domingo, 26 de junho de 2022

#Lazer

A chuva pintou a cidade de azul.

A água era imensa,
mas coube toda no chão,
preencheu o abatimento
e as depressões dos velhos passeios,
e era tão transparente
que refletiu a iluminação  das montras
que vibrava
escondida no nevoeiro.

Aquela cidade, que era azul, 
também,
quando havia sol por causa 
do céu imenso e do rio.

Mas, então, caíu
a noite triste sobre ela, 
a chuva parou de tal forma 
que só os galhos e troncos
caídos no passeio 
e o outono ensopado nas poças
eram vestígios do temporal. 

A noite aquietou as sombras 
que antes se moviam no vento. 

A água coube toda no chão, 
mesmo a que pingava das caleiras
a que tombava das folhas das árvores, 
ou a que descia com elas 
pousando no asfalto sem cor.

Era a cidade azul, por muito verde
que houvesse nas copas das árvores   
ou as telhas fossem vermelhas, 
caíu a noite.

sábado, 25 de junho de 2022

Para #XS

Uma das minhas avós era tão pequenininha que mal se via.
Nem dava para lhe lavar a roupa na máquina porque passava pelos filtros e ia entupir os canos, de forma que tudo tinha de ser lavado à mão.
Mas isso nem era o pior. O pior é que às vezes não conseguíamos encontrá-la, lá em casa havia o material adequado, lupas, binóculos, e até um telescópio comprámos, mas, mesmo assim, a senhora desaparecia muito e era difícil de encontrar.
Uma ocasião até foi parar ao caixote do lixo, misturada com as cascas de batata.
Um dia, desses fatídicos em que já desesperávamos pensando que daquela vez é que a tínhamos perdido para sempre, fomos encontrá-la numa alface, que era, aliás, um sítio habitual, não sei como ninguém se lembrou, já que a senhora aproveitava este adequadíssimo legume como toilette, foi até o meu filho, o seu neto predileto, diga-se em abono da verdade, que se lembrou disso, e muito bem visto, concordo, pois que lá tinha tudo, grandes gotículas de água para os seus banhos e a sua higiene pessoal, podia fazer as necessidades à vontade, já que quem prepara saladas amiúde bem sabe que há sempre uma ou outra caganita de lesma, ora quem lava de uns, lava de outros, não custa nada, e, realmente, como dizia, lá estava ela, já dentro de um alguidarzinho a tentar subir por aquele material escorregadio, sem conseguir.
O Asdrúbal, que é muito traquinas, o meu sobrinho, filho do Alcides, agarrou no recipiente, viu a avó, e não, não acredito que tenha sido por maldade, foi por ingenuidade, talvez, abriu a torneira no máximo para a ver rodopiar com a água só com a cabecinha minúscula à tona d' água.
Ele é bom rapazito, eu sei. Quando se apercebeu da palidez da senhora, retirou-a imediatamente, agarrou-a pelos pézinhos e sacudiu-a para que expelisse todo o líquido dos pulmões, já por este gesto se vê.
É complicado quando se tem uma bisavó #XS.

Rosas

Uma grande ramada de roseira 
brava
carregada de rosas rosa estava 
vai não vai para se partir
e encher de rosas rosa um pedaço 
de chão. 

Enquanto a chuva não  viesse,
ou não  pisassem as crianças
aquela parcela de relva 
proibida, 
a silhueta perfeita 
e delicada das flores
manter-se-ia, 
e avivariam tudo  em redor.

Era um tapete só para olhar
de pétalas sobre o verde,
mas assim que estivesse tudo 
ensopado,
não  sei, não...


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Mal seria se eu não  tivesse alguém  das minhas relações  com o apelido #IOC.
Pois é, o meu amigo Eugénio é precisamente de quem vou falar, embora não  haja muito a dizer, porque o Eugénio é  uma pessoa pesfeitamente vulgar, dessas incógnitas que andam por aí aos biliões.
Durante a semana, vai para o emprego, pelas oito e trinta, para chagar lá  às nove se não  houver nenhum imprevisto, faz o seu trabalhinho descansadamente, e volta para casa ao fim do dia.
Em casa já  costumam estar a mulher com a filha nos braços, e ele pergunta-lhe sempre se ela precisa de ajuda nas suas coisas, e lá  vai, solícito, perguntar o que há, então,  para fazer.
Recebe uma ou outra tarefa, que executa com perfeição, e acabam por jantar ao mesmo tempo que alimentam a criança.
No dia seguinte, o mesmo acontecerá, até  ao fim de semana em que combinamos qualquer coisa, para desanuviarmos todos, das nossas vidas repetitivas.
O seu apelido é muito antigo, isso eu sei, vem de lá  dos países a norte, ainda quando ainda era Thor a dominar os países da branca neve.
Eugénio contou-me a sua história, porque eu, sem qualquer intenção, apanhei-o comer cubos de gelo diretamente do frigorífico. Algo me tinha chamado a atenção  ao passar pela porta da cozinha, ainda hoje estou para saber porque tive aquela intuição, continuo sem fazer ideia, a verdade é que entrei, sem medos, e lá  estava ele, de feições  transtornadas e todo molhado a devorar o gelo que eu precisava para as bebidas.
_Eugénio, o que se passa contigo, meu bom amigo?_ perguntei, genuinamente interessada. 
E foi nessa altura que ele me contou tudo.
Quanto a mim, que sei agora mais uma história  digna de ser escrita, a destes seus infelizmente, prometi não o fazer e quanto a ele, nada a dizer, nem aud


terça-feira, 21 de junho de 2022

Dinossáurio

#Dinossáurio colocou-se atrás da última pessoa  na fila que se formara para entrar no autocarro.
 Pisou os degraus devagar,  respeitando a ordem criada, e subiu lá para dentro como constituinte daquela serpente domesticada, mas, para ele, o tempo não batia certo porque demorava, ora uns segundos demais, ora um tempo de menos, sem haver a sincronia essencial para que se adaptasse à recente condição de estranho no meio de desconhecidos.
 Passou pela máquina, introduziu o bilhete no obliterador e sentou-se assim que pôde num lugar à janela, para se refugiar na paisagem exterior e assim não ter de enfrentar ninguém.
 Dali, ia vendo a cidade que se movia movia através dos transeuntes, dos sinais inventados para o trânsito fluir nos cruzamentos, evitando assim os acidentes, através das montras tapadas pelos toldos onde, às vezes, se protegiam do sol crianças de mãos dadas com as suas mães protetoras, todos tão longe e distraídos  na sua azáfama diária que nem davam por ele.
Entraram e saíram umas quantas pessoas da viatura.
 Dinossáurio, o tímido, estava quase a chegar ao seu destino. Teria que se levantar, caminhar até ao varão metálico mais próximo onde se agarrasse e que contivesse, também, um aviso de stop para ele premir, dando a indicação necessária ao motorista para acionar a abertura da porta,  e então a campaínha soaria muito alta, e os passageiros, atentos, dariam pela sua presença, teria que suportar os olhares durante os oito passos infinitos até  atravessar a porta automática e sair para o ar livre. Aquele som seria fatal, chamaria a atenção de todos e a janela estaria longe para que pudesse refugiar-se nas suas características de fronteira transparente onde colasse a testa para ver através do vidro. Iria ficar exposto como se estivesse nú. 
 Levantou-se com constrangimento. Só lhe restaria o chão  para observar, assim houvesse chão  até ao final do acesso à porta para a liberdade.
Acabara o seu caminho habitual,  de quatro paragens.
 Ergueu-se do acento perseguido pela culpa, a culpa grande, a maior de todas.
 Tinha ruídos de eletrocoisas nos ouvidos, enquanto houvesse sol, havia barulho, audiomotores, ciclopneus a raspar no asfalto e gritos de sirenes, comboios violentos atravessados nos passos das vidas das pessoas.
 A mulher velha de vestido verde fixou a mão do homem a dirigir-se ao botão  de stop, percebeu-lhe o braço a descolar do corpo, esse braço a inventá-lo muito maior do que podia, ou queria, alguma vez ter sido, aumentando-lhe o perímetro da existência assustadora e gigante.






segunda-feira, 20 de junho de 2022

#Fugir

Leonor fugiu da fuligem
que circundava a casa.
Entrou lá dentro, esbaforida,
e após respirar três vezes seguidas, 
para recuperar o fôlego, 
inspira, expira, inspira, expira,  
fechou a porta com força
e tratou de verificar 
as portadas das janelas, 
os fechos, as aduelas,
para que ela, sorrateira, 
não entrasse e lhe estragasse 
a tarde comprida,
cruzando os ares até ao fim do dia
e vogando em frente ao seu nariz.
As partículas, de cor cinzenta, 
ficaram retidas lá fora 
e com o passar do vento,
dissiparam-se e ela pôde, 
finalmente descansar.
Adormeceu, Leonor,
sonhando com os ínfimos corpúsculos
que deixara a morrer.








 

domingo, 19 de junho de 2022

O Meu Caderno

Vou aproveitar este caderno para ser outra pessoa, deixá-lo em cima de uma mesa, talvez, para que ele me recorde, na sua desarrumação consciente, o propósito de estar ali.
Se, por acaso, arrumar, cuidadosamente, o meu material de escrita, como escreverei?
Mas, se o deixar pousado onde fica, as folhas irão acumular-se pela casa toda, sufocando-a.
É o mesmo eterno problema, o mesmo ciclo sem fim.
Questiono os apontamentos que circulam entre a minha cabeça  e os cadernos espalhados, as folhas de arestas bicudas e os panfletos de costas lisas onde em tempos chegados rabisquei qualquer coisa para ser abandonada.
Num futuro, talvez próximo, talvez longínquo, não haverá, em branco, superfícies disponíveis e as canetas e os lápis deixaram de existir, serão sómente cadáveres enterrados nas gavetas.
Por isso mesmo, serei outra pessoa neste caderno, do qual, admito, não saberei que destino irá ter, ou onde estará nos momentos em que precisar dele.
Aqui, sem qualquer fronteira, ou prisão, e se mantiver os cuidados necessários para que não se perca no reboliço da casa viva, onde papeís lixo contam uma história  sem princípio nem fim, falarei do que eu quiser e maior liberdade não há.
O tempo, passa, hora a hora, e assim ficará aqui descrito, como se, sem consciência, não  lhe desse qualquer importância.
Se vir algo que aos meus olhos se revela muito belo, uma cor surpreendentemente viva, ou um pormenor gigantesco que me chame a atenção,  um desses cantos esquecidos onde pode caber a biqueira de uma bota colossal, nem me interessa o que lá possa caber, e me apetecer, abro mão de uns minutos para aqui relatar algo que nunca aconteceu, é meu dever.




quinta-feira, 16 de junho de 2022

A Barraca

Após  uma grande chuvada, Sara saíu porta fora 
para apreciar o regresso do sol.
Havia, num dos quatro cantos esquecidos do quintal, 
trevos em flor, e ela fletiu as pernas 
e afundou um joelho na terra húmida para os ver melhor.

O cão, que esperava o fim da chuva
debaixo de um telheiro improvisado, assim que deu por ela, 
ainda nem a tinha visto já  percebera a sua presença,  
começou a abanar a cauda de felicidade, 
com o corpo ondulante de alegria acompanhando a excitação.

Sara levantou-se e sacudiu a terra que lhe ficara presa no joelho sujo.

Fez trinta festas ao animal, enquanto este lhe lambia os cabelos espessos
e engolia algumas partículas da fuligem de uma fogueira  a luzir ainda do fogo da noite,
e que o pai preparara com madeiras que buscara pelo bosque.

Todos os dias se chegavam ao seu calor crepitante
enquanto as brasas incandescentes brilhavam 
e as chamas se lhes refletiam nos  olhos.







quarta-feira, 15 de junho de 2022

Vou #arriscar o relato do que se passava naquela vila, perdida numa planície sem fim.
Era verão e os insetos moviam-se com mil movimentos de asa, sobre as flores, com a terra a perder de vista, de ervas rasteiras e secas, não havia qualquer ruído na amosfera, havia sim  calor e muita luz.
As abelhas, pretas e amarelas, eram as raínhas das flores, das escassas flores que pendiam dos suportes presos aos beirais. 
Havia um regador, sem mãos que lhe tocassem, ou qualquer outro sistema controlo à distância, que se inclinava sózinho para verter a água nos canteiros e, como que por magia, a sua água era inesgotável.
Era de plástico verde e guardava-se sózinho numa despensa vazia sempre que terminava a importante tarefa de regar.
Os gatos dormiam a sesta, alheados do silêncio  que envolvia a atmosfera quente.
As abelhas, naturalmente, iam deixando o aroma do polén no ar por onde passavam, não  sei, disso não me lembro, sei que entravam e saíam pela janelas danificadas, brilhavam entre os rasgos iluminados dos raios de sol imperturbável  e geométrico, nas casas do casario sem ninguém,  de edificações muito baixas e de telhados desarranjados.
No mesmo  alpendre das flores eternas, balançava uma cadeira de baloiço, e balançava sem a existência de vento ou outra similar força dinamizadora de  movimento.
Balouçava como um suicida, cuja existência, por obra de um destino cruel, deixou de lhe fazer sentido, ou como um fantasma do passado ou como outro alguém inexistente.






sexta-feira, 10 de junho de 2022

Uma Zoeira Nos Ouvidos



Para mim
alguns  poemas são
fortes como  fortalezas,
resistentes, mas,
mesmo esses,
tombam, por vezes,
quando alcançados
pelos projéteis de uma
guerra
ou quando consumidos
pela erosão do tempo,
ou, ou, ou
quando têm fome.


(Se, de facto, assim for,
é imperativa
a recontrução
mirabolante 
dos destroços magoados, 
das letras soltas 
caídas.)

Os poemas, são
palavras em fio, 
ou em torrente,
ou ainda,
palavras por dizer
retidas atrás das cordas
vocais.


São gotas escritas
pela chuva,
gotas essas
que vou buscar
para que não desapareçam,
para que permaneçam 


um pouco mais
do que os segundos
da sua curta vida
balançando nas pontas
das folhas 
até à queda fatal.


Os poemas
também estão nos botões de flor,
fortes e resistentes,
até 
nas casas caídas,
ou na imponência das enormes
pedras, perdidas no chão,
sufocadas pelas hastes 
enrodilhadas
de pétalas vivas.
por onde o sol atravessa
tornando-as, imagine-se,
transparentes.

Por  certo que na chuva,
que pinga, 
vejo tudo onde
porventura nada está,
mas não posso deixar de 
reparar.



sexta-feira, 3 de junho de 2022

Era uma vez um burro, um pavão e uma cangurua que viviam na mesma quinta.
O burro entretinha-se,  pelo dia fora, a dormitar em silêncio. Viam-se-lhe os olhos pestanudos a esmorecer, até quase fecharem. De quando em vez lá  se lembrava de pastar um pouco, e então dobrava o pescoço no sentido descendente e enfiava o focinho na erva fresca. De resto, nem uma palavra, só zurros quando se lhe prendiam nas voltas do intestino algumas palhas fibrosas, mal escolhidas da terra e inadequadas à sua dieta.
Por sua vez, o pavão, embora estivesse, por força dos mandamentos da natureza, impedido de falar, pelo menos lançava uns gritos agudos que trespassavam os ouvidos de qualquer um, gritos audíveis a uma distância  considerável, mas palavras, palavras propriamente ditas, ele não era capaz de as dizer, de forma que abria as penas da cauda carregadas de profirinas e ali ficava, equilibrando o corpo azul brilhante no chão incerto e mole por causa dos aguaceiros.
A cangurua tinha três filhotes na bolsa, tão pequeninos que mal se viam, e, talvez por esse motivo, pela atenção constante que tinha que dispensar aos seus bebés, também  se mantinha em silêncio  concentrado e responsável, e para mais que nenhum daqueles dois queria conversar, o burro dormia, ou pastava, e o pavão, ora gritava, ora abria em leque a sua cauda extravagante.
Nisto, e inexplicavelmente dada a paz habitual dos seus dias de animais de quinta, os bichinhos tiveram uma belíssima surpresa. Um anjo de asas grandes e brancas desceu dos céus à terra e colocou-se entre os animais.
O burro foi o primeiro a sentir a angelical presença. Deu um zurro um pouco diferente dos habituais por não  saber como traduzir em burrês semelhante visão, mas, ainda assim, despertou a atenção  da cangurua, que ficou desconfiada da criatura, não sabendo se ela poderia interferir, e como, se para o bem se para o mal, na sua gestação.
Quanto ao pavão, simplesmente invejou a natureza bela do anjo, enquanto esperava pelo desenrolar da situação.
_Não temeis, venho por bem. A partir deste momento os animais podem falar!_
As três criaturas entreolharam-se, admiradas, mas o burro foi o primeiro que tentou a sua sorte com a nova capacidade que lhe estavam a oferecer.
_Porra! Que fixe!_ disse bem alto, ainda muito influenciado pelo som da sua voz zurrante, mas já  com grandes espectativas para a possibilidade desta nova forma de se expressar.
O anjo, ao ouvi-lo, perdeu o seu semblante pacífico  e mostrou-se bastante tenso.
_Então eu permito-te que fales e tu vais logo começar com um palavrão? Não. Isto não é boa ideia.
E assim como apareceu, eclipsou-se no ar, deixando os três sem palavras.
Com a sua visão binocular de grande alcance, o pavão viu algumas penas brancas de anjo, caídas ao lá ao fundo, ao pé da cerca e preparou-se para as ir buscar. Com o bico, apanhou-as e colocou-as em si, para ficar ainda mais bonito.
Só os três bebés canguru, talvez porque o anjo não fosse tão intransigente como quis deixar transparecer,  aprenderam, mais tarde, a falar.