevoentos,
 passe o facto de a atmosfera se apresentar  igualmente muito quente e abafada.
                               Foi num desses dias de agosto que, 
completamente impreparada para a chuva, 
de sandálias com unhas pintadas, e roupa fresca, 
saíu de manhã cedo, já a manhã era manhã luminosa acabadinha de nascer.

Nesse momento, quando se viu na rua, 

nada deixava adivinhar que chovesse, mas, 

ainda que fosse possível ter uma vaga ideia 

da modificação que iria acontecer, ninguém, 

com tanto calor logo pela manhã, 

se incomodaria a pensar num guarda chuva, 

ou numa capa protetora para meter no saco à laia de segurança.

Então,

 quando eram talvez sete e meia, oito horas da noite,

 se o sol não se tem escondido entretanto,

ainda o sentiríamos

 por todo o lado, forte e apetecível,

 terminando em beleza mais um dia comprido e quente,

 ou brilhando diretamente nos objetos,

 ou deixando-lhes o calor residual de um dia abrasador,

 mas as nuvens taparam-no,

 e que nuvens teriam de ser necessárias,

 ou quantas, densas e escuras,

 para apagarem tamanha luminosidade.

 Mas, como dizia, foi pelas sete e meia, oito horas,  

da noite, que ela tombou sobre nós,

 primeiro sob a forma de umas gotas ínfimas de nevoeiro,

 para depois, finalmente, se transformar em chuva

 

 

 

 

sábado, 29 de agosto de 2020

Sem título

Sentou-se na sua cadeira
de baloiço,
um lugar de eleição junto à 
janela
entreaberta
e sentiu a corrente de ar,
fina e invisível, que fazia
mover, vagarosamente, as
cortinas.
O vento, na sua persistência
meticulosa,
já as rompera em determinados
pontos,
originando, com tanto tempo
perdido,
rasgões verticais na suavidade 
vaporosa do seu débil
tecido, 
Haveriam, ainda, de passar 
por ali, 
talvez um dia,
bandos e bandos de pássaros 
invulgares
que acabariam por mudar 
quase tudo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

kdkdkdk

 Era importante sair de trás da cortina, mesmo que sentado junto a ela, sentindo os pequenos movimentos ondulantes que a brisa lhe oferecia.

Eram os pássaros invulgares que lhe faltavam para compor o mundo, 


Dei dois passos, atirei-me de um penhasco e, imediatamente a seguir, abri os braços, que eram muito mais dos que braços, cortavam o vento, suspendiam-me no ar, se fosse preciso,  travando, com a perícias das criaturas com asas, os movimentos do meu corpo. O que vi, inicialmente, foi o reflexo de um pássaro, uma sombra que alargava ou se estendia, conforme a suave ondelação das ondas, e que supús viajar a uma altitude ligeiramente superior à minha. Os óculos cairam-me em queda livre, mal adaptados àquela força da gravidade, mas eu, espantosamente, não tive necessidade deles, via perfeitamente, por causa de tanta luz refletida na água salgada, tanta clareza deixava-me absorver os objetos, nitidamente, como se fisesse parte dos dias inventados. 

Tinha que alcançar terra firme, não porque lhe sentisse necessidade, mas porque ansiava vê-la, após as dunas. apreciar pequenos blocos de cimento geométrico incrustados na superfície terrosa própria da Terra, apreciando o caos, sob a perspetiva das gaivotas. Era muito importante ir para além das cortinas, saltar por cima das andorinhas, que treinavam em família a inevitável partida, fazer memória do que já tinha passado, pairando sobre os telhados das casas, sobre os jardins, aflorando as chaminés ou os plátanos de antes. ou não atino com este novo formato.

Sentou-se na beira da falésia e, com o dedo grande do pé esquerdo, um dedo com uma elasticidade invulgar para o homem comum, tocou na água que rugia lá em baixo atacando raivosamente as rochas.

Estava tão fria que retirou maquinalmente o pé, e encolheu as pernas ficando com os joelhos bem junto aos ombros.



Olhou para o céu, de olhos bem abertos, holofotes que projetavam curiosidade, enormes e planos, após o seu pescoço, lentamente, se ter virado para trás num ângulo de noventa graus.

Esticou um dos seus braços extensíveis, capazes de abraçar tudo, e enfiou a mão aberta dentro de uma das nuvens, para lhe sentir a densidade húmida e aparente.

, mas a forte camada adiposa debaixo da epiderme verde protegia-o dos disparates do tempo.

Estava-lhe no ácido desoxirribonucleico aquela coisa de ser ave.

Até as pequenas flores azuis, rente ao chão, rastos de cores rasteiras

vibravam com o forte vento.

Coberto de penas obrigava-se ao vôo, 

 




quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Agora



O que elas faziam de imensamente errado

era abrirem os braços para o céu

e deixarem os pássaros pousar na sua quietude.

Agora, caem no chão, cortadas pela serra elétrica.

As asas das aves, a esta hora, já as levaram para longe,

fugindo do medo.

Os seus troncos majestosos ficaram nus e sangrentos,

e vi-as desfazerem-se em pó, que caía em contraluz.

Aconteceram estrondos impressionantes.

As últimas folhas dos últimos ramos, presas por um fio de tempo,

cintilaram como antes nunca tinham cintilado,

tentando inutilmente gritar.

Um mar de madeira viva cobre agora o que antes era um bosque.

Foi o meu sol de luz verde que acabou por desaparecer.






Etiqueta e Pirolito

  Etiqueta e Pirolito subiram à árvore e ali ficaram sentados, no grosso tronco capaz de os suportar aos dois.

O processo era sempre o mesmo, Pirolito subia primeiro e ajudava Etiqueta estendendo-lhe a mão para a ajudar nas partes mais difíceis, onde a estabilidade era pouca porque quase não havia onde firmar os pés.
Após instalados, olharam em redor, por entre as folhas, viram o pai, lá ao fundo, a preparar a terra para a sementeira, as ovelhentas do tio Pretérito a pastar nos campos de lodeiro e, depois de um breve reconhecimento, olharam fixamente o céu.
_Vês alguma coisa?_
_Ainda não. Será que hoje não vem?_
_Vem. Ele vem sempre. Hoje não ia faltar. Logo hoje, que faço anos. Há-de trazer- me uma prenda. Tenho a certeza._ Etiqueta suspirou, receosa de que nada se passasse nesse dia tão especial.
O tempo foi passando, vagaroso, o tempo é sempre vagaroso quando esperamos ansiosamente por algo, até que Pirolito exclamou:
_Olha ali!_
_Onde?_
_Ali ao fundo. Ainda mal se vê. Junto às nuvens!_
Aquilo que era um ponto, foi-se aproximando até se reconhecer um enorme pássaro de penas escarlate e verde sol. Planou durante uns segundos sobre as crianças até se posicionar mesmo em frente a elas, planando, imóvel e esplendorosa.
Preso ao bico, trazia um pequeno embrulho, que agarrava pelo laçarote cor de rosa, e que depositou nas mãos de Etiqueta.
"Não abras já." Parecia querer dizer no seu canto encantador. E cantando, num piar pleno de recados, se afastou tão rapidamente como aparecera, deixando os irmãos observando a sua viagem pelo ar.
Os irmãos desceram a árvore, tão rapidamente quanto era possível. Etiqueta agarrava a prenda com os dentes para ter as mãos livres. Todo o cuidado era pouco para que não caíssem daquela altura brutal.
Sentaram-se nas ervas húmidas, junto ao grande tronco.
_Abre_ disse Pirolito, ansioso. Não era todos os dias que se recebia um presente de uma ave tão bela. Tão linda era que nem um só adulto acreditava na sua existência. Diziam serem sonhos de meninos com muita imaginação.
Etiqueta desfez o embrulho, nervosa. O que poderia trazer-lhe o pássaro visitador? Tinha que ser algo de extraordinário, disso tinha a certeza.
Dentro da pequena caixa estava uma lágrima de pássaro e uma gota de orvalho, presas num fio de ouro.
Cristovam Duarte, José Silva e 29 outras pessoas
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