sexta-feira, 21 de abril de 2017

Otomanos (Encic.)

Alguns homens desse povo de que falamos, viviam dentro dum livro de história universal, numa prateleira de sala. À noite, quando toda a gente dormia, saíam do livro e iam dar um passeio. Voltavam ao anoitecer.
Acontece que numa noite se enganaram e, ao regressar, meteram-se dentro de um livro de culinária.
A mãezinha, depois da cozinha arrumada e tudo limpinho, passou as mãos pelo avental, e procurou no livro a receita de entremeada que queria preparar no dia seguinte, com... o intuito de verificar se tinha todos os ingredientes.
Qual não é o seu espanto quando vê na fotografia da página vinte e três, dois #otomanos a espreitar por trás de uma chávena.
A senhora, que não bebia, nem fumava, nem comia qualquer espécie de cogumelos, precisamente com medo das alucinações, percebeu que só podiam ser coisas da sua cabeça e resolveu, conscientemente, tomá-los por azeitonas.

Roma (Encic.)

Uma amiga minha, que vive em #Roma, conta-me que é uma cidade muito perigosa, e, na verdade, um conhecido nosso foi a Roma e desapareceu completamente.
Chegou ao aeroporto, parou por uns instantes, muito pálido, as pessoas até lhe perguntaram se se estava a sentir bem, às tantas no lugar dele ficaram só um fumozinho em hélice e os dois sapatos.
Uma senhora, também, lá em Roma, engasgou-se com um caroço de manga, ao princípio nem deu por isso, mas depois começou a sentir uma impressão, e morreu logo ali, esfaqueada por dentro.
Isto faz medo.

SHAKESPEARE 1 (Enc. )

Ia, no comboio para Leiria, a ler #Shakespeare, muito direitinho, quando o puto do banco da frente lhe deu uma canelada.
Sem querer, claro!
Pousou o livro.
O menino vinha a mexer as pernas à maluca, desde que se sentou ao colo da mãe, e aqueles pequenos pés, adoráveis e irrequietos, com botas de sola de couro, para causar bom andar ao pirralho, acertaram-lhe no joelho.
É normal. E previsível, também, já que ele, atento, vinha com um olho no puto e outro no Rei Lear desd...e o Entroncamento.
Cuidado com os teus pezinhos.
Mas a mãe não gostou do reparo, e eu acho muito bem.Quererem cortar ao seu filho, inocente, a plena liberdade de mexer as pernas!
E então, para a proteger a criança, aquela mãe apertou-a num abraço muito forte.
Um pequeno grande gesto

SHAKESPEARE (2) (Encic.)

As caras contraíam-se em trejeitos, e as bocas comentavam baixinho, " ele nunca leu #Shakespeare".
Sorrisos de orelha a orelha, expressões que não enganavam, irónicas.
Cumprimentavam, diziam boa noite em movimentos lentos, copo na mão, e repetiam entre dentes, sussurrando, "ele nunca leu Shakespeare".
Lá fora alguém fumava, a noite a pôr-se, a beata atirada para o chão, apagada pelo rodar do pé, pelo bico do sapato, e a perguntarem um ao outro em surdina, "mas nunca leu na...da"?
"Nada..., nunca"!
Os semblantes preocupados, as mãos nos bolsos com ligeiras compressões dos músculos, e, por entre um ou outro átomo de perfume vaporizado, um suave aroma a tabaco, agradável.
A noite foi passando, grotesca.
Os olhos vítreos do álcool, a roupa desalinhada, e, sobreposto ao ruído, gritado até, ou nos cantos caídos, com o queixo entre os ombros, articulando devagar, sílaba a sílaba, "ele nunca leu Shakespeare"!

sábado, 8 de abril de 2017

Mar (EI)

Deus uma vez chateou-se, agarrou numa palhinha, e de raiva bebeu o #mar todo que havia no mundo.
Achou-o muito insonso, e então, quando já estava menos irritado, voltou a encher os buracos que ficaram, mas adicionou um pouco de sal num jarro de enormes proporções, e cheio de água divina, que tinha preparado para o efeito.
Está visto que não correu bem. O que dizem os entendidos é que há fortes probabilidades de, por engano, ter usado sal marinho que é muito mais forte que o refinado.
O que é certo é que toda uma raça humana, sem exceção, acha a água demasiado temperada

Nódoa

Eu, que sou dona de casa já lá vão trinta anos, sei bem como tirar qualquer nódoa, por muito difícil que possa parecer.
Não é.
Agarra-se numa tesoura e corta-se essa parte do tecido.
Se não gostar do aspeto final, e eu acho que vai gostar porque a peça fica limpíssima, sempre pode cortá-la às tiras, ou, eventualmente, fazer uma fogueira na varanda para a queimar, juntamente com outras coisas que lhe apeteça na altura.
Bom trabalho

Quaresma

Foi precisamente num período de quaresma que, estando de visita a uma família dos meus conhecimentos, muito religiosa, presenciei o fenómeno mais bonito que vi em toda a vida.
Conversávamos na sala, eu, a matriarca, a D. Ressurreição dos Santos, o filho, a nora e os seus dois netinhos, quando me apercebi que algo se estava a desenvolver lentamente nas costas da velha senhora.
Umas asas!
Após um tempo de espantosa mortificação para todos, a velha elevou-se no ar com a graciosidade própria dos seres alados.
De seguida, e é sempre comovente a inocência das crianças, um dos pequenotes perguntou-lhe se ia dar uma volta, e ela, com voz de anja ou coisa muito parecida, ordenou apenas que lhe abrissem a janela, e lhe apanhassem uma das pantufas que lhe tinha fugido do pé.
Nunca mais a vi!

Representação

Entrava, não sabia como
pelo canto da varanda
sentava-se na beira de um vaso
a apreciar o sol
por entre as sombras de odores....
Era um recanto encantado
ou então era o jasmim
inebriante e branco, a subir...
O gato saltava e detinha-se, imóvel
onde o parapeito acaba
observando o enchimento vagaroso
dos plátanos,
ambos aguardando pela hora
de representação das flores
tantas brancas, tantas rosa
tantas frésias cor de fogo.
Pois se estivesse concentrado
no momento certo, 

margaridas e violetas
iniciariam o espetáculo
cantando em coro.

Semana (EI)

Espantoso!
Amilcar #Semana
é irmão da própria mana.
Ninguém diria,
filhos de mães diferentes...
sobretudo nos dentes
mas têm a mesma tia
ninguém sabia
pois ele é esbeltissississimo
e ela uma matrafona!
Quem me contou já morreu
qualquer coisa que comeu,
finou-se!

Tequila

O gato sentou-se na esplanada e pediu: "Uma tequila, por favor"
"Desculpe mas não servimos gatos. O sr. Gato não viu o letreiro lá fora? Proíbida a entrada a animais domésticos."
"Animais domésticos? Desculpe mas eu estou completamente emancipado! O meu dono foi-se embora, e eu entro e saío por uma fresta da janela e como o que encontro por aí, ou o que caço. Às vezes mendigo uma moeda, as pessoas acham graça ver um gato a pedir esmola, e ainda faço um dinheirinho. Depois venho beber qualquer coisa. Nunca tive problemas!
A propósito, perdi os meus óculos de sol. Não os deixei cá, por acaso?"
O empregado ficou sem resposta. Foi chamar o patrão.
"Está ali um gato que fala e quer beber uma tequila! O que faço?"
"É o bigodes. Mas não pode beber álcool. Serve-lhe um chá de limão."

Universidade (EI)

De vez em quando, em Lisboa, passo por um grupo de estudantes nas suas praxes.
Os últimos, nunca sei a que #universidade pertencem (distiguem-se dos outros transeuntes pelas suas capas negras, mas acabam por ficar todos iguais), obedecendo a dois mentores que se encontravam de pé, faziam flexões no meio da rua.
Os primeiros gritavam: "O que é que vocês são? O que é que vocês são? O que é que vocês são? ( tudo o que diziam era repetido três vezes. Talvez, quem sabe, o prognós...tico de uma aprendizagem feita assim. Repetir, repetir, repetir). E os outros respondiam em coro: Somos anormais! Somos anormais! Somos anormais!
" Chega! Lamber! Lamber! Lamber!
Perante esta nova ordem, levantaram-se todos e foram lamber a parede mais próxima.
Tocou-me. A alegria e satisfação de todos era comovente.
Eu própria, influenciada por toda aquela jovialidade, aquela intelectualidade e saber latentes, saudades dos meus tempos de faculdade, e uma certa inveja, confesso, uma necessidade de demonstrar fazer parte integrante desta sociedade intelectual ativa, que é o que faz avançar o país e o mundo, cheguei à zona da Baixa, e comprei um gelado, que comi orgulhosamente.

Vincent (EI)

Nada de irreal
ou absurdo
em fazer o que não está feito
apesar de uma vaga ideia
da impossibilidade...
de juntar no mesmo texto
o #Vincent,
o Van Gogh, ou outro,
e aquela caixa oval
sentada numa cadeira
e que guarda, imagine-se
um velho chapéu de coco.

Vincent (EI)

Tanta benevolência para com os artistas que saem um pouco da norma, explicações detalhadas sobre as suas técnicas ou sobre o seu "olhar o mundo",e que nos ajudam a perceber as suas obras, como acontece, só para dar um exemplo, com #Vincent Van Gogh, e ninguém, ninguém entende a distorção da face da estátua do Cristiano Ronaldo, que parece ter saído de uma reconstrução plástica, depois de um acidente de automóvel, ou talvez acometido de uma doença do sistema nervoso central.
Um dia comprenderemos

Amarelo (penso que já consta)

Não podia ter corrido de outra forma.
O sol oferecia uma enorme quantidade de luz
a passar por entre as folhas das árvores....
E elas,
em fase de ficar nuas.
Antes,
antes da nudez completa,
expressavam-se nas mudanças de tom
transformando copas verdes e exuberantes
em imagens #amarelas e castanhas.
Não podia ter corrido de outra forma
ofuscado pelo dia radioso
absorvido pela parte viva do corpo
puxava para si o brilho de tanto mar ali perto,
mas qualquer mar com este sol seria assim.
Antes,
antes da nudez completa,
não podia ter corrido de outra forma,
ficaram pernadas e galhos cor de terra
virados, como grandes braços, para cima.

Bordado (EI)

Algures entre a Serra da Estrela e a Serra do Caramulo existe um sítio, no topo de um pequeno monte, que se chama #Bordada.
Durante muitos anos foi o local da única paragem de autocarro que dava acesso a três ou quatro aldeias de granito, perdidas no meio daqueles vales.
Mais perto era ir até à vila, através dos pinhais, a pé.
Para além de que poucos carros havia por ali, nem todos se atreviam por aquele caminho abaixo, nada apropriado para automóveis que mal passavam p...or entre as árvores com as suas raízes selvagens, e que deslizavam pelo chão inclinado, coberto de caruma.
Às vezes, esperava eu naquela janela de sótão, mesmo por baixo do bico do telhado, a ouvir ao fundo os cães a ladrar ou um motor a puxar a água de um poço.
Espreitava atentamente aquele pequeno troço visível, já mais próximo do rio, para ser mais precisa, colado a uns campos de milho.
São os lodeiros, pois é. Choupos e sabugueiros, e as noites com o maior número de estrelas que já vi.

Elixir

Sombras de luz inclinada
nos frascos  de marfim
Rosáceas na face espantada
o pitoresco de mim.
Nada para dizer...
nem de outra forma
nem assim.
A palavra desfeita em letra
caída aos meus pés
só poema sem fim.

Felicidade (EI)


 uma coisa tão simples.
Uma poça de água,
e nela refletido
o resultado...
de um enorme eclipse parcial
enquanto lá dentro
rodava, vagarosamente,
o movimento ondulado do céu.
Foi um acaso,
feliz e agradável,
o que colocou dois olhos
matemáticos
naquela diagonal.

O gozo (EI)

Um grupo de idosos do lar "O #Gozo do Vovô", resolveu criar um concurso que consiste em pular cercas na Lezíria.
Os idosos colocam cercas e outros obstáculos espalhados por determinado percurso, normalmente o local escolhido é o Alentejo, pelas suas características, e de tempos a tempos reúnem-se neste evento.
As regras são simples. Pular as cercas a correr e ver quem chega primeiro.
Este ano, o primeiro lugar foi para a equipa de " A paz dos Ossos", que se revelou muitíssimo bem treinada pela cuidadora, a D. Encarnação Malvada.
Em entrevista, Malvada mostrou-se satisfeita: "Trabalhámos para isto. Os meus idosos são dedicados. Basta eu dizer, salta, e ele saltam, alguns atingindo, já, alturas consideráveis", revelou, falando por baixo do farto bigode.