quinta-feira, 28 de julho de 2016

Questão ( Enc. Ilustrada)

O cientista estava debruçado sobre o computador. A toda a volta repousavam folhas de papel, amachucadas, como prova da sua incapacidade de resolver a questão. Também no ecrã estava escrita aquela igualdade certeira, aquela verdade absoluta. Fazia uns dias que qualquer coisa no seu íntimo o tinha alertado para uma possível incorreção.
Dois mais dois igual a quatro! Há aqui qualquer coisa que não está bem. Surgida a dúvida, os dias seguintes foram dias de desassossego, mal dormiu e mal comeu!
Ora bem, dois..., mais dois...., igual a quatro!?!? Não, não pode ser! Ora bem, dois e dois...! Onde é que está o cinzeiro?
Não bate certo, esta igualdade. Pelo menos no meu espírito, esta inquestionável equação terá uma qualquer variante.
O ambiente era pesado. O fumo saía-lhe filtrado dos pulmões, e juntava-se ainda espesso, numa atmosfera densa, ao que subia do cigarro aceso.
Dois mais dois igual a quatro. Meu Deus! O que é que está errado aqui? Perguntavam os seus olhos encovados.
A mulher abriu a porta.
_Querido, tu matas-te aí dentro! Larga isso que vai começar a bola!

Des (Enciclopédia Ilustrada)

Mas que feia, a mulher, a desistir!
A Maria, no banho-maria,
um membro para cada lado,
braços e pernas desgraçados.
Estão-me sempre a desdizer!
Agarrou no bicho e desmembrou-o,
destapou a panela
e lá colocou os seus pedaços.
Muito mais do que um repasto
era um desaguisado.
Ou comes tudo, ou eu mesma te desfaço!
Pimba! Desodorizante no olho,
desiquilíbrio no espaço,
a crença em volta,
em todo o lado.
Pimba, putos desagasalhados,
uns descalços
outros calçados.
Deslarga-me, disse ao marido!
Pimba, deste por isso?
Ouvi um ruído
afinal eram só moelas desaustinadas
a lutar contra um pão de milho.
Então se é des é des, pronto!
Desamadora, Desbarcarena, Desodivelas.
Desenmerda-re!
Sua desassossegada!

Gregoriana ( Enciclopédia Ilustrada)

É óbvio para todos que gregoriano é um natural de Gregório.
A expressão muito usada em Portugal, "ir ao gregório", prende-se com o facto de cientistas portugueses de renome, terem descoberto que nesse país, quando as pessoas consomem bebidas alcoólicas em elevada quantidade, começam a dizer imensos disparates, e " vomitam-se todas".
O ponto inicial do estudo foi a constatação de que ninguém diz, nas mesmas circunstâncias, "ir ao congo", ou "ir ao reino unido".
Foi concluído que , afinal, os gregorianos não são muito diferentes de todos os outros, se retirarmos o facto de que, após alcoolizados, os gregorianos também entoam uma panóplia de cânticos aborrecidos.
Apesar dos protestos da comunidade científica, e das medalhas e menções honrosas que adquiriu este grupo de trabalho, a expressão mantém-se até hoje, inalterável.

Hera ( Enciclopédia Ilustrada)

Afinal era hera ou não era,
aquela erva azedume,
vinha da base do monte
e trepava até ao cume.
Afinal era hera ou não era,
perguntava aquela gente,
só o poeta iluminado
se era hera ou não era,
era-lhe completamente indiferente,
nem esteve para ir lá ver,
só ficava incomodado
com o ruído daquela merda a crescer!

Imaginação ( Enc. Ilustrada)

O miúdo não tinha juízo nenhum!
Subiu a uma torre enorme, e de lá planou, direito a um planeta, que encontrou preso ao chão por um cordel.
Quando voltasse, o miúdo haveria de ter à espera todo o povo com bandeiras, e a mãe aflita para lhe dar uma sova, se aterrasse de mãos dadas, com um acaso de fada que pelo céu andasse às compras.
Na sua vassoura, muito compenetrada naquela primeira lição de aprendiz de bruxa, quando o miúdo a viu lembrou-se de mulheres, e talheres, e ampéres, e malmequeres, e ao cruzar-se com ela , sorrindo, cumprimentou-a .
Um sorriso tão disparatadamente largo que engoliu litros de vento, e se transformou no ar de um balão, que depressa encheu, e lhe roubou todas as curvas do nariz.
Ainda assim o miúdo sem juízo nenhum, mirou o sol para lá da lua, mais redondo do que ele, e então, e para sempre, quando viu a fada bruxa a fugir teve medo, e, com o propósito de rebentar de propósito, chegou-se a uma das muitas pontas de uma estrela de cinco pontas em papel brilhante, algumas verdadeiras outras imaginadas.
Quando rebentou, morreu!

Job ( Enc. Ilustrada)

No outro dia ia a passar na rua um vizinho, que é bastante careca, e eu estava a sacudir uma toalha à janela. Isto é perfeitamente errado, ok! Mas por vezes acontece.
Até aí tudo muito normal, não fosse o caraças da coincidência do homem se chamar Job. Imagine-se! Parece que a mãe é hebraica e o pai é do norte.
A questão foi, que algum do lixo da minha toalha, migalhas, um lenço de papel que me escapou da primeira abordagem, e um ou outro bocadinho de gelatina, lhe ficaram agarrados na parte superior da cabeça, o que até se percebe, dado o meio mais que propício.
O sr. Job pareceu ter sentido qualquer coisa, e olhou cá para cima. _Bom dia sr. Job!_ nessa altura já eu tinha trocado rapidamente a toalha por uma enorme bandeira portuguesa.
No mesmo passeio, mas em sentido contrário, apareceu uma mulher.
_Bom dia D. Asisa! Também é filha de hebraicos, bem sabemos que ele as pessoas é por zonas.
Quando Fechei a janela, a D. Asisa retirava pacientemente o lixo da cabeça do sr. Job, deixando para o fim os refegos das orelhas e a gelatina.
Dias depois, pela cumplicidade, percebi que são namorados.
É impressionante como a palavra mágica vem sempre ao encontro de situações que já vivi!

Koweit ( Enciclopédia Ilustrada)

Entrei no espaço, ''tava a palavrinha toda triste, sentada a um canto.
_O que é que tens?_
_Ninguém faz uns versos comigo, nem nada! Mesmo que fossem parvos, eu gostava!_
A esta hora já se ouviam chorar as pedras da calçada, pela janela aberta.
Fiquei com pena. _Mesmo parvos, não te importas?
_Não, não! Vais fazer?_ E o seu ózinho em forma de olho, brilhou.
_Ouve só:
Hoje não me dá jeite
ir ao Koweit
porque 'tô doente
dói-me o peite.
_Há, que bonito, obrigada!_
E pronto, lá ficou ela toda contente

Mecenas (Enciclopédia Ilustrada)

Para o "mecenas"
serve perfeitamente
este guardanapo.
Como vai
ficar sem ele
para limpar as beiças,
irritado,
não vai mais
proteger as artes.
De qualquer forma
agradeço.
Sempre podia
não ter
um pedaço de papel
ao meu lado.

Nuance ( Enciclopédia Ilustrada)

A propósito de nuances e da associação que se pode fazer entre elas e coloração de cabelo, lembrei-me de um episódio que vivi. Este, juro pelo que há de mais sagrado, aconteceu mesmo.
Uma ocasião, uma vizinha minha apresentou-me uma amiga, que estava de visita em sua casa. Imediatamente a seguir àqueles cumprimentos habituais, olá tudo bem, eu sou esta tu és aquela, a não sei quantas, cujo nome não me lembro, deu-me a seguinte informação:
" Este foi o penteado que eu levei ao casamento do João Francisco".
Fui obrigada a olhar melhor, eu que já estava com os olhos meio fechados à que tempos.
Para dizer alguma coisa tive que pensar rápida e objetivamente, por isso , perguntei a mim mesma:
Primeiro, quem és tu, afinal?
Segundo, quem é o João Francisco?
Terceiro, qual penteado?
Quarto, será que estou a ficar maluca?
Felizmente, em segundos, encontrei uma resposta razoável para ela.
_Ha......OK!
( É p'ra multa, 'tá-se mesmo a ver!)

Oásis (Enc. Ilustrada)

Nem pensar em seguir hoje a palavra, porque as vacas lhe tiraram o sono, o único oásis, ou seja lá o que fôr!
Vacas debaixo de palmeiras, evidentemente. Ali, quietinhas, um passo fora da sombra e acabou-se o pasto. Só areia.

Oásis (Enciclopédia Ilustrada)

Oásis verde, o Tejo e as suas margens,
com Almourol ao fundo.
Oásis azul, o mar ao sol
e o sol bem amarelo.
Oásis cinzento, o mar debaixo das nuvens.
Oásis cor de rosa,
Flores de rosas brancas
e, em pequenos movimentos,
buganvílias rosa
e o seu restolhar na brisa.
Oásis lilás, e os lilases pendendo,
e as laranjas
e o provável tesouro esquecido
do mais deslumbrante arco íris.
Oásis cor, oásis lápis.

Queque (Enciclopédia Ilustrada)

Tudo começou com um queque.
Logo pela manhã o homem estava encostado ao balcão, a beber um café e a comer o tal do queque. Era um homem bem vestido, bem barbeado, cheiroso. Era o diretor do departamento.
Não sei que jeito deu às mãos, que lhe caíu o queque no chão. Baixou-se para o apanhar, e, ao levantar-se, deparou com ela. Linda!
O cabelo grisalho, a farda às riscas finas, verticais, azuis e brancas. Ela sorriu-lhe, com o ligeiro buço, e a falta de um dente.
_Bom dia, senhora! Como se chama?_
_Ermelinda!_
_Sentamo-nos? Pago-lhe o pequeno almoço. Gosta de queques?
_Adoro, Dótor! Adoro!_
_Também eu! Todos os dias como um. Que coincidência!_ disse o diretor, entusiasmado._Olhe, também vou pedir mais um para mim!_ Uma certa fragrância a desinfetante estava a deixá-lo enebriado.
Deu um belo casamento, este amor improvável. Uma festa de arromba, em que o bolo de noiva foi um queque de vinte quilos, em homenagem ao dia em que se conheceram, enfeitado com meia dúzia de passas.
(É claro que isto aconteceu mesmo. Não me atreveria a inventar tamanha idiotice!)

Tertúlia ( Enciclopédia Ilustrada)

O D. Quixote
ganhou o concurso do laçarote
um concurso de intelectuais
que se ajudam mutuamente
a apertar os aventais.
Queimaram-lhe um livro
e ele, com o Peter Pan no regaço florido,
um Peter Pan sempre com a Wendy na cabeça,
e por aí fora
a verdade é que se juntaram todos
na mansão do Barba Azul,
um homem que perdeu o seu castelo,
que lhe foi roubado pelo rei Artur.
Ou teria sido Achille Talon
a cometer esse hediondo crime?
Passei perto da estante
e ouvi-os a discutir.
Nem se dava pelo Cavaleiro da Dinamarca,
mas Frodo, esse é que dormia
enquanto Gollum, jogava em simultâneo,
às cartas com a abelha Maia
e xadrez com o presidente.
Isso é que é uma tertúlia valente,
a prateleira a tremer de contente,
e Gulliver, esse gigante,
Simplesmente sentado a ler.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Literatura Versus Ciência

Um fluxo de previsíveis células jovens
de belíssima morfologia
corre no sangue da senhora esmorecida,
e o barulho é precisamente o mesmo
que faz a hélice por entre as tílias.
Pegar em meia dúzia de palavras
e incumbi-las de gestos invisíveis
e prisões definitivas.
E as tílias iluminadas, amarelas
e o terrível som das pás
a cortar o silêncio das estrelas.
Precisamente o mesmo
do bendito helicóptero e da bendita bonomia.
Absolutamente a morte nas células invisíveis
e nas verdades impossíveis!
E aquele ruído do animal metálico,
estático, mesmo ali em cima,
e nas tílias a indescritível poesia!

Yakuza ( Enciclopédia Ilustrada )

Aqui à uns anos atrás conheci um membro duma  terrível organização.
Era um homem simpático, ainda jovem, assim para o grande, e tinha um bigode farfalhudo, já carregado de influências lusas, que se enchia de migalhas quando íamos comer uma bifana aos Restauradores.
Um dia, ao passarmos por lá, ele ficou parado na montra, encantado com aquela frigideira enorme, onde borbulhava uma gordura turva e viscosa.
Também foi nesse dia que fiquei a conhecê-lo melhor. "Sabes", confessou, "eu era para ser mau. Muito mau, mesmo! Mas depois conheci a Anabela, fomos viver para Odivelas, e nunca mais me chamaram lá do Japão. O problema é que já não me sinto terrivelmente assassino, e isso prejudica a minha carreira"!
Fiquei apreensiva. Não devia ser fácil. Sugeri-lhe o S.João. " Já experimentaste ir a uma festa, que há cá em Portugal, em que as pessoas compram uns martelinhos, e se dá com eles no toutiço uns dos outros? Talvez que te ajude"!
"Vá, não chores"! Tinha os olhos oblíquos cheios de lágrimas, " Não há lugar para tristezas! Vais voltar a ser péssimo, não tenho qualquer dúvida! Anda daí áquele largo beber uma ginginha, que ajuda muito à malvadez!
Ainda hoje somos amigos