quinta-feira, 23 de junho de 2016

Poesia versus Animais ( Literatura e Ciência )

O meu gato dorme, numa almofada.
Às vezes adota posições muito curiosas,
mas agora dorme com o corpo enrolado
como normalmente os gatos fazem.
O meu gato é muito bonito.
É preto, de um preto lustroso,
em que apetece fazer festas.
Uma velha que eu conheci
tinha em casa vinte gatos
a roçarem-lhe nas pernas.
Havia pratos e tigelas com comida
em cima da roupa,
e também três cães que havia, felizes.
O meu gato mudou de posição.
Durante o movimento espreguiçou-se.
É lindo, o meu gato brilhante,
a fazer as necessidades no caixote.
Agora coça a orelha com a pata,
espero que não tenha apanhado pulgas,
que as havia na casa da velha, aos montes.
O meu gato é um gato imensamente poético,
mas podia ser uma tartaruga anorética
ou um bisonte.

Gemeos ( Enciclopédia )

Haviam de ter como eu
um gémeo dentro de mim
Se estou a pensar uma coisa
vem ela: Pensa antes assim!
Se é do signo ou da loucura
não sei nem quero saber,
só sei que de confusão é uma fartura,
e se está um dia de sol, pegunto-me
porque não está a chover?
Tem é um grande problema
seja o que fôr que fizermos
sou só eu a responder.
Paciência!
Será igual para as duas
só na hora de morrer

Inferno ( Enciclopédia )

O inferno é um conceito, ou o que fôr, que já ninguém respeita. Já lá vai o tempo em que as pessoas se aterrorizavam só de pensar naquele lugar em chamas.
Agora são apenas os grandes infernos terrenos que conhecemos, e alguns, vistos pela televisão, não passam de infernos de outros, por isso demasiado pequenos. E assim como associamos um maléfico demónio, armado de tridente, a uma simples pastilha elástica, também verificamos que o inferno é uma impossibilidade matemática, tal como o céu, visível e abstrato, a entrar-nos todos os dias pela janela.
Primeiro a visita da morte negra, e depois, meu Deus que medo, perpétuos diabinhos e eternas labaredas

Junho ( Enciclopédia Ilustrada )

Disse-me um dia
o poeta
Junho é pela certa
uma grandiosa
fonte de luz
um dia brilhante
e comprido
um grito mudo
impalpável.
Sentes?
É Junho quente
uma glória
de mês fervente
um absolutamente
uma imagem de nada
ou um Dezembro
em miragem.
Disse-me um dia
o poeta
Junho é Junho
concerteza
só folhas verdes
versos bonitos
e rimas
delicadas,
brincos de princesa
pendurados no sol
mais a brisa
que os movimenta!
Pois o poeta
que se lixe!
Vou tirar a louça
da máquina!

Lua ( Enciclopédia Ilustrada )

Dizem-me
Andas sempre na lua
por isso a lua é a minha casa
quatro assoalhadas
um grande terraço com flores
com vista para o planeta terra,
quando o permite
a camada de poluição.
Gostas de viver na lua?
Adoro!
É uma solidão maravilhosa
porque é uma liberdade infinita,
os sentidos
totalmente preenchidos
com satélites
e constelações.
Tanto que nem anda
gravita
e o que vê?
O luar a formar
aquela imensa estrada brilhante
ao incidir sobre o mar!
Alô?
Terra a chamar!
Terra a chamar!

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Vão ( Enciclopédia Ilustrada)

A minha amiga Luísa vive num vão de escada. Ainda não percebi onde é o buraco que conduz à sua casa.
Às vezes, de cá de cima da janela, só lhe vejo uma cauda comprida e fina colada ao chão. O corpo cinzento e gordo está escondido atrás da esquina.
Tem dias que não dá pela minha presença, silenciosa, um andar acima. Então, sem medos, rasteja rapidamente em várias direções, movimentos que eu não entendo, mas que ela lá sabe, a Luísa.
Fui eu que a batizei. Aliás, ninguém lhe dá o previlégio da identidade a não ser eu, mas tive o cuidado de escolher um nome que não fosse de ninguém conhecido, para não ofender, porque a Luísa é um animal nojento.
À altura dos meus olhos cruzam -se tubos na parede uns muito grossos, outros mais finos, alguns partem do chão até ao último andar do prédio. Nem vou dizer que tubos tão feios procuram o sol, que dali não se vê.
Ao meu lado, de vez em quando, arranca um velho motor barulhento, tão velho que parece não servir para nada.
Aquele vão de prédio é absolutamente deprimente. Só me chego à janela porque a Luísa, como é fumadora, fica ali a fumar um cigarrinho e faz-me um pouco de companhia!

Xisto (Enciclopédia Ilustrada)

Xisto é que é uma falha na memória, onde só existem grandes blocos de granito, ou casinhas térreas, brancas de cal.
O calor é muito, e nem os cães se ouvem, só o rumor de fantasmas de paquidermes ancestrais.
Por entre os montes, o barro e a água pura que eu ia buscar à fonte, que era, por assim dizer, o chorar duma nascente escondida, com fresco e verde a pingar constantemente, alimentando o seu lago.
Xisto não há, só blocos de granito em grandes paredes, escuras e imponentes, e uma ou outra, térrea e branca, com as velhotas à porta, a fazer metros de renda, no fim de uma tarde de verão, e a fazerem-me perguntas idiotas.
Xisto não há. Só o chão brilhante duma eira abandonada, na casa do pássaro, um animal que nunca vi mas que diziam ser uma enorme criatura, alada e triste.
Xisto não há, só sombras, lentas, por entre as árvores, e ao seu lado enormes rochas!