terça-feira, 30 de julho de 2019

Em dia de #Woodstock

Sentou-se no chão, no canto do costume. O tremendo cheiro que exalava, batia de encontro às pessoas que passavam na rua e, como um bomerangue, regressava em odores  de perfume. e aí sim, utilizava o seu terceiro ou quarto sentido, quando ele era prestimoso e agradável.
Tinha sempre o cuidado de não esticar as pernas para não fazer cair ninguém, e por isso as encolhia muito, passando os braços em volta delas, e apoiando a cabeça nos joelhos.
Ficava horas assim. Por vezes espreitava o boné virado ao contrário, e colocado do seu lado esquerdo, principalmente se ouvia o ruído inconfundível  das moedas de cinquenta cêntimos. Espreitava para confirmar, embora soubesse muito bem que era uma daquelas grandes moedas, conhecia-as todas pelo som.
Um dia passou por ali alguém maior do que a caridade a que estava habituado. Esse alguém reparou na sua mão direita, com o dedo anelar apodrecendo de volta da velha aliança, o anel que era testemunho de um tempo que já não existia, e que agora era apenas um foco de infeção.
Quando o corajoso transeunte se aproximou para lhe falar, não respondeu, não estava para aí virado. Concentrava-se no aroma de um caro perfume de mulher que lhe tinha chegado às narinas. Conhecia os aromas todos dos perfumes das mulheres que subiam e desciam a avenida, ouvia os seus saltos sincopados no passeio, entretinha-se a contar os passos de cada um, a adivinhar que tipo de sapatos usavam, de vez em quando levantava a cabeça para saber se tinha acertado, e depois voltava a metê-la entre os joelhos.
O homem insistia em levá-lo para ser tratado, mas ele, mais uma vez, não lhe respondeu. Levantou-se e seguiu mais uma curta viagem. Cismava já num outro local para se sentar onde, durante uns tempos, pelo menos, o deixassem em paz.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Queixume

Ainda nem os galos tinham começado a cantar anunciando a manhã, já Viriato da Silva estava prontinho para sair de casa. Andava há dias a preparar a mala para umas merecidas férias na praia fuvial de Vila Nova do Ai Jesus, local aconselhado pelos seus colegas de trabalho, que lhe afiançaram ser uma terrinha tranquila com recantos paradisíacos, junto ao rio, e com a vantagem de ainda poder dar uns mergulhos.
Tinham-no avisado de um único senão, o facto de, durante a noite, se ouvirem uns #queixumes, umas lamúrias cuja origem ninguém conseguia entender, nem habitantes, nem turistas, nem tão pouco as autoridades locais, muito embora já tivessem esmiuçado as margens do curso da água e as suas zonas limitrofes.
A verdade é que, para além do som desagradável e um pouco assustador, não acontecia nada, portanto, acabaram por abandonar as buscas e todos viviam felizes sem sofrer quaiquer consequências desse som horripilante.
Após duas horas de viagem, Viriato chegou ao seu destino. Estacionou o automóvel à entrada do pequeno hotel, tirou as malas da bagageira e dirigiu-se à rececionista que lhe entregou a chave do quarto.
Os seus aposentos ficavam no terceiro andar e tinham uma bela vista para os montes em frente, com o rio mesmo ali perto, com grandes salgueiros debruçados sobre ele e ainda um moinho de água desativado, que compunha o ambiente bucólico tornando-o numa bela e viva pintura.
Depois de um dia bem passado, mas acusando a exaustão de muitos meses seguidos de trabalho árduo e, também, do cansaço da viagem, Viriato da Silva comeu uma refeição leve e foi descansar.
Assim que se esticou em cima da cama, começou a ouvir um choro acompanhado de uns lamentos tão tristes que não conseguiu evitar sentir uma enorme angústia e desatou num choro compulsivo.
O seu desespero foi tão grande, que se atirou da janela o que o fez partir um perna e deslocar um ombro, pelo que foram chamados os bombeiros e o levaram para o hospital de Viseu, que era o mais próximo, e onde passou o resto das suas férias.

terça-feira, 16 de julho de 2019

O tempo

O #jornaleiro vai morrer, os livros vão morrer, com o tempo,
e com o tempo, o papel será fabricado apenas para embalagens
ou para substituir o plástico,
até uma nova promoção do plástico desta vez para salvar as florestas,
as que arderam, com o tempo,
aonde biliões de letras impressas também acabaram por morrer. e nunca mais ninguém as leu.
Ao momento, já podemos ver os nossos rostos,  velhos, muito velhos,
basta fotografarem-nos, usar uma aplicação que serve para o efeito, e eis que surge o futuro imaginado,
de um tempo anterior ao das cinzas a voarem sobre o mar,
que serão, um dia, lançadas das falésias.
Fica então o testemunho, num canto de um jornal sem importância, amarelado pelo tempo,
e utilizado para envolver serviços de chá, para que não se partissem com o tempo.
E sujas. Tão sujas e velhas, essas folhas, que nem se devem separar, como nos ensinaram, com o tempo, para não comprometerem a reciclagem.
E a louça antiga também irá para o lixo, por ser um logro que, afinal, não possui qualquer valor.

domingo, 14 de julho de 2019

Heroína (Iniciado a 14/07/2019 e acabado hoje, para Transgressão


O vício poderoso dominava-o até à total irresponsabilização dos seus atos. Já nem era, nem se sentia ele, embora fosse dele que nascia essa vontade irreprimível.
Olhou para mim com os seus olhos vítrios e iridescentes, de pupilas enormes. por onde não se perscruta nada porque é impossível atravessar aquela terrível barreira magnética que não permite que espreitemos lá para dentro, o que inevitavelmente afasta as pessoas, ao invés de as aproximar.
Andava como louco, em passo apressado, víamos a sua roupa movendo como se não estivesse ninguém lá dentro.

O homem vinha direito a mim, rua acima, os passos resolutos das suas calças sem ninguém lá dentro, não me deixaram dúvidas. Pareceu-lhe que eu tinha bom ar, e alguns trocos na carteira, talvez tenha sido  isso o que o fez aproximar-se
Enquanto olhava para mim, com os seus olhos vítreos e iridescentes, onde se não espreita por ser impossível atravessar aquela barreira magnética que, neste caso, afasta as pessoas em vez de as aproximar,

Talvez porque lhe pareceu que eu tinha uns trocos na carteira, e aspeto de quem lhe daria umas moedas, aproximou-se e olhou-me com os seus olhos magnéticos, cujas pupilas...

Um vício poderoso domina-o
até à total irresponsabilização.
Dirige-se a mim, resoluto
As suas pupilas aumentadas e magnéticas
não permitem intrusões,
e então não consigo espreitar lá para dentro.
Nada, não vejo rigorosamente nada,
É a minha roupa sem corpo que
anda pelas ruas.

Dirijo-me às pessoas na rua, resoluto, e com as minhas roupas sem corpo, subo e desco as as ruas.
Um vício poderoso me domina até à total irresponsabilização de quaisquer atos. Nem as pessoas me espreitam, como gostariam, e isso aborrece-as de morte, porque são intransponíveis as minhas pupilas aumentadas e magnéticas.
o que os afasta-os ao invés de os aproximar, e ainda bem, porque não sou eu,
nem sou eu, O Homem.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

#Festa_dos_Tabuleiros

Ainda não era dia quando Firmino Costa se levantou.
Foi à casa de banho despejar a bexiga e voltou a deitar-se.
Naquele sono leve da manhã, sonhou que alguém lhe arrancava o pé direito  o que lhe provocava dores atrozes, e é claro que, ao acordar, percebeu que tinha esse pé entalado entre a cama e a parede, e, com as voltas agitadas e inquietas que se viu obrigado a dar enquanto estava inconsciente, já o tornozelo tinha revirado em hélice, não sei quantas vezes, tal e qual como nos desenhos animados.
A mulher, que andava na lida desde cedo, chegou-se à porta do quarto e gritou baixinho três vezes, se é que é possível gritar baixinho, eu acho que sim, "Festa_das_flores! Festa_das_flores! Festa_das_flores!", como era seu hábito desde que tinham casado, num belo outono de prata, todos os dias bradava aquilo, uma vez à noite e outra vez pela manhã.
As crianças viam TV, com os seus biberões agarrados pelas duas mãos. Bebiam sofregamente, como fazem os bebés, pelo menos os filhos de Firmino assim faziam.
Ao espreitarem pelo canto do olho, viram o pai a coxear, a preocupação transmitiu-se ao líquido que ingeriam e cuja cor alterou completamente.  O que era branco passou a verde, e uns segundos depois amarelou. até o preto intragável se instalar em definitivo.
A vizinha bateu à porta, falaram todos um pouco, depois Firmino foi apanhar lenha em plena cidade. Não encontrou mais do que uns galhos imprestáveis, e voltou para casa aborrecido, nunca havia nada de aproveitável naqueles passeios debaixo das árvores.
Com tudo isto, fez-se tarde. Já a lua uivava pela noite dentro à procura dos meninos para os comer muito vivos, se é que posso dizer isto, porque, em boa verdade, ou se está, de facto, vivo, ou, de facto, se não está.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

#Drácula






A chuva intensa arrastou
consigo as vírgulas,
que ficaram caídas entre
as palavras
como barcos de papel
baloiçando na água ondulada.

Após o vento começar a soprar
e ele ter adormecido,
na cadeira ao fundo
do quintal,
sonhou que corria atrás das folhas,
porque não o largariam,
as folhas soltas,
ano após ano
entristecendo o seu corpo imortal?

A grande portada guinchava
e batia
com a corrente de ar,
e foi quando os pássaros teimaram
em iniciar
o regresso às suas casas.

Mesmo os que ficaram
abrigaram-se debaixo das telhas,
fechando os olhos,
e aceitando a solidão como o tempo
necessário,
até ao regresso do sol.