sexta-feira, 22 de maio de 2015

O míope

O miopezito lá ia, os olhos franzidos a protegerem-se do sol. E quando era preciso ler as letras pequeninas, lia o que os outros não conseguiam. O míope deitava-se, sob a sua janela de sótão, nas noites de luar, e beleza alguma apreciava, depois de tirar os óculos, os mesmos que tirava para ver melhor!
O miopezito estava escondido por detrás das suas lentes graduadas, fundos de garrafa, disfarçados por inovadoras formas de disfarçar fundos de garrafa, e os seus olhos eram muito maiores do que os que lhe vias, por entre os vidros convexos, sustentados por hastezinhas nas orelhas.
O miopezito, no seu mundo desfocado, transformava tudo em manchas, mas podia ler os mais pequenos rótulos, a informação mais escondida, o pormenor quase apagado, mas o mar era uma sombra,e a noite..., bem, a noite era conforme estivesse ou não com os óculos.
O miopezito tinha até uns grandes olhos de ver o mundo.
O miopezito foi à consulta, apoiou o queixo na maquineta, puseram-lhe uma armação enorme e complexa no nariz. O médico foi trocando lentes, sobrepondo algumas, até!
"E assim? Vê melhor ou pior? Que letra é esta?
"Mas eu lembro-me que era um A! E agora?"
Todas as manhãs o míope apalpava a mesa de cabeceira, e, a seguir, verificava o efeito da luz nas persianas. Não se pode dizer que o miopezito fosse um sonhador, ou poeta, porque não era. Só era o melhor a ler instruções de comida pré-cozinhada, e era o melhor a abrir muito os olhos, só para ver pouco ou nada!

terça-feira, 12 de maio de 2015

Os Peculiares. Epi. 7 Degustação

Nos últimos tempos, Elba Calhau não tinha outro assunto que não fosse a sua aproximação a Duarte Barroca. Desta vez confidenciava á grande amiga, Celeste Nebrosa _Até me deixou tirar-lhe unx pontux negrux, na praia!_
_ Hmm! A coisa vai avançada_ Celeste respondeu, indolente.
_ Vem! Encontramo-nux com elex à entrada do "Grossux Molhux", em Alfama_ Elba, nesse dia, até estava um pouco enervada. Tinha ido levar as crianças a casa da mãe, que lhe pareceu ter esta do a fumar coisas esquisitas. _ Ó mãe, estiveste a fumar um charro?_
_Claro que não, filha!_ E desatou a rir à gargalhada porque Elba tinha demasiada base na cara_ Uau! Pareces uma manequim, mas das de plástico!_
_Mãe, tu vê lá! Toma bem conta dux meninux !_ Vai descansada_ respondeu a mãe, ainda a rir, e de lágrimas nos olhos.
_O chef deste restaurante tem duas estrelas Firestone _ comentou Lurdes Vairada, após se cumprimentarem uns aos outros em frente ao estabelecimento.
_ Michelin, Lurdes! Michelin!_ Porfírio Metelo Anão emendou a amiga, impaciente.
_ Ou isso..., já viram o menu? _ E Lurdes aproximou-se do cardápio, colocado na parede, e preso numa caixinha de vidro. Os outros seguiram-na, formando um grupinho aconchegante. Juvenal Gadura iniciou a leitura da ementa:
-Leite azedo com molho grosso de nabo
-Perú desnorteado da Ibéria e batatinhas Dalai Lama
-Suco de sucos finíssimos
-Truta à caçador de perdizes
-Ovos de saguim bipolar
-Flan empinocado com framboesas
..... e por aí fora, uma enorme lista de coisas deliciosas.
_ Vamux entrar!_ e todos seguiram Elba até ao interior do restaurante.
_ Senta-te tu aqui, Gertrudes.  Nunca me sento virada para sudoeste! Não estou para sofrer influências negativas dos planetas a norte do oposto à lua cheia!_ A Celeste Nebrosa fascinavam-na esoterismos, e tudo o que fosse para além da compreensão do comum dos mortais.
_ Ó Celeste, não quero saber dessa merda! É uma cadeira e pronto!_ Lucas Murro, decidido, sentou-se.
_ Pessoal, adoramo-nux?_ Adoramos!_ e os copos, cheios com vinho finíssimo das adegas do " Monte da Avó Malandreca", tilintaram uns nos outros.
_ Olhe!_ Elba chamou o empregado, que se voltou, atraído pelo cabelo louro, e pelo decote arrojado_ Diga-me, como são ux ovux  D' Artagnan?
Elba fez um sorriso largo
_São ovos ovos abertos com a ponta de uma espada de samurai, cobertos com molho grosso_
_ Parece-me bem. Eu quero, alguém maix quer?_ e enquanto esperavam as entradas foram bebericando e conversando.
_ Já viste ali os ovos D' Artagnan?_ Adolfo Dias segredou a Porfírio, indicando a mesa ao lado_ Mais  me parecem ovos mexidos do almoço, com uma bosta qualquer por cima_ E o jantar decorria, num entusiasmo de conversas cruzadas.
_ É que eu faço retenção de líquidux!_ "Fazes, fazes!... E de sólidos também, um bocadinho!" Pensou Porfírio, que gostava de mulheres menos exuberantes, mas não disse nada, para não melindrar a amiga.
Do outro lado da mesa alguém comentava: Faz-me lembrar uma frase que li no outro dia: "Até as cavalgaduras têm direito à ternura!"_ Onde é que Leste isso?_ A Porfírio soou-lhe mal_ No Face, um amigo partilhou comigo.
Adolfo Dias resolveu também questionar o empregado_ Por favor, gostava de saber, este prato aqui..., as batatinhas Dalai Lama, como são?_
_ São batatas que estiveram em meditação no Tibete pelo menos cinco anos, e, já agora, esclareço-vos sobre o perú desnorteado da Ibéria. São perús enraivecidos em ambiente ibérico. É muito bom, e leva tudo um molho grosso por cima. A confeção é do mais alto nível, e servimos todos os pratos com fatias de pão rústico de cereais da lezíria.
_ É tão amável!_ Lurdes e Gertrudes Vairada adoraram o empregado, mas ele só tinha olhos para Elba Calhau, que, nesse momento, já estava a manter as devidas distâncias.
_ Adolfo, como extá a Alice?_ perguntou Elba rodando ligeiramente o corpo.
_ Ótima, obrigada_ e Adolfo fez o ar mais desanuviado possível tendo em conta as circunstâncias, já que Alice Mitério tinha ameaçado sair de casa, o que lhe causaria uma enormidade de problemas.
Porfírio Metelo Anão comia, pensativo."Bifes de perú com batata cozida e um molho asqueroso por cima", mas não disse nada e bebeu mais um trago de vinho.
_Eu já nem acho que nux adoramux ! Nóx amamo-nux tanto! E depoix o vinho, a deguxtação, a folia...., ux meux filhux ...! Ixto é magia!
_És linda Elba! Tens um coração enorme!_ e Celesta Nebrosa, com a unha pintada de negro, limpou uma lágrima da face da amiga.
No final do jantar, a sensível Elba, ainda de olhos húmidos, pediu a conta.
"É pá, tenho que pedir dinheiro à Alice enquanto é tempo, pensou Adolfo, ao mesmo tempo que consolava a colega, e Lurdes e Gertrudes Vairada exclamaram em coro: _ Foi caro mas valeu a pena!_.



quarta-feira, 6 de maio de 2015

Depois da noite

Dois turistas rebolaram borda fora de um barco, e foram parar ao hospital. Gostaria de reinventar a sua história, mas não percebo nada de barcos, e de turistas também sei pouco. Apenas os vejo, agitados, sob o sol de Lisboa.
Depois, perdoem, mas atirei o pensamento lançado em vôo, e, apesar de não perceber nada de barcos, fui, e irei, inevitavelmente dar ao mar.
Depois, não sei porquê, lembrei-me do bendito acordo, essa maldade, para quem sabe, e para quem não sabe de palavras.
Pelo meio escrevi aquela verdade verdadinha, "o amor como o sinto, verdadeiro, frágil, e incondicional ", e associei-o ao facto da vida ser igualmente vida, sem razão dos olhos, ou luz da existência. Terá é outro sabor!
Depois, senti o cansaço, apanhei a parte do ridículo, do homem a dizer ao médico que a "feze" lhe saía normal, e tive pena não sei de quê, e deu-me para ouvir os passarinhos pendurados na primavera das árvores em flôr, e, imediatamente a seguir, não gostei de ver os passarinhos aqui escarrapachados, mas tarde de mais, porque já estava escrito, indelével e bonito, e depois fui dormir!