terça-feira, 19 de julho de 2022

Betinha e Filipa eram irmãs. 
Apesar do parentesco tão próximo, eram pessoas completamente diferentes, não tanto no que respeita ao aspeto físico, no que eram, aliás, muito semelhantes, mas sim no comportamento. Tinham sempre opiniões  diferentes, sentidos de humor completamente opostos, Betinha era uma grande trombuda e Filipa ria-se por tudo ou nada, discutiam por qualquer programa de tv, ou #encruzilhada da vida, o que fosse que as levasse a tomar uma posição.
De forma que percebi de imediato, eu que as conheço muito razoavelmente, que haveria de ser quase  impossível entrarem em consenso a propósito de assunto tão delicado.
Combinámos um cházinho em casa delas, hábito que decorria com alguma frequência dada a proximidade que sentíamos umas pelas outras, e logo percebi, no momento em que Filipa me abriu a porta, que estavam a ter uma discussão cerrada.
Quando entrei na sala, Betinha esta a sentada num cadeirão com cara de poucos amigos.
_Vá, lá,_incentivei eu. _Contem-me o que se passa. Talvez possa ajudar._
Normalmente tentava não tomar partido algum, mas pareceram-me tão incomodadas, muito embora, claro, Filipa estivesse a fazer um enorme sorriso, só quem a topasse verdadeiramente sabia que os seus sorrisos não espelhavam a sua boa disposição, e Betinha "vestisse" aquela  cara de poucos amigos, o que também  não  queria dizer rigorosamente nada, pois fazia parte da sua maneira de estar, a verdade é que lá  consegui que expusessem, com algumas reservas, aquilo que as estava a afetar.
_Não temos nada para discutir!_declarou Betinha, irritada.
_Temos, sim!_ respondeu Filipa a rir._Tu é que não estás para aí virada. És sempre a mesma._
_Não sou!_
_És!_
_Não!_
_Sim!_
_Não!_
_Viram?_ fiz-lhes ver com a minha muita experiência  de vida. _Afinal é fácil de resolver. Ai, as meninas! Parecem umas crianças. _ 
E, após terminar o meu chá de doce lima, saí porta fora com a boa consciência de, mais uma vez, ter praticado o bem.



em dia de encruzilhada, mas tratam-se das recordações.

A carne escura e intensa pintada com o aroma do vinho e das folhas de louro 
E o aroma embatia nas paredes de pedra da cozinha e aí ficava preso, por umas horas, até desaparecer pelas janelas, muito longe do alcance das nossas pequenas narinas esfomeadas.




sexta-feira, 15 de julho de 2022

Atlântico Norte

O que me reteve
foi o pavão
colorido
pasmado em frente
a um canto
e abafando uma boa 
parte 
da melodia
que a hoya extraordinária 
cantava
através das suas lágrimas 
de cera.

Mais tarde,
agarrei nessa
pequena
situação inusitada,
que observei tão
pasmada como o 
pavão 
pasmado
que olhava para mim,
e fiz dela mais
um dia qualquer.

terça-feira, 12 de julho de 2022

#Zélia

Zélia, para não ouvir o choro insistente da criança, afastava-se da mãe e do irmão,  caminhando pelos montes de mato rasteiro e selvagem, que crescia pelas colinas, debaixo do sol.
Numa dessas tardes, em que já  tinha caminhado o suficiente para que a voz do bebé se tivesse dissolvido na atmosfera, a miúda embateu em qualquer coisa invisível, como se um vidro muito bem lavado e transparente estivesse a impedir-lhe o caminho.
Deu um passo atrás e tentou tocar em algo que não via mas que haveria de estar por ali.
Chegou as mãos à frente, bem abertas, e com elas sentiu, de facto, uma superfície lisa e aparentemente arredondada. Efetivamente, o que a impedira de prosseguir era uma edificação  de forma tubular, formato que percebeu após seguir as suas próprias mãos  que foram rodeando o vidro até completarem uma volta de trezentos e sessenta graus,  atingindo assim, Zélia, o mesmo sítio, que reconheceu pela colocação estratégica de alguns arbustos de estevas. 
A curiosidade não tem limites para uma criança e, numa atitude de reconhecimento, voltou a circundar o objeto, uma e outra vez, até comprovar realmente a sua descoberta.
Após meia dúzia de voltas, Julieta parou, baixou-se para perceber se aquilo estava enterrado na terra e elevou-se o mais possível pondo-se em bicos de pés e esticando muito os braços.
Não soube como fez, mas a verdade é que tocou numa ligeira saliência, que lhe deu acesso, como que por magia,  ao interior do tubo.
Estando lá dentro, a menina, sem qualquer controlo sobre o sua própria vontade, começou a elevar-se, muito rapidamente, até atingir o alto da torre,  longe do chão umas boas dezenas de metros. 
Havia, no centro do compartimento, sem ângulos visíveis em redor, só transparência e luz, uma cadeira branca. Zélia sentou-se.
Não  havia mais do que a paisagem absurda das videiras alinhadas, que desenhavam correntes verdes no chão, quadrados de telha vermelha formando, ao fundo, retalhos de vários tons, o rio tapado, na grande maioria do seu percurso, por salgueiros e mimosas, enormes monstros que se moviam devagar enquanto a brisa circulava por eles. As águias sustinham o vôo e planavam à sua frente, até mergulharem em direção ao solo, em busca de alimento.
Pela janela, aberta de par em par, Zélia viu o irmão que adormecera finalmente e a mãe preparando a refeição. E foi quando abriu os olhos, porque adormecera, também ela, debaixo de um grande cedro, enquanto as formigas caminhavam pelos seu pés nús, acordando-a com uma leve comichão.






terça-feira, 5 de julho de 2022

Um Tornozelo Atrasado.

Quando a idade o atingiu, já como um peso pesado nas costas, nos braços, nos tornozelos, Jacinto criou o estranho hábito de vasculhar o lixo.
Tudo começara num fim de tarde em que fora despejar o seu, gostava de o fazer na frescura daquela hora, quando todos já  se encontravam recolhidos nas suas casas e na azáfama do jantar, e também era bom porque acabava por dar algum movimento ao corpo, para ele não  se dasabituar.
Vira, ao abrir o caixote carregando o pé no pedal, um saco com velhos brinquedos sem préstimo, e achara graça ao marinheiro sem um olho, a dois cubos coloridos e inúteis, um vermelho e o outro amarelo, tão amarelo que lembrava as matizes do fogo, uma cor que valia a pena preservar.
A partir desse dia, sempre que lhe era possível, evitava fazê-lo se estivesse alguém  a passar, por exemplo, ou não  arranjasse justificação  que dar a si mesmo para se dirigir aos caixotes, Jacinto agravessava a estrada e caminhava o resto do passeio até lá chegar. Depois levantava, com a ajuda do pé direito, a grande tampa verde, e espreitava, com olhos perspicazes, os sacos e saquinhos que lá  estavam dentro. 
Um saleiro substituído, uma colher de pau, uma lista de compras, "cebolas, manteiga, leite..."
Por vezes, quando chegava e havia espaço na mesa da cozinha, o homem admirava os obectos que acabara de expor para si mesmo, olhava-os como troféus, mas se chegasse cansado dos degraus imensos até ao segundo andar, ou o tampo de madeira transbordasse de coisas, deixava por ali o que recuperara, assim, tal e qual vinham da rua, dentro do plástico desbotado do saco azul.
Eu via o homem, daqui da janela, sem que ele se apercebesse.
Olhava-o com a curiosidade com que olho para toda a gente, via-o nos seus processos difíceis de remexer o que estava no lixo e de lá sacar o que julgava fazer-lhe proveito, e levar.
Dias depois, voltava a acontecer e eu olhava, com um ombro encostado à esquina da parede e com a atenção de sempre.











domingo, 3 de julho de 2022

O rapaz divertia-se a ver como atuavam as três luas, projetando o seu corpo no chão.
Observava o seu próprio movimento através das sombras escuras que partiam dos seus pés. A maior e mais sombria prolongava-se pela terra redonda até  não se ver mais. As outras acabavam logo ali, uns míseros metros à frente. Se acenava um pouco com uma das mãos, logo elas se movimentavam, as três mãos direitas, mais ou menos ampliadas, conforme a distância e a inclinação.
A miúda chegou  e olhou-o por alguns segundos. Percebeu, sem haver necessidade de pronunciar quaisquer palavras, o que ele ali fazia, virou-se ligeiramente e impulsionou o corpo para se sentar ao seu lado.
Após sentada, ajeitou-se um pouco, para o equilíbrio ser perfeito, fixou as mãos nas  pedras e encostou, como ele, os calcanhares às reentrâncias do muro.
E assim ficaram, ligeiramente inclinados para a frente, sem falar. 
A dimensão  dos seus corpos vazios e escuros bailava no terreno plano, ao som do silêncio dos sítios por onde não passa ninguém,  era a  água que corria rio abaixo, onde peixes prateados dormiam nos cantos das lagoas ao fundo, cobertas de flores de lótus.
Havia três sombras de salgueiro na superfície do espelho que formava o caudal do rio, esse caudal que depois se  alongava na foz em vários braços. 
Mantiveram-se quietos até que  se cansaram de  dançar no chão,  o que aconteceu logo assim que nasceu o sol. Um sol, apenas um, para um luar de três luas, que lhes  agitou  um sonho, fazendo com que se esfumasse  das suas memórias.