quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Jasper

A Dona Clotilde tinha imensas alergias. Podia ser o polén das flores, os ácaros do colchão, um simples morango, o que é certo é que passava o tempo a espirrar, ou com pequenos eczemas pelo corpo fora, ou lhe caía o cabelo como se não houvesse amanhã, ou ainda, tinha comichões terríveis e via-se obrigada a tocar castanholas para acalmar.
Eu, que vivia ali ao lado, convidava-a bastas vezes a beber um chazinho, e, se viesse pela hora do almoço, partilhávamos as minhas papas de esparguete com vinho tinto.
Um dia, estava ela sentada no sofá da minha sala, lembro-me que, entretida a arranhar os braços do dito, até se esqueceu de tirar o chapéu em forma de cabeça de unicórnio, um modelo muito em voga naquela época. mas como ia dizendo, conversávamos calmamente sobre desastres mundiais e outras animações, quando ela começou a sentir-se esquisita.
"Não me digas que fizeste chá de #jasper, sou alérgica a isso!" e começou a esbugalhar os olhos, de tal forma que lhe saíram das órbitas até ficarem mesmo ao pé de mim, junto aos meus.
"Ai o jasper, desculpa, já me tinhas alertado!"
Os seus pés cresciam desalmadamente, já tocavam as paredes, e eu já não sabia onde havia de me meter.
Vinte minutos depois desta agonia, a boa da Clô começou a acalmar. os seus orgãos começaram, lentamente a voltar ao normal, e pude sair detrás do armário.
Escusado será dizer, que chá de jasper, nunca mais.






quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

#Insularidade ou, "Seja Lá o Que Isso Queira Dizer"



Após uma noite em que as águas
extravasaram pelas margens do rio
e as colinas se moveram levando com elas
a iluminação de milhares de luzes amarelas ,
ou sei lá eu quantas, é perfeitamente natural
que o dia tenha amanhecido desumano,
com os raios de sol a atravessarem a atmosfera densa,
tornando metálica a superfície das coisas.

.Só as pessoas se mantinham cor de rosa,
com as suas veias mais ou menos sinuosas,
a marcar de azul o percurso do sangue.

As gaivotas, pois, as gaivotas presentes em todo o lado,
são as gaivotas atrevidas,
procurando o calor das sobras da cidade viva,
uma, inclusivamente, atravessou-se à minha frente
com o bico cheio de comida,
enquanto amanhecia devagar.

(Saltou uma bola de criança para o meio da estrada.)

Depois sentei-me numa esplanada a olhar o espelho de água,
seja lá o que isso queira dizer,
enquanto rodava entre os dedos uma pequena tampa,
e tentava, desesperadamente, construir mais um poema,
sem conseguir.





domingo, 24 de fevereiro de 2019

trinta anos, jornada três

Já lá vão trinta primaveras acabadinhas de completar,
e mesmo assim, nesta altura do ano,
as putas das flores sempre  espantam Bárbara com a sua profusão.
Escondem-se no fim do inverno, atrás dos grandes troncos,
ou dos galhos mais pequenos,
do lixo normal,  acumulado em cantos esquecidos
que a chuva ajuda a produzir,  quando acontece corrida a vento,
cíclica e cinzenta,
e depois basta que os dias cresçam dentro das barrigas
das suas jovens mães,
se tornem maiores e mais luminosos,
que no tempo certo elas florescem,
e não há como desencantarem quem as viu.
O que faz Bárbara quando
debruça os brincos compridos sobre a terra?
Observa o seu crescimento incompreensível, e espera, também,
os  segundos necessários para que
os pigmentos coloridos das suas pétalas,
sejam borboletas que esvoaçam à frente dos seus olhos,
e cujas asas lhe murmuram  ruídos,  próximo dos seus ouvidos.
e lhe rasam o cabelo revolto, onde teimam em se prender.
A cabeça de Bárbara recua, ou avança,  
ao tempo dos morangos, veste-se de violeta sem motivo aparente, 
e vai, simplesmente vai, como acontece  às sementes que vão caindo.


sábado, 23 de fevereiro de 2019

Não me apetece mesmo, que não queira já cá estou, de cigarro na mão e outros pequenos prazeres.

Gostou do gato no engate outro dia de manhã
Amava água com borbulhas de gáz, que, quando estavam vivas, iam pelo copo acima com alguma rapidez, Vinícios cheio de vícios é o que tu és, entra as videiras na vinha, vinham de lá violentos,

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Dicionário

A Albertina só adormecia depois de a mãe lhe ler uma ou duas páginas do #dicionário.
Quando a mãe, por esta ou aquela razão, não estava em casa, e quem ficasse a tomar conta dela  por algum motivo não soubesse ler dicionários, a miúda tinha uma espécie de ataques que culminavam com o rodar do corpo como se estivesse preso num  eixo central, e por vezes, levantava vôo atingindo uma velocidade indescritível.
O cuidador teria que ter sempre a atenção de fechar as janelas e as portas para que a menina não saísse como um foguetão ou um parafuso voador, conforme a imagem que se preferir, e atingisse alguém lá fora, como aliás, já tinha acontecido.
Quando o sr. Januário, levou com a miúda na cabeça, fez um enorme escândalo.
Toda a gente lhe tentou explicar que a criança não tinha culpa nenhuma, que era uma doença rara que nem os médicos sabiam tratar, mas ele foi mostrou-se intransigente, queria uma indemnização por danos corporais e exigia, também, que lhe fosse facultada uma cabeça nova, e   que lhe retirassem aquela, colada à pressa, e que, com o incidente, tinha ficado espetada na vivenda da dona Aurora, o que, obviamente, a tinha  deixado muito danificada.
Felizmente, hoje, Albertina, já adulta, mantém apenas uma  sequela inofensiva e sem grande importância, e que é a de fazer sapateado enquanto conversa com as pessoas.


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

No Bairro do #Burel

Apesar da barraca ser 
barraca de chapas de metal,
o que se mostrava em evidência 
era o tufo de margaridas 
que saía de um alguidar azul.
De resto,  também eram bonitas, 
imponentes, 
as outras grandes casas 
viradas para o rio, 
com os terraços pendentes, 
e as trepadeiras enrolando nos 
chapéus de sol.





quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Dia de S. #Valentim

Pessoas passam com flores.

Apressam o passo para não as estragar ao sol, mas, com isso, obrigam-nas a movimentos disparatados
que agitam os seus corpos leves, de pétalas naturalmente débeis, e elas chegam ao destino completamente descompostas.

Perdem a vivacidade, o orgulho de dizer aos outros,
"Nós somos belas flores, basta um relance de olhar".

Ainda assim, as suas cores e formas são capturadas, como que presas numa velha e resistente teia de aranha, com gotas de orvalho poeticamente colocadas pela madrugada e, felizmente, imortalizadas numa fotografia.

Por isso as lembranças que existem dentro de cada cabeça, tão centradas na dádiva do amor, acabam por cair no esquecimento, ao percorrerem aquele circuito habitual.

Vão com os ramos nas mãos.

Vão pela correria fora, nem se lembram da fragilidade, ou da delicadeza do que transportam submersos nos mares de automóveis, nos quilómetros  de escadas rolantes,
por onde descem, estáticos sobre os degraus,



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Em #Órbita

Tão cedo acordou
que o tempo lhe
pareceu
tanto,
ainda havia espaço
para
palavras.
Não quis incomodar-
-se
com a coerência das
coisas,
não era por aí que
resultaria o seu
verbo.
Se levasse alguém a
acreditar,
uma só pessoa que
fosse,
que  tinha uma
forma e
um corpo,
mesmo que esse
alguém
vivesse na
rua,
com os seus piolhos
invisíveis,
e a sua sujidade
fedendo na
esquina,
nem era isso que
interessava ao
poema,
só o seu coração
igual.



terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Mosca

#Moscas e outros insetos pavorosos voavam entre o exterior e o interior da casa. Passavam pelas janelas partidas, pela porta escancarada, por onde entrava também o vento, depois de chegar à varanda, a assobiar.
Ia começar uma paciência solitária, em cima da mesa da cozinha, quando deu pela chuva a aproximar-se e foi apanhar a roupa para que não ficasse encharcada.
 Quando abriu a porta, as cartas que estavam em cima da mesa voaram, primeiro o ás de copas, depois o três de paus e, finalmente, o rei de espadas, impulsionados pelo movimento do ar, aproveitando as suas correntes.
 O ás de espadas ficou preso na ponta do tapete, mas, ao fim de algum tempo, lá conseguiu prosseguir. Devagar se vai ao longe.
A roupa enrodilhava na corda e a velha equilibrava-se na corcunda para a desenrolar.
Na mão, levava o saco das molas, que agarrava com os dedos ossudos,
Quando entrou, encostou o ombro ao vidro, para ajudar com o peso do corpo a contrariar as rajadas de vento que teimavam em manter a porta aberta, a grande porta que chiava.
Havia dejetos, restos de letras que já não serviam para nada, havia larvas que trepavam as paredes, devagar, sem medo de serem apanhadas pelo bico do pássaro.
Até as  águias passavam de vez em quando sobre a cidade por mero engano, levadas pela ventania e pela curiosidade. (Mas também, vivendo na ignorância não havia que ter medo).
O chão de mosaico ficou ensopado, as embalagens vazias absorveram a toda água possível até atingirem o  ponto de saturação, não impedindo, portanto,  que, com a ajuda das caleiras sujas,  ela se acumulasse nos desníveis causados pelos anos.
O quatro de ouros desapareceu por entre as grades de ferro, e nunca mais o viu.
Havia folhas de camélia abandonadas pela casa toda, ou mesmo as suas flores secas, ou mesmo os três gatos empoleirados nas costas do sofá.
Sobre os livros, as aranhas nos cantos mais altos, supervisionavam a mulher que atirou o monte de roupa para cima de um um sítio qualquer, mas ela resvalou e foi parar ao chão.
Um dos gatos aproveitou para se deitar lá em cima e se aconchegar nos lençoís debotados, acabados de lavar.



raiva rascunho

Aquela raiva de não poder usar todas as palavras ao mesmo tempo para que se formasse uma grande esfera enrodilhada, e com a pressão exercida nesse tecido compacto e tridimensional que se formou,
por consequência tinha que descrever o impossível e aproveitou.
E então o que era, apenas a superfície sobrevalorizada das coisas, a parte de fora que escondia a ocacidade do interior.
De súbito, deu-lhe uma raiva de  não poder ver o espectáculo, o homem suspenso no céu, era só assistir a esta postura parada e

domingo, 3 de fevereiro de 2019

O sol Encandeante na Estrada

O sol encadeante na estrada,
batia do lado esquerdo
tropeçava no asfalto
abrilhantava tudo
mesmo que a humidade das casas
como desistências de subúrbio
bastava ser o gato das botas para,
numa só passada, chegar até lá,
onde posteriormente se instalava
numa das suas sete quintas de betão.


Era o mesmo que ser o gato das botas
que numa só passada percorre  quilómetros
de distância
e depois lá fica, instalado,
e desistindo.



sábado, 2 de fevereiro de 2019

Um rascunho qualquer, depois se verá

Deu um murro na mesa.
Por isso que o seu corpo vivo continuava a deslumbrar.
O vento fazia correntes de ar debaixo das portas.
nada a dizer, nada a dizer sem me dizerem o que diga, o que conte, ia a velha  falando com os seus botões.. Saíu de dentro de casa com os pés frios, as mãos brancas e enrugadas sobre a pele.
Os seus dedos compridos pareciam garras, os dedos compridos com as unhas amarelas.
As cartas voaram por causa do gesto brusco e da movimentação do ar, lançou-as à parede e a seguir arranhou a tinta o mais que pôde, Não podia gritar mais. era um cato que pendia, uma varanda com azáleas e camélias brancas que ficavam, um sexo desconhecido, por amor à vida,  uma melodia impossível.enrolada nas cordas nodosas do tempo..
Apanhou a roupa do estendal, o vento que entrava pelas portas era o mesmo que corria lá fora tão intensamente que tudo se virava do avesso, numa confusão de molas de todas as cores e a mulher viu-se aflita, dobrada assim pela cintura sem conseguir mexer-se.
Lá em baixo a vizinha esganiçava a voz, mas o vento, levava na mesma e felizmente,  o seu tom irritante para longe.
Se não a percebo, o que quer ela? resmungava enquanto desenrolava, desenrolava debaixo da ventania.
O ás de copas instalou-se aos seus pés,  em frente ao vaso vazio, à espera de inquilinos, vinha do chão da sala, numa corrida louca, "Também tu para me enfernizares", as folha soltas esvoaçavam em volta do seu corpo instável e fraco. as folhas e as cartas, o três de paus, o cinco de ouros, o rei de espadas.
O rei de espadas, estav febril e pálido, mais muito mais musical do que possamos imaginar.
Entrou a custo, a porta teimava em não fechar com a força da natureza a empurrar a sua debilidade.
e ela do outro lado, fazendo força, encostando-lhe  um ombro e utilizando o peso do corpo.
A mulher foi ao quarto, atirou a roupa para cima da cama. mas caíu alguma , e o gato, atento à roupa lavada, aproveitou, e deitou-se sobre ela, construindo uma espécie de tenda.










sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Inundação

Foi a #inundição que obrigou o poeta
a fazer grandes poemas
e a ter sonhos pequenos,
ou a ter grandes sonhos
e poemas pequenos,
imersos.
A água arrastou a tranquilidade
para longe,
já o caudal do riacho não levava
os patos em passeio
seguidos dos seus filhos.

Só no cimo da vila
a tragédia  não devastou,
lá no alto,
onde estava a fonte,
ou o banco sombreado
pela oliveira,
e onde tinha gravado o seu nome
irrelevante e abstrato,
e que pintaram de novo.
Mas a tinta líquida,
e de secagem rápida,
preencheu todos os sulcos
e ranhuras.
e, num ápice,
tornou homogéneo
o aspeto da madeira.

Mergulhou nas entrelinhas.
Lembrou-se dos anjos
que intervinham
de noite,
rodeando as camas,
das palavras que nem procurava,
mas que vinham ter com ele
por vontade própria.

Os corpos inventados surgiram
á superfície, boiando
numa ondulação
intensamente azul
que não conseguiria voltar
a escrever,
e ficou imóvel, observando
a folha perene jazendo
numa poça de lama.

Os peixes rodeavam as pessoas,
estáticas e verdes,
e, enquanto as algas ondulavam,
as suas bocas fechadas produziam
sons inaudíveis
que atraíam os golfinhos.

O mar regressava invadindo
o que era seu.