terça-feira, 30 de abril de 2019

Um Pássaro



Para arrumar
um livro de poesia,
dirigiu-se às
prateleiras.

Acontece que
calculou mal a distância,
embateu com o cotovelo
contra uma saliência
inoportuna,
e o livro caíu no chão,
desamparado.

Abriu-se,
e um  poema
soltou-se da página
onde estava  impresso,
em #tinta preta,
tamanha foi a
descompressão, e tão
rápida, das folhas
que antes,
se encontravam
fortemente
apertadas
umas contra as outras.

O poema começou
a rodopiar,
atarantado, preso
no ambiente desconhecido
da sala.

Batia  as asas contra
as paredes
e contra o teto,
em voos pequenos
e assustadoramente
cómicos,
apesar das suas
sumptuosas
penas amarelas.

O homem
abriu a janela,
inclinou-se sobre ela
e soprou a lombada
gasta e verde
para sacudir
para a rua
as sobras das letras
desconjuntadas e
do pó.

O pássaro em  verso
apercebeu-se
do céu azul
orientou-se naquela
direção
e desapareceu
pelo espaço livre.

O homem acabou por
guardar o livro
com uma página em
branco a mais.

domingo, 28 de abril de 2019

O Mestre

O #mestre
adormeceu por
uns segundos
e sonhou um sonho
de autocarro
rápido e trepidante,
em que as palavras
lhe fugiam,
imaginou-as
num aeroporto de
malas de mão
porquanto fosse
indiferente
se regressavam
ou partiam
só o facto
de estarem ali
de bagagem no chão
e mãos nos bolsos
à espera do avião
já as sentia longe.

De barriga encostada ao gradeamento
imaginou-as noutros locais,
apetrechadas com os seus apetrechos,
só podiam ser elas
depois de terem tomado uma droga
que as fez esquecer.
Queria acreditar que sim,
que estavam felizes e contentes
só porque já nem se lembravam
dos enrodilhanços
umas nas outras,
de ganharem formas  inconcebíveis
de como tudo foi agradável,
e então abandonavam-no.

Inventava-as nos aeroportos,
de malas nas mãos, porquanto fosse indiferente
se iam ou se regressavam.
Só o facto de estarem ali, de bagagem no chão,
e mãos nos bolsos à espera do avião, já iam
fugindo para muito longe.


Por vezes estavam nas praias
nas conversas debaixo do sol
ou saíam pela boca do homem a ressonar
encostado à janela do autocarro,
enquanto sonhava uns segundos.

Abriu uma saqueta de pó efervescente,
para o alívio da dor.
Diluir num copo de água de oceano
impenetrável.



Fica aqui o testemunho,
As palavras são-me roubadas.
Vejo-as noutros locais, apetrechadas
com os meus apetrechos,
só podem ser elas,
depois de terem tomado
uma droga que as fez esquecer.
Quero acreditar que sim,
que estão felizes e contentes
apenas porque já não se lembram
de como as fiz enrodilharem-se
umas nas outras, ganharem formas
e consistências diferentes,
de como foi agradável,
e abandonam-me para outros lugares
como barcos de pesca
partindo

Imagino-as nos aeroportos, de malas nas mãos,
porquanto seja indiferente
se vão ou se regressam,
Só o facto de estarem por ali, de bagagem no chão
e mãos nos bolsos à espera do avião,
já me fogem.

Por vezes estão na praia,
nos passeios de subúrbio,

ou saem pela boca de alguém,
que ressona encostado à janela,
do autocarro,
enquanto sonha uns segundos.

Nesse caso também as escrevo,
mas primeiro  guardo-as
e deixo-as secar
depois de devidamente
retiradas das profundezas do oceano
pela noite dentro.

Alguém terá que ter  a audácia suficiente
para enfrentar
as águas impenetráveis, mas não seremos nós..

De barriga encostada ao gradeamento.
diluíu num copo de água do mar,
um comprimido efervescente.










O Mestre

Estava a ouvir com a máxima atenção o que o mestre lhe dizia mas não estava a entender grande coisa.
Punha-se a observar o  desalento do homem pelo cair dos seus braços ao longo do corpo, a notar-lhe o ar sofredor e impaciente, quando pela milionésima vez lhe pedia para explicar melhor o que queria dizer, e ele, pela milionésima vez, e na sua imensa sabedoria,  mudava  vezes infinitas o discurso na intenção de que ele atingisse o fundamento pretendido, mas era impossível..
 "A vida é uma espada, e nós caminhamos sobre a sua lâmina"
Cruzes, até ficou com pele de galinha, e não percebeu  onde ele queria chegar, mas alguém o tinha alertado para o grau de dificuldade daquela sabedoria específica, que podia provocar arrepios, e tinha que acabar o curso se não a mãe não haveria de o largar nunca mais.
"Se te aborrecerem, deixa que o karma há-de-lhes cair em cima, como a serpente cai em cima dos incautos!"
"O quê? O que é que é isso, agora? Cada vez percebo menos."
O mestre, por sua vez, retorcia as mãos uma na outra, preocupado. Os seus discípulos estavam a atingir um grau de falta de descernimento como ele nunca tinha visto em trinta anos de carreira.
Às vezes punha a possibilidade de ter perdido faculdades e não se explicar devidamente,
A verdade é que já tinham passado longos anos desde que o último grupo de jovens o  seguiu, voluntariamente, pelos campos fora, entoando cânticos de alegria, e apanhando besouros e outros animaizinhos desse tipo.






quarta-feira, 24 de abril de 2019

O #Jantar

O tio Alberto cuspiu um pedaço de folha de louro que tinha atravessada nos dentes, já há um bom tempo, e aproveitou com o gesto para também disfarçar um certo comprometimento. Tinha acabado de pedir duzentos euros à mãe.
A  avó Joana também revelava sinais de nervosismo, percebia-se que não estava de bem com o filho, e, talvez por isso, deixou cair a posta de peixe corvo, inteirinha. sobre a carpete.
Espetou-lhe o garfo  até ao fundo da carne e  levantou-a com o  punho bem fechado em torno do cabo do talher para a chegar mais perto dos olhos.
" O que é isto? Não vejo. Uma ervilha? Passa-me a lupa!"
"É pescada, avó", respondeu, solícito, e foi-se baixando para limpar o desastre que a senhora tinha acabado de provocar, mas, assim que se inclinou, arrependeu-se.
Do lado do primo Isaías vinha um bafo nauseabundo. "Porco", pensou no momento, mas sem nenhumas más intenções, porque era um menino bom.
Do outro lado da mesa, viu as pernas da tia Alice, com os elásticos a colapsarem-lhe a circulação, os pés nos sapatos velhos e deformados pelos joanetes. "Que nojo", pensou sem maldade nenhuma a criança.
Levantou-se rapidamente e saíu daquela zona, atordoado.
Tão rápido e descuidado foi na forma de se levantar que bateu com a testa na esquina da mesa.
Felizmente estava lá o primo Adérito, que era enfermeiro.
"Afastem-se todos", ordenou, e rapidamente lhe enrolou a massa fresca de volta do crâneo.
Essa intervenção  revelou-se muito importante.
Aliviou-o da pressão  das pontas das estrelas amarelas que orbitavam, no momento, sobre a sua cabeça.



terça-feira, 23 de abril de 2019

#Index

Os livros desapareceram, as estantes foram desmontadas e as paredes ficaram brancas com traços de sujidade geométrica que demarcava a anterior posição de cada um.
Foram colocados em caixotes, que por sua vez foram selados com uma larga fita adesiva, que juntava as partes num todo e fazia deles um único volume.
Mais tarde, lavaram e pintaram as paredes, reduziram o número de objetos expostos, fizeram uma sala ampla e agradável, de linhas direitas e muito conforto, agarraram nas caixas com peso insuportável e levaram-nas para a casa de campo, na aldeia onde moravam todos os avós.
Na casa de campo havia ratos que gostavam de roer papel e  podiam comê-lo.
Em plenos dias de sol, se a velhota estava do outro lado, do lado do quintal, eles sentiam-se em  total liberdade, nem precisavam de se esconder correndo de sombra em sombra, camuflados atrás dos móveis  que tapavam a luz difusa que entrava pelas janelas durante a noite.
A begónia, imóvel, vegetava num vaso ao centro de uma  mesa redonda, e as suas folhas vivas confirmavam a presença da mulher que, de vez em quando, a regava com pequenas porções de água fresca para a alimentar.
Agarrou numa  faca e cortou o cartão que rodeava tantos livros amados, e, durante uns tempos, entreteve-se a forrar a casa com eles.
As caixas vazias levou-as para o lixo, a custo, e enquanto percorreu o caminho descendente, transportando-as, vezes sem conta, passando o portão de ferro até chegar ao contentor, ia atevendo, satisfeita, a companhia que teria de futuro com tanta literatura para preencher as horas mortas.
Sentou-se no sofá abrindo um qualquer, por ler, nas primeiras páginas.
Olhou em volta e apreciou a aparência das lombadas e das madeiras obscuras, quedas e mudas, circundando a casa.






domingo, 21 de abril de 2019

Glorioso




Era uma vez um rapaz que tinha os olhos azuis.
Quanto a isso, nada de extraordinário, existe muita gente com olhos dessa cor, mas acontece que os seus olhos eram tão intensos, tão luminosos e penetrantes, que as pessoas se sentiam incomodadas ao olhá-lo fixamente.
Enquanto foi de tenra idade, ajudado pela candura própria dos muito pequenos, não se revelava tão perturbador, mas, à medida que foi crescendo, e absorvendo todos os tipos de emoções, que o fizeram perder a inocência, fixá-lo diretamente tornou-se quase insuportável.
Se, por acaso, alguém ficava preso por uns segundos naquele encantamento, sentia receio e desconforto.
Naqueles tempos  #gloriosos, não havia leis que protegessem de si próprios, nem dos outros,
os rapazes com olhos azuis, demasiado poderosos e fundos, daqueles que ninguém consegue olhar.
E era por isso que ele baixava a cabeça, quando nos dirigíamos a ele, para que ninguém  se sentisse confrontado, e entrava num mutismo triste.





sexta-feira, 19 de abril de 2019

Nem por isso

Tal como fazem a grande maioria dos jovens, também ele ía para todo o lado sem chapéu de chuva.
Por isso aproveitou uma aberta no céu, e saíu de casa na esperança que o S. Pedro não o arreliasse com uma chuvada daquelas que nos estragam o resto do dia, por causa do desconforto de ficar com as roupas molhadas e frias coladas a nós.
Apesar dessa possibilidade,  arriscou. Arriscava sempre, pois não gostava de andar com aquele empecilho atrás, temendo perdê-lo e ter de ouvir um a descompustura da mãe,  para além de ter de carregar um objeto  que lhe atrapalhava os movimentos e que interferia na sua bela capacidade de se abstrair do que o rodeava.
Passaria o tempo a ter de se lembrar onde o tinha colocado, ia esquecer-se dele em vários sítios, ia ser obrigado a voltar para trás à porta dos cafés e dos bares. até, finalmente, lhe perder de vez o rasto.
Quando a Dona São arrastou uma das muitas cadeiras para limpar melhor o espaço, antes de o fechar e ir para casa dormir, percebeu que  ela não se movia, trancada por uma das pernas a bater em qualquer coisa. A mulher, já cansada de tantas cadeiras e outros móveis para deixar limpos e arrumados, começou a puxá-la com a maior das forças, mas ela não cedia nem por nada.
Ao baixar-se, já saturada de fazer esforços, para entender o que lá estava por baixo  impedindo a passagem, viu o  chapéu e sentiu uma enorme raiva dentro dela.
Ele que venha cá buscá-lo, e ver se não lhe dou com ele no lombo, pensava, irritada, mas lá conseguiu soltá-lo, apesar de partido em vários pedaços.
O rapaz entrou no estabelecimento a tempo suficiente de ver o estado em que ele tinha ficado.
A sua irritação também foi bastante. Quem era aquela mulher para destuir as coisas que não eram dela? E pediu-lhe satisfações.
A raiva alimenta a raiva, já sabemos, talvez por isso começaram ofender-se mutuamente, "#estudante da treta, só queres é copos", e "velha do caraças não tenho medo de ti!" foram as melhores das frases no meio de tantos impropérios, e iniciaram o arremesso de pequenos objetos um contra o outro, tais como beatas dos cinzeiros por despejar, caricas das garrafas de cerveja, restos de fruta das sangrias, e até mesmo o líquido que repousava no fundo dos copos deixados nas mesas.
No momento em que deixou de haver projéteis disponíveis a dona São tirou um apito do bolso da farda e gritou "Stop", acabando com a batalha.





















terça-feira, 16 de abril de 2019

E Se Fosse #Bibi_Andersson?

O consumo de água foi restringido e eu coloquei a hipótese de dizer adeus à plantas carnudas e vivas que tinha no quintal.
Consumiam, efetivamente, água demais, o verde intenso embriaga-se com a transparência do líquido  e com a sua  humidade, e se me livrasse delas deixava de ultrapassar o que naqueles tempos nos era imposto.
Mas essa medida drástica acabou por se revelar desnecessária.
Após muitas  horas de trabalho efetivo, consegui que aprendessem a beber menos e a sobrevirem igualmente esplendorosas.
Os plásticos estavam finalmente a ser reduzidos, havia fontes espalhadas pela cidade para as pessoas saciarem a sede sem terem de comprar garrafas imprestáveis, havia bocas que se inclinavam debaixo da água pura que caía, em fio,
No entanto, todavia, não era permitido roubá-la com outros fins, e os polícias palmilhavam os jardins e os passeios, aos pares, atentos ao que se passava.
(Entre as três e as quatro da manhã não havia ronda. Era quando eu aproveitava para lá ir e de lá retirar uns quantos litros proíbidos.)
O vizinho do lado nunca me foi simpático.
O seu pedaço de terra, idêntico ao meu, tinha sido empedrado e servia agora para algumas arrumações.
As ferramentas ficavam protegidas debaixo de uma pequena barraca de zinco que ele tinha montado junto a uma das paredes.
Os gatos aproveitavam para saltar para cima desse telhado, depois para o muro, onde se equilibravam na perfeição enquanto o percorriam até à outra ponta, e onde, finalmente, pulavam com elegância para os meus pés.
Primeiro perseguiam as abelhas e depois chegavam-se aos canteiros, e arrancavam ervas para comer.
De seguida subiam para o parapeito  da janela da cozinha, e esperavam, impacientes,  e com o olhar inteligente dos gatos, que eu, de lá de dentro,  lhes desse  pedaços de frango e de peixe.
Durante a tarde, deitavam-se em frente à porta, porque eram as horas do sol incidir sobre o tapete.











domingo, 14 de abril de 2019

#Zaire (da série, Obrigada, Boris Vian)


Dois de abril de 2019
Três lírios roxos acabaram
de nascer
Dobram o riso para o sol
como fazem as
crianças pequenas.


Três de abril de 2019
o nevoeiro voltou.
Sorrateiro,
preenche todos os cantos
e todos os canteiros.

Dez de abril de 2019
Pressinto que
alguma coisa de
diferente
está para acontecer

Dezassete de abril de 2019
Não fosse a iluminação de
dum candeeiro
e nunca veria aquelas
flores

Trinta e oito de abril de 2019
Aborrece-me tanto a beleza
das coisas,
que volto para
trás.

Trezentos e dois de
abril de 2019.
É o mês da primavera
sem fim


Duzentos e vinte mil
de abril de 2019.
As pétalas coloridas
e as folhas velhas e cansadas
suicidam-se
caindo em queda livre
de lá de cima
e eu vou  varrê-las.

Quatrocentos de maio.
Com um ramo de margaridas
nas mãos, Margarita
regressa do #Zaire.
e aqui permanecerá
até cinco de junho.













sexta-feira, 12 de abril de 2019

Rapunzel


Rapunzel, do alto da torre, atirou o cabelo entrançado pela janela, para ele subir.
Assim que o rapaz se pendurou, Rapunzel sentiu uma dor aguda a atravessar-lhe o coro cabeludo,
Pára, estúpido, disse ela, estás a magoar-me!.
Ele imediatamente saltou para o chão.
Desculpa. Então como é que fazemos isto, Punza? Tinhamos combinado assim.
Com os meus cabelos é que nem penses. Espera. Vou pedir ajuda à minha bendita avó,  Ermenegilda a Assustadora, que está encarcerada na torre Oeste, porque o Torres, olha, nem de propósito, o nome dele, bem, o Torres  vai lá ter com ela durante a noite muitas vezes.
Rapunzel, passados segundos volta com instruções da avó, e com pão da avó e doces da avó para lancharem.
Ela diz que ensinou os cavalos selvagens das montanhas sinuosas aqui em frente, a formarem uma escada com os corpos até cá acima, e depois é só subir, ou descer, conforme para onde te dirijas.
Sabes mandar os cavalos fazer isso?
Eu não. Eu só sei subir pela trança. Mas vou chamá-los, pode ser...
Ó cavalos! Cavalinhos!? Venham cá! 
#Xará, o Crina Dourada arrebitou as orelhas para ouvir o assobio. Alertou os companheiros e a esposa, a belíssima Pata Leve e os seus filhos e  amigos.
Juntos, cavalgaram deixando para trás o esvoaçante campo de papoilas onde se encontravam a pastar e desceram até ao palácio de mármore.
Rapunzel, de lá de cima, vê os animais levantando pó ao descer a colina, Pareciam loucos.
O príncipe ficou aterrorizado pensando que era o início da guerra que seu pai, o Rei Soldado, tinha acabado de proclamar, mas Rapunzel tranquilizou-o. "São os cavalos que a minha bendita avó Ermenegilda a Assustadora ensinou, não te assustes, príncipe, chá do meu coração."
Xará, estancou o galope antes de atravessar a ponte arredondada sobre o riacho porque Pata Leve estava grávida e começou com dores de parto.
Entretanto uma família numerosa de pés descalços ia a passar por ali. De todos, o de maior coração era o avô, pelo que resolveu ficar para trás, com o objetivo de ajudar a égua naquela hora difícil.
Rapunzel, aborrecida pela demora, recolheu a trança, fechou a janela e foi ver televisão.
Alguns anos depois, Hermenegilda faleceu.













quinta-feira, 11 de abril de 2019

#Virgínia_Woolf, ou Mais Uma História de Amor.

Belita procurava desesperadamente o amor.
Até ali tinha tido vários relacionamentos mas nenhum durara muito tempo, e começava a sentir-se triste por não ter encontrado ainda o parceiro  da sua vida.
Um dia, cruzou-se com Frederico o vizinho, seu amigo desde os tempos em que fumavam às escondidas atrás da casota do cão, e que vinha acompanhado pelo seu tio, um industrial de sucesso na área da construção.
Tinham acabado de almoçar e o senhor  vinha palitando os dentes duma forma tão sensual, que Belita sentiu variadíssimos arrepios ora pela espinha abaixo, ora pela espinha acima, numa dinâmica completamente nova para ela.
A Justino também ela não passou despercebida. Belita era muito bonita, ainda, apesar da juventude já ter lhe ter fugido há um tempo, e aliás, quando é o momento de encontrarmos a nossa cara metade nem reparamos se aquela pessoa é careca .ou lhe faltam dentes, ou se não cabe dentro da roupa, e outros pormenores que não assumem qualquer relevância.
Frederico percebeu de imediato o que se estava ali a passar e resolveu afastar-se, não sem antes comentar, "Ai, ai, ai, seus marotos, vamos lá ver!"
Quando Belita e Justino ficaram sós, chegaram-se mais um para o outro, um pouco envergonhados, mas com uma felicidade crescente a invadi-los, e um calor difícil de suportar nas faces enrubescidas.
Frederico, que tinha ficado a espreitar atrás duma árvore, pois era fã incondicional de histórias de amor e do bem entre as pessoas e os povos, viu, com agrado, Justino oferecer o palito usado a Belita, que o reutilizou imediatamente, encantada e com enorme prazer.


Vamos lá ver

Ao invés de estar tudo preenchido, faltava um livro gordo ou dois mais pequenos, não sei.
Entre um velho roteiro de Londres e Virgínia Woolf, Msr Dalloway,
Na prateleira de baixo, viviam Philip Roth, Umberto Eco, Murakami e Valter Hugo mãe,
Não se dão uns com os outros, evidentemente, por isso é que no andar de cima o outro fugiu dali para fora nem sei qual,
José Luis Peixoto, 2666. tortos, velhos.
Proust, Paul Auster, Tolstoi, Lídia Jorge, Agustina, cada uma a puxar para o mesmo lado, e eles vão inclinando, a prosa de pessoa em papel couché , não os aguenta no topo, e eles vão inclinando dando o aspeto desleixado que não pode ser.
No último andar, Thomas Mann mantém-se ereto, mas os três ao lado, pimbas, caíram, e porquê,  o Gaudi não foi suficiente para travar a sua queda porque é demasiado pequenino.
Felizmente que a tinta preta em fundo escuro não me inquieta, mas é mal escolhido, só eu sei de quem se trata, é a aldeia de Faulkner, mutio mais cinzenta que verde escuro, enfim...


Pff! Coitados, nem se dão nada bem, acho eu. Quem terá fugido foi quem não suportou a companhia. Onde já se viu encaixarem-nos entre  um velho roteiro de Londres e Virgínia Woolf, Msr Dalloway?

Vamos lá ver, alta-me um livro gordo, ou dois mais pequenos, não sei, entre um velho roteiro de Londres e Virgínia Woolf, Msr Dalloway.

Caríssima #Virginia_Wool
Mrs Dalloway, não sei onde está.
Fugiu-me da prateleira,
estava tão sossegada entre
um velho roteiro de Londres
e a prosa de Pessoa,
que é, aliàs, uma porcaria
de livro, que não segura os outros,
e que ficam inclinados e feios
por causa dele.

Aquele 2666,  tão  torto, coitado!
Agora também vos digo,
em abono da verdade,
Tommas Mann,
no andar de cima,
aguenta-se ali, firme e hirto,
direitinho e elegante.
ui, ui!

Naturalmente, a senhora não gostou que Anna,
do outro lado da sala, morresse esmagada
pelo comboio,
mas eu não tenho qualquer responsabilidade
nessa históra.


Aposto em como se foi pendurar
 nas pás de uma ventoínha
em terras de cor e sol  e areia.
Eu a ela também fugia para  esse,
lá para a América do Sul,
calorzinho, refrescos, bem bom!

Também pode estar no sotão
amuada, num canto qualquer...






quarta-feira, 10 de abril de 2019

mamam

Pulava entre os escombros, saltava as instáveis pedras de mármore rosa.
Nada disso, nem sabia o quê. Cansaço ou loucura ou sonho.

Era já tarde tardia,  quando fui mandado parar numa operação stop. Depois da devida apresentação dos documentos que se encontravam, evidentemente, em ordem, os polícias mais altos e mais gordos mandaram-me abrir a bagageira do automóvel.
Tentei evitar, falando-lhes no tempo, que chuviscava, formando brilhos deslumbrantes sobre a água.
e outras imagens maravilhosasa, na tentativa de dinamizar as suas veias poéticas  mas não ligaram nenhuma, até fizeram  uns trejeitos na direção dos colegas, como que para dar a indicação de  que  eu tinha um discurso desconexo, que provavelmente não estaria bem.
Como não se deixaram desconcentrar,  lá tive de obedecer, rezando para que passassem dspercebidos
. Tinha-os tapado com uma manta. Atirei com ela lá para dentro de forma displicente, e ela caíu, aleatoriamente sobre eles, para dar um ar ocasional à desarrumação, deixando prever nada, ou ninguém, escondido lá debaixo, mas, nunca sabemos até onde vai a perspicácia de cada um, e cada caso é um caso,
Levante aí essa manta encarnada, ordenou o mais franzino, e mais inteligente, e eu não tive outro remédio senão obedecer, levantá-la, descobrindo as três bestazinhas que levava  de volta para o seu habitat natural,  sem que ninguém soubesse.
Quando se viram destapados, sorriram de contentes por causa do sol que lhes incidia nas ventas, e quando sorriam, mostraram-lhes uma fileira de dentes, pequenos e  afiados, próprios para morder.
mas desativados fazia muitos anos.
Apesar de bonzinhos, continuavam com um aspeto aterrador, os agentes da autoridade não arriscam quando se trata de criaturas horríveis provocando propositadamente, e perseguiram-nos com os seus bastões.
Mas eles conseguiram esgueirar-se, e ainda hoje andam por aí, escondidos nas reentrâncias da cidade.















segunda-feira, 8 de abril de 2019

ncehfeifh

Na segunda prateleira falta um livro. Nada se modificou, podia nem dar por isso, francamente nem sei qual é.
Quae mania têm os meus livros de ir passear sem me dizerem nada, sem um aviso desaparecem do mapa de lombadas.
Silenciosos, falam.


Solstícia e Vagibunda  eram muito amigas. Tão amigas que sei lá eu explicar isso ou me apetece sequer fazê-lo.



Quando não me ocorre nada
para escrever
é que é do caraças.
Até porque me apetecia.
Bloqueei.
Pff!


Toma lá uma tosta para colares à testa
com cuspo.
Tens sete tentativas. É muito.
Se não passares no #teste,
 besta,

Era uma vez um rapaz que queria ser uma Besta mas não estava a conseguir nota para isso. Fazia todos os testes, mas, embora obtivesse boas classificações, não eram suficientes para para entrar nas vagas disponíveis, que eram escassas, dado o elevado número de pessoas que queriam ter aquela profissão.
Ganhava-se muito bem, o que, evidentemente, proporciona uma melhor vida, e para além disso, havia um grande reconhecimento da sociedade, quase uma veneração e, não havia quem não se orgulhasse de dizer aos amigos e aos conhecidos que tinha na família uma ou mais pessoas com aquela profissão.,
Recordo-me, com alguma ternura, da minha amiga Laura, emocionada,  ao apresentar-me o avô, agora um velhote aparvalhado, enquanto me explicava que ele, em novo, tinha sido, se não a maior, pelo menos uma das maiores bestas daquela cidade.

Esta palavra, hoje, só pode ser ser um #teste.



















domingo, 7 de abril de 2019

Saúde

"O que me falta é a #saúde sr. Almeida, ele é os olhos, o estômago, os pulmões... E os ossos, sr. Almeida, os ossos não me deixam andar, então com este tempo, parece que tenho farpas enfiadas nos joelhos e lobos a morderem-me os cotovelos!"
"Lobos?
"Sim, lobos. Quem diz lobos, diz cães selvagens,ou assim... E olhe, outro dia aborreci-me, a tensão disparou parecia um foguetão a ir para a lua, só fiquei com medo que rebentasse, como alguns.
O meu coração agarrou uma velocidade estonteante, pensei que desmaiava, mas lá me sentei no baloiço dos miúdos, ia a passar por ali, só que fiquei presa no assento, aquilo não é para mim, está visto, queria sair  e não conseguia, veio um homem, o diabo em pessoa, e começou a rir maldosamente e a empurrar o baloiço com toda a força,  caíu-me o saco do pão e a mala, eu gritava, cheia de medo, pára malvado, filho de Satanás, mas ele não quis saber e eu a balouçar furiosamente, é claro que me senti mal a seguir, mas vá lá, serviu para me desprender.
O pão de Mafra, nem me faz nada bem, mas é tão bom, foi parar ao cimo do escorrega, tive que lá ir buscá-lo, só que não me aguentei e vim por ali abaixo, com uma aflição e um medo, valha-me nossa senhora!
Mas olhe, sr. Almeida, até foi engraçado,  agora ando sempre por ali a rondar, a ver se me divirto mais um pouco, infelizmente nada acontece. Se calhar é porque deixei de comprar daquele pão, que me incha o intestino, até os vizinhos já se queixaram, dizem que ouvem granadas de mão a rebentar aos seus ouvidos!"
"Granadas?"
"Quem diz granadas, diz trovões em dia de tempestade, mas depois olham pela janela e não se passa nada, os dias estão lindos e soalheiros, claro que desconfiam.
Mas deixe lá sr. Almeida, e o sr. como está?"




sexta-feira, 5 de abril de 2019

Dona Angelina

Atrás da capela, havia um pequeno terreno onde a dona Angelina, com a devida autorização do padre, tinha feito uma hortazinha.
Acontece que nem sempre as coisa lhe corriam como ela esperava, já que os pássaros, juntamente com os gatos, os cães e as toupeiras lhe estragavam  o que ela lá tentava semear ou plantar.
Uns gostavam das sementes, outros das folhas tenras, os cães deitavam-se em cima dos alfobres acabados de colocar destruindo tudo, as toupeiras e os ratos roíam os tubérculos mais saborosos, enfim, o espaço tornou-se a alegria dos animais e o desespero da dona Angelina.
Era frequente ver-se ela sair pela porta dos fundos a ameaçá-los com o santo António nas mãos, ou a esfregona, pronta a atingir os que conseguisse apanhar.
O padre Libério já a tinha aconselhado a desistir, mas ela, teimosa, insistia que, se Deus quisesse, alguma coisa haveria de vingar, para dar aos mais carenciados da aldeia.
Um dia, enquanto passava a ferro o hábito do senhor prior, junto à janela, ao mesmo tempo que controlava os melros, reparou numa figura encostada ao muro, e que nunca tinha visto por aquelas bandas.
Desligou o ferro de engomar, cuidadosamente, pousou-o na tábua, e saíu de casa para se dirigir ao homem, com o intuíto de lhe perguntar o que queria.
A criatura repondeu ao seu cumprimento, muito amavelmente, um anjo,era o que parecia, com as suas vestes brancas.
"O que queres?" perguntou a senhora.
"Venho lembrar-te, mulher", respondeu a simpática criatura, "Para teu bem, e para o bem de todos os seres vivos que tão felizes são neste lugar sagrado, não ignores  a #quinoa!"
Felizmente que tinha uma caneta no bolso do avental  para lhe pedir um autógrafo, porque queria ficar com a recordação de ter visto um anjo ao vivo.
O anjo escreveu-lhe nas costas: "Felicidades para todos", e assinou: Anjo
Depois  despediu-se, deixando a dona Angelina a chorar de felicidade.








Xará

#Xará, o meu grande deus está
sempre ao pé de mim.
Creio na sua bondade infinita,
na sua existência etérea
circulando dentro dos homens bons.

Assim de repente,
vem ter comigo sob várias formas,
umas preso no vento, outras na chuva,
ou nos barcos de pesca afundados
no horizonte,
com os seus movimentos  tão longe,
que levam um tempo infinito a descrever.

Nada palpável me toca, apenas gestos nenhuns.

É
o som inconfundível  do amolador.

Nunca o vejo,
Apenas tenho vontade  de o ouvir
por aqui.

(Mas ir-se-á embora.
Saltará desta para outra invenção,
num ápice,
para um conto infinitamente mais poderoso
do que este,
com as palavras certas, no seu lugar verdadeiro.
Irá!
Às vezes, também acontecem coisas brutais,
vai procurar outros poemas mais belos
do que os
meus, eu sei,
em busca da tranquilidade.
Seja feliz.
Insistirei sempre em
inventar
outro homem e outra mulher,
até serem tantos que se torne
impossível ignorá-los.)



(Mais uma carta de amor,
pronunciou baixíssimo,
enquanto encolhia
os ombros displicentemente)

Não faz qualquer sentido,
os personagens abandonam-me
à procura de outros lugares sem caos.


Os cenários são-me lançados
na cabeça por uma força  desconhecida,
Há uma conjunção de enzimas
trabalhando em simultâneo
que ativam
os hologramas que me confundem,
e que esqueço pela manhã.

Um dia, lá para do fundo dos sonhos,
muito longe daqui,
pularei as rochas desiguais dos penhascos,
os penedos das ruínas de um velho forte
que desaba
e quando desabar provocará um ruído enorme,
mas,
já todos terão fugido,
só eu permanecerei no silêncio das rochas
que tremerão a meus pés,
provocando-me pavor.

Naquele tempo,
era habitual  percorrer as aldeias
com os meus bonecos, para os fazer rir.
Procurava um terreno favorável
Primeiro montava o cenário,
e  depois desmontava-o,
e depois partia para outro lugar,
atravessava a mansidão
dos pinheiros na beira de estrada,
onde me demorava propositadamente.
Às vezes parava
para partir pinhões entre duas pedras,
e  comê-los, um a um.

E o meu bom Xará acompanhava-me
naquela vida de saltimbanco,
espalhando a minha alma
pelo caminho.







quinta-feira, 4 de abril de 2019

mm

Lá para o fundo de uns terrenos, já no fim do casario que descia o monte alinhado em relação à  estrada, havia uma casa muito bonita, arejada entre o gradeamento de ferro forjado e verde, que mal tapavam ou protegiam as suas varandas estreitas, por todo o lado.
Via-se o milheiral até aos salgueiros quando penteavavm as suas grandes cabeleiras junto ao rio, debruçados sobre a água penteando as suas longas cabeleiras. a água que lhes servia de espelho.
Havia a solidão das grades de ferro, os cães zangados como não se zangam por cá.

Quando observei melhor, vi os salgueiros a pentearem as suas grandes cabeleiras lisas debruçando-se sobre o rio, e aproveitando a água como espelho, para lá dos milheirais dos lodeiros.
Os meus pés sentiram o poder da terra como se o tempo não tivesse passado por mim.
Lembrei-me do ferro forjado que encostava à barriga para melhor observação dos pássaros, para lá do rio, mas ainda hoje me parece solitário atravessar o pinhal dos fantasmas sossegados, ou ouvir o lobo na noite, entre  da madeira dos móveis e os ruídos incomreensíveis das telhas.

Chovia, assim como hoje.
Os salgueiros debruçavam-se
para, aproveitando a escassa
luz e o espelho que
lhes fornecia a água do rio,
pentearem as sua longas cabeleiras.

Encostava a solidão da barriga
ao gradeamento
na bela casa das varandas
que davam para os lodeiros verdes,
atravessava o milheiral com os olhos
até lá ao fundo, onde se penteavam
os salgueiros,
para os ver na chuva,
assim como hoje.