quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Era muito difícil a sua língua de sapo não  apanhar um ou outro mosquito, dentro de um dos muitos refúgios amarelos 
Que ali havia, certos restos de flores escondidos no mau tempo, 
Que o inverno deixou para trás
A aura dos felizes tende a iluminar o natal de todos nós.
O monte das prendas, embrulhos encavalitados por tamanhos, estremeceu.
A fada das violetas na bandolete saíu detrás  de um presente, ou separou-se do papel azul em que a timbraram, e falou com -----‐, 

domingo, 26 de dezembro de 2021

A aura dos felizes, com cabelos enfeitados de violetas
Restam as flores que o inverno se esqueceu de levar
Os pinheiros de natal em pose

Meia dúzia de flores que o inverno se tem esquecido de levar com ele.

Os pinheiros de natal, em pose altaneira, olham o que os rodeia.

Havia uma grande ilha, num oceano qualquer, desses que nos rodeiam a todos, onde vivia uma estranha criatura de deus.
A sua vida errante obrigava-o a não se dar  a conhecer, pois nada o ligava a outras pessoas, nem a lugar nenhum.
Atravessava as aldeias, as vilas e as cidades, com passo igual, nem absorvia o bulício urbano, nem tão pouco abrandava o passo para subir montanhas, ou para apreciar  uma bela paisagem, ou para atravessar uma tempestade para se abrigar,
Entrava nos estebelecimentos de venda de alguma coisa indispensável, percorria os corredores em silêncio,  se a não  encontrava,  saía e procurava noutro lugar, ou simplesmente, desistia e regressava ao , em cima das suas próprias pernas, que só paravam para descansar.

sábado, 18 de dezembro de 2021

ESPANTALHO

Na horta do Manel Gaibino havia um #espantalho que se sentia muito sozinho.
 Fora feito com o velho pau de uma enxada, umas calças de ganga que já ninguém podia usar, nem para os trabalhos do campo tinham proveito de tão acabadas que estavam, as franjas de uma vassoura de varrer as lajes para servir de cabelos, uma cabeça  de saco de serapilheira pintada com dois olhos grandes, e uma boca vermelha e sorridente debaixo dos riscos de barba preta muito bem aparada pelas mãos do artista que a criou com todo o preceito.
O espantalho era a figura mais alta dos campos de couves e tomates e pimentos, semeados na terra em pequenos alfobres e dispostos sobre ela em retângulos e quadrados de vários tons de verde, ponteados de um ou outro fruto já maduro e vermelho.
Quando vinham os pássaros, o boneco procurava fazer a sua pior expressão para os afugentar e eles lá saltavam para os campos de outra pessoa deixando as sementes ou os frutos sossegados, e assim ia entretendo os dias.
O Ribeiro, dono do terreno ao lado, via o seu milheiral sendo invadido, não que não gostasse de observar as aves rasando em vôos pequenos as espigas, ou saltitando por ali, acontece que lhe arruinavam a colheita, o que não  podia ser, e resolveu fazer como o vizinho e construir, também  ele, um espantalho  que lhe protegesse as terras.
De forma que se pôs  à procura de material velho e inútil que andasse por ali, desusado nos cantos, mas que de alguma maneira causasse aflição  e lhe mandasse bem para longe as aves invasoras.
O acaso fê-lo dar conta de uma cabeleira de carnaval de tiras lilases brilhantes e com reflexos de metal, uma bata de tecido estampado com  grandes ramos e esgotada pelos anos, e uma saca branca de tranportar o pão , em tempos, e que era ideal para encher de palha e moldar uma espécie de corpo. Com engenho, haveria inclusivamente, e com o auxílio de duas cordas pequenas, simular uma cintura e uma cabeça  num dos extremos.
De forma que, passados uns dias, o Ribeiro afiou melhor a estaca que sustentava o boneco já  pronto, e espetou-o no ponto mais alto existente no seu talhão de terra.
Do outro lado dos limites do terreno, entre os pequenos montes de cebolas que, após arrancadas da terra, esperavam ser entrançadas e penduradas em ganchos de parede e um alfobre de alhos acabados de semear, alguém observava a manobra com curiosidade e, quando o homem se foi embora, fixou totalmente os seus olhos sempre imóveis e espantados naquela figura, em tudo idêntica  a si, que, ao sabor da brisa estival, se balançava quase impercetivelmente. Tinha uma boca tão bonita, de caneta de feltro, das que utilizamos para pintar nos livros de colorir as bocas e os morangos, uma cintura cingida, um bonito vestido e um pescoço muito branco e, de onde se encontrava,  conseguia ouvir-lhe o restolhar do papel metalizado dos cabelos através do silêncio do campo. 
Mas veio o inverno, a brisa tansformou-se em vento, os pássaros  em chuva intensa, o verde mal se manteve, dando lugar quase absolutamente ao castanho, e os seus corpos desajeitados e sem vida foram arrancados da terra lamacenta e caíram ainda mais mortos e frios no terreno alagado.









segunda-feira, 15 de novembro de 2021

o livro

O livro figurava na estante
a consumir um tempo intocável 
Por vezes, viajava de autocarro.
Quando fosse de noite 
era bichanado pelos corredores vazios
Movimentava-se em partículas 
sobrepondo-se às palavras
de uma conversa banal.
Entre desconhecidos
criava raízes aéreas, 
como algumas orquídeas 
suspensas das suas flores.
Sem peso ou volume, 
caminhava tanto, 
horas em passos lentos,
ora em vôos transparentes,
vivia intensamente a vida, 
cujo tempo era consumido
aleatoriamente, 
ultrapassava a física 
através de forças desconhecidas,
adiantava-se ao conhecimento do homem
que o transportava debaixo do braço.
Dançava com as folhas das árvores, 
ou caía no prato de sopa 
de um qualquer adolescente,
ou ainda, era #Vénus, a estrela da manhã.



terça-feira, 26 de outubro de 2021

O Atraso

Casas ancestrais por onde passei em tempos.
O chão castanho e as paredes terrosas, confundiam-se com a madeira, as janelas ofereciam somente a luz que o verde cerrado das trepadeiras por tratar deixava caminhar pelo pó. Estas, livres e fortes, comiam as pedras por dentro e por fora, aproveitando todas as frestas, criavam raízes de força hercúlea debaixo de tudo.
Os pássaros, nos telhados, calcavam as telhas, que gemiam a cada pisar das suas patas.
Os gatos, incorpóreos, nunca se deixavam perceber, apenas se sentiam, como figura existente na noite.
Nem me lembro do motivo exato, mas sei que não era possível atribuir ao vento nenhum murmúrio, nenhuma vibração.
Todas as excadas tinham escuridão nos seus fins. Os últimos degraus desapareciam na sombra.
Um cão visitava o quintal. Andava devagar, mas os seus movimentos desengonçados batiam nas canas do feijoal.
Os mochos pousavam nos ramos de dentro e rebolavam os olhos redondos por entre as folhas, e depois piavam não sei de onde os seus gritos devastadores, não  sei de que local.
O céu era pavoroso, sempre dourado de estrelas e tão infinito quanto podia ser, mas tão negro que me engolia na sua escuridão.
A água caía em fio na fonte. Havia momentos em que alguém  se debruçava no silêncio  e lhe cortava o caudal, e essa descontinuidade podia ser por mim imaginada, ou não.






domingo, 17 de outubro de 2021

Um dia, já sem pernas, 
sem braços, sem nada, 
o corpo de um corpo 
desapareceu, finalmente.
Reduziu-o o tempo, 
primeiro para o tamanho
de uma fotografia, 
e depois para o de uma 
antiga conta de colar, 
presa num rodapé, 
até que se transformou
em moléculas  
de saudoso aroma
ou, quem sabe, no sabor 
esbatido de um biscoito
comido ocasionalmente.
Mais tarde, quando o 
futuro se aproximou,
e o passado correu numa 
viagem sem fim nem forma, 
as flores do cabelo
e os aneís dos dedos
caíram-lhe, de repente.
E então, numa paisagem de 
qualquer que seja o mar adentro,
num azul de pintor azul
de uma massa de água agitada,
viu-se submerso
no belo quadro de uma parede.



domingo, 3 de outubro de 2021

Era uma vez uma bruxa tão branca, tão branca, que lhe chamavam a Bruxa de Neve.
Por ser branca e vestir de branco, passava despercebida nas zonas mais a norte do condado, onde no inverno nevava intensamente.
Por esse motivo, sobretudo, a Bruxa de Neve rondava as pequenas aldeias metidas nos montes, ou encaixadas em vales profundos, quando o inverno rigoroso se fazia sentir, sendo que nas outras estações do ano se refugiava na sua cabana, saindo apenas para se esconder nalgum lençol branco que por acaso estivesse a branquear ao sol, estendido numa corda em qualquer quintal.
A Bruxa de Neve tinha muito orgulho na sua cor, imaginando ser única no mundo, contando com as mulheres de todas as idades, credos e nações, porque ser único, todo branco, bonito e mau é, de facto, algo de muito especial.
Um dia, estando escondida nos reflexos da água de um grande tanque de lavar roupa, viu aproximarem-se duas mulheres de meia idade. Uma delas era uma criatura perfeitamente normal, de tez queimada do sol e trajes floridos, mas a outra tinha uma pele tão clara que podia confundir-se com o interior de um coco, ou com uma taça de claras batidas em castelo.
A Bruxa de Neve sentiu-se muito revoltada, sendo incapaz de aceitar o destino que agora a obrigava a ser a segunda escolha para os deuses, fossem lá quem fossem os deuses das bruxas daqueles lugares.
Preparou, então, um #engodo à pobre mulher, porque é disso, verdadeiramente, que trata esta história, de engodos suscetíveis de virar texto, pousando sobre uma pedra uma irresistível maçã, munida de poderes mágicos para ser comida apenas pela sua rival. 
Apesar de saberem da existência da Bruxa de Neve, as duas mulheres caminhavam cantando e rindo, esquecidas dos cuidados a ter, e assim, quando passaram pelo fruto, Aldemira declarou estar com uma fome terrível, não dando nem um pedaço à companheira e engolindo de um trago aquele presente amaldiçoado.
O seu corpo começou imediatamente a contorcer-se e, durante uns momentos, faíscas coloridas iluminaram um largo perímetro à sua volta.
Quando se restabeleceu, Aldemira estava transformada numa pipa de vinho tinto e a Bruxa de Neve ria à gargalhada, tão alto que pude ouvi-la aqui em casa.

sábado, 2 de outubro de 2021

Figurava na estante, à espera de ser falado entre amigos, com os risos em volta, os copos a meio e os garfos nas mãos persistindo no ar.
Ou era mencionado numa conversa ocasional, num autocarro, espreitando do colo de alguém, de páginas abertas, sentado no banco, passando através dos olhos que se olham, ora de  frente, ora mirando o seu ponto comum através das janelas em movimento.
Outras vezes, numa conversa irreal, num corredor comprido e iluminado, sem mais ninguém por perto, povoando o mundo das inexistências noturnas.
Outras vezes, ficava retido para sempre nos meandros de um qualquer  pensamento.




quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Mais uma iniciativa

Tenho que existir acima dos telhados, apesar dos dissabores que tal decisão me possa trazer.

Foi o que me responderam, num canto único, numa só voz.
Era a sua melodia dos dias, fosse verão  ou fosse inverno, 



Tenho que existir acima dos telhados,
tal como as aves que voam despreocupadamente, 
a não ser que algum gato nos ameace,
ou alguma intempérie violenta  que permita à chuva 
e ao vento entrar por todas as ranhuras, 
todas as frestas, todos as imperfeições,
para nos lembrar das fragilidades 
de quem tem asas sem as querer.




segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Não Era Um #Unicórnio

Querida Roberta
Não sei de onde te escrevo.
Vê lá tu que ontem, estando uma noite brilhante e amena, sentei-me aqui no terraço a olhar o oceano, tu conheces a casa e conheces-me a mim, sabes como gosto de usufruir desta imensidão das noites à beira mar, sobretudo em lua cheia, por causa do brilho de tons prateados da água, e da sua solidão. 
Acontece que, olhando sem atenção alguma para os pormenores da paisagem, alheia, demasiado envolvida pela atmosfera para o fazer, dou por mim a reparar em qualquer coisa, bem lá ao fundo, quase a tapar a linha do horizonte, nuvens como sombras agregando as suas silhuetas incertas umas às outras, formando formatos de um corpo gigantesco e imaterial.
Conversando com os meus botões, como se apraz dizer, de início pensei, de facto, que fossem nuvens, mas, e apesar de nos segundos seguintes ter outra vez dispersado o meu pensamento, quando voltei a olhar, percebi haver algo de estranho naquela imagem que se ia compondo à minha frente, formando, com a sua lentidão, um estranho ser.
Para além do tamanho exorbitante e do aspeto aterrador, não entendo como, em alguns minutos, surgiu semelhante criatura, dando consistência  e volume a meia dúzia de nuvens que, momentos antes, pareciam não existir.
Estando sózinha, a Carla fora encontrar-se com uns amigos que estão  aqui de passagem, não soube bem o que fazer, telefonar para a polícia seria absurdo, chamar alguém  próximo, nem que fosse para testemunhar, era impossível,  sabes como a casa está num lugar isolado, e, confesso, comecei a encher-me de receio, o suficiente para me impedir, também, de pegar nas chaves do automóvel e fugir nele, porque achei que ficaria mais vulnerável, ainda, perante aquele monstro que se aproximava deslizando, entre o céu e o mar.
Senti-me petrificada, observei o cigarro a queimar, transformando-se num pequeno tubo de cinza instável que acabou por cair, vi a sua morte, fumado até ao filtro, tombando na laje do terraço, sentia os olhos fixos, ora nos meus pés enfiados nas chinelas e queimados do sol, ora na sombra que galgava a superficie da água, cobrindo o brilho do luar. Dir-se-ia que alguém que não eu os comandava à distância, aos meus olhos, sem a minha intervenção  consciente, alienando os meus gestos, prendendo-os à sua vontade poderosa, tão grande como a  figura monstruosa e escura que avançava na minha direção.
Ouvi, claramente, a Carla a entrar, procurando-me pela casa enquanto me chamava, e ainda vi, bem de longe, a sua pequena figura incrédula a aproximar-se da grade da varanda.



sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A Marina

A marina continha os barcos aprumados, 
olhando as luzes da cidade, enquanto
a noite se revelava na escuridão  
da água em que vogavam.
O mar deixava-se prender em lagos artificiais
de lados iguais,
quadrados de água escura, os passeios 
eram animados de gente que se auto coloriam
com os seus chapéus lâmpada pelos 
caminhos de ir e vir.
Os barcos mal estavam presentes, 
pousados sob o céu agudo, tão 
agudo quanto o ângulo das pedras que 
descem até  à beira ondulada da água 
salgada, onde os peixes cinzentos 
espreitam, por vezes encandeados.
Havia gelados por todo o lado. 
Pessoas passavam para trás e para 
a frente, e os barcos lá, escondidos, ou camuflados 
dentro do brilho fosco da penumbra, longe da luz. 
A água continha os barcos, a água pouco
refletia, violácea, impossível de transpôr.





terça-feira, 17 de agosto de 2021

Avançar

Residia, na copa de umas árvores  que cortaram por aqui, um belo gigante da floresta, talvez que tenha escapado, ou se tenha perdido quando a curiosidade por outros mundos o fez afastar-se um pouco para a serra, mesmo aqui em frente.
O meu lado racional apontava, bastas vezes, para uma ilusão de ótica, ou, até, e pela consciência  plena de que  gosto de inventar  histórias, tratar-se  apenas de fruto da minha imaginação,  mas quando ele lá  permanecia, após os verões de folhagem imensa, e mesmo nos invernos despidos, em que  só restam troncos e galhos esqueléticos e quase sem movimento, lá estava ele, de perfil carrancudo, enorme e silencioso.
Durante muitos anos fez-me companhia, na sua vida silente, apenas incitada pelo vento, de quando em quando, mas não sou pessoa de não  perceber a diferença  entre a linguagem de um mítico gigante e o murmúrio de uma corrente.
Quando as árvores  foram cortadas, o meu desgosto foi grande. Imaginei o pior, vê-lo a morrer lentamente, prostrado  no chão, porque iria morrer abraçado às árvores, que têm, como sabemos, uma forma vagarosa de morrer.
Mas como a memória se prende com o #avançar  do tempo, e a minha não  é  exceção, fui esquecendo a minha companhia, 
Certo dia, num dos meus passeios por esta bela serra onde me agreguei, espero que para sempre, admirava eu os velhos plátanos, a sua beleza notável e majestosa, numa certa distração,  pois quanto mais acedemos àquilo que é formidável, menos o valorizamos, reparei por acaso, na forma sugestiva de uma daquelas belas árvores.
Nem tão pouco me recordava de ter concebido, naqueles dias desoladores após o abate, a possibilidade de fuga de tão extraordinária  criatura que sempre acompanhou as minhas reflexões, os meus silêncios, a minha tranquilidade.
Contudo, lá  estava ele, vivíssimo e grandioso, e disponível  para quem o quisesse ver.

Terapia Para os Males do Mundo

Terapia para os Males do Mundo 



Havia uma invasora 
a comer o rio moribundo,
já nem parecia a mesma água 
invernosa,
nem o seu caudal inquieto 
corria como antes.

As árvores foram retiradas.

Mas com o tempo,
deixei de ver da janela
aquelas cicatrizes hediondas,
e o pássaro noturno 
foi resistir para outro lugar.

Imagino debaixo da terra,
as suas raízes invisíveis,
as suas raízes fundas.

Ao momento, os filhos
renascem do chão 
em volta do corpo anelar 
da mãe decepada.

Quando as cortaram
fiquei 
branca como a cal das paredes 
brancas
mas depois, tudo passou.

No outono,
O sol cor de laranja
entardecia-lhes, tanto as copas 
multicolores,
como as folhas monumentais 
e os dias acabavam assim.













sábado, 7 de agosto de 2021

Cidalinha

Cidalinha estava sentada na varanda, numa espreguiçadeira grande de mais para ela. Mesmo sentada de lado, os pés ficavam-lhe pendurados, para aí a quatro centímetros do chão  e ela esticava-os para tocar com a ponta dos dedos na lage fria.
Quem a olhasse, e conhecesse razoavelmente as crianças,  percebia-lhe os movimentos automáticos e distraídos, seguramente com a cabeça noutro lugar, mas porque os cabelos em desalinho lhe tapavam a cara, era quase impossível perceber a sua testa franzida e o seu ar concentrado em pensamentos que  nada tinham que  ver com o gesto automático de balouçar as pernas.
A mãe chegou-se à ombreira da porta e olhou para ela. Era das raras pessoas no mundo que não  tinha necessidade de olhá-la nos olhos para a perceber. Bastavam-lhe as costas ligeiramente curvadas da miúda, ou os bracitos esticados com as mãos  presas na estrutura da cadeira, e mais outros pequenos sinais quase invisíveis, mas que adicionava mentalmente, para, sem esforço, lhe ler os estados de espírito.
Acocorou-se junto a ela e afastou-lhe o cabelo, que desde sempre insistia em revelar-se selvagem, dos olhos perdidos num qualquer aborrecimento de criança, a preencher, enorme, o seu pequeno universo.
Anos volvidos, reparo que  ganhei um belo arbusto florido de uma ponta que  roubei, já faz um tempo, no muro de um jardim.
Novelos corados de lilás formam-se da simples aproximação das suas flores diminutas, fazem-me ir buscar palavras aos confins dos infernos, desassossegam-me tanto... 







quinta-feira, 5 de agosto de 2021

É muito fácil falar sobre gatos, eu sei. 
O seu caráter misterioso e as suas posturas silenciosas, tantas vezes impenetráveis, prestam-se ao propósito  dos contadores de histórias, dos observadores deste mundo, sempre atentos, reféns dos  movimentos em seu redor, ainda que seja apenas uma simplória flor amarela que  abana com o vento, ou a rotina da família vizinha, que se mostra em cadências  diárias, ou semanais, como por exemplo o hábito de receber a família para jantar ao domingo,  ou a criança que chora por diversas noites, atacada de algum incómodo, e que nos primeiros meses mal se conseguia explicar, utilizando choros inconscientes, mas que, no presente momento,  já vai pronunciando palavras simples misturadas nos soluços.
E os gatos, quaisquer uns, esticados preguiçosamete no ambiente.
Por isso temos tantos gatos nos contos, nos romances, nos poemas, muito justamente em papeís principais, ou determinantes, ou desenhados em ilustrações para crianças, atípicos e irreais, ou com a normalidade simples dos animais domésticos, acompanhando inconscientemente  um troço de vida dos donos.
Porém, todavia, contudo, enquanto tilintam, desordenadas, as borboletas de vidro pintado suspensas da frágil armação do espanta-espíritos  que pende junto à janela, sujeito à melodia existente no ar, eu penso que talvez o meu animal seja diferente dos outros, caminhando, vagaroso, como o são todos, numa superfície infinitamente branca e assustadoramente  silenciosa, preenchendo  o vazio com a sua solidão.



sexta-feira, 30 de julho de 2021

Eu ontem ia dizer-te uma coisa, daquelas triviais.
Ia dizer-te, "sabes quem eu vi a conversar animadamente, nem sabia que se davam tão  bem..."
Haverias de querer saber, querias saber de tudo o que  me interessava, de tudo o que me aborrecia, dos meus receios, das minhas aspirações.
Eu ontem ia dizer-te uma coisa sem importância,  das que preenchem os dias tranquilos, das que sustêm o amor, tão elásticas e tão aparentemente  indestrutíveis como as teias que fazem as aranhas e que  perduram num tempo infinito, nos cantos das casas velhas, ou entre os arbustos, indiferentes à passagem das estações. 
Eu ontem ia dizer-te qualquer coisa sem importância, para falarmos os dois, companheiros inseparáveis de problemas,  ou de alegrias, ou de tudo o que há para viver neste mundo, eu ia dizer-te uma coisa, eu ia dizer-te uma coisa, mas já  nem me lembro o que  queria dizer-te, era uma coisa qualquer sem importância...


domingo, 25 de julho de 2021

Sem #Filtros

Já me ia embora, quando, de lá de dentro, do fundo escuro da casa, a ouvi pronunciar uma frase qualquer.
Saí para o terraço e dei com os passaritos a olharem-me da gaiola.
Dizia que era a sombra das aves que, por vezes, se atravessava nas folhas de rascunho, de pequenos apontamentos, que habitualmente deixava espalhados sobre o tampo da secretária.
Não era certo, mas diria ser daquele lugar, em frente à janela, que  via o jasmim esperando pacientemente  a chuva, 
e o pássaro olhando, deslumbrado, a árvore salvavidas, velejando do lado de fora das grades.
Apresentava-me folhas manuscritas, em letra indecifrável.
Olhava-me implorando qualquer coisa que eu sabia não lhe poder dar. 
Eram tão rápidas e vaporosas que nem o gato, habituado ao incompreensível, e que  normalmente dava conta de tudo, parecia percebê-las. 
Raramente vinha cá fora ver as flores. 
O canário enchia o chão de cascas das sementes que  atirava sacudindo o bico, e eu, ao dar um ou dois passos, fazia com elas estalassem ligiramente debaixo dos meus pés.
De vez em quando gritava. Sempre que lhes imaginava as asas etéreas sobre a impressora, subindo rapidamente para a página vertical e aparecendo e desaparendo repetidas vezes, mas eu, de pensamento racional, fazia questão de a informar o quanto duvidava da sua passagem.
Depois, queixava-se do quarto virado a norte e da constante falta de sol.







domingo, 11 de julho de 2021

Toque

Hermínia lavava a roupa no tanque do quintal, quando ouviu alguém  abrir o portão do lado oposto da casa.
Apreensiva, abriu a torneira incorporada na parede, passou as mãos por água limpa, secou-as no avental e, a medo, contornou uma das paredes laterais da casa.
Sentada nos degraus junto à porta principal, encontrava-se uma pequena criatura, de pele verde e com uma grande cabeça, e de nariz minúsculo e olhos salientes.
Parecia, também, não  possuir boca, mas quando Hermínia o questionou sobre o que estava ali a fazer, a verdade é que uma grande boca se abriu como que por milagre e até foi possível perceber-lhe os dentes afiados.
Infelizmente, o seu linguajar era indecifrável, o que tornava o esclarecimento das coisas bastante difícil, mas Hermínia, na sua qualidade de artista plástica conceituada, embora em fase de  decadência, desenhava extraordinariamente  bem, pelo que convidou o estranho a entrar e a sentar-se na poltrona azul, enquanto ela ia buscar o material para poder comunicar com ele.
Com grande profissionalismo, Hermínia desenhou o cenário  em que se encontravam, fez uma enorme seta direcionada à figura do viajante, que também incluira na resenha, e foi encolhendo os ombros para que ele entendesse a interrogação.
Não  há  coincidências,  em boa verdade, e se as há é precisamente porque se dá uma qualquer coincidência  das que não existem, mas deixemos isso para depois, em todo o caso o nosso heroí verde era também, no planeta de onde provinha, um conceituado pintor e logo lhe pediu a caneta emprestada e fez o esboço  do corpo de Hermínia cortado em pedaços e guardado em sacos de vácuo acrescentando uma seta que apontava para a parte congeladora do frigorífico.
Conversa puxa conversa, e eles ali ficaram, toda a tarde, a mulher fez um chá e foi buscar uns bolos à hora do lanche, nos quais ele nem tocou, e, através  das folhas em branco do bloco de papel, contaram inúmeras coisas um ao outro enriquecendo-se mutuamente com novos conhecimentos.
O homem verde mostrou-lhe, a traços largos, a família que deixara no seu planeta, a nave espacial do presidente, onde figuravam, pendurados,  vários quadros pintados por si, e outros cenários de especial relevância. 
Hermínia ofereceu-lhe vários pequenos mimos para ele levar para os filhos, mas ele só aceitou um pacote de rebuçados e outro de gomas, que meteu dentro do organismo, através  de um bolso que não parecia estar lá, mas que se escondia inserido na pele.
Pareceu ficar muito entusiasmado com a coleçao de frascos com ervas aromáticas  pelo que Hermínia lhe deu tomilho e alecrim.
Já  a tarde ia avançada e o sol descia no horizonte com alguma rapidez, quando Hermínia ouviu claramente um #toque de trombeta. 
O estranho visitante pareceu ficar nervoso e levantou-se, começando a abrir todas as gavetas até encontrar os objetos pretendidos. Uma faca afiada e sacos o mais limpos possível.
A muitos anos luz daqui, lá para o fim dos fins da via láctea, neste preciso momento, uma mulherzina verde acaba de colocar no centro da mesa já posta um tacho de guisado cheiroso e fumegante, enquanto as suas crias rebeldes e esfomeadas batem uns nos outros com os talheres. 



Violeta Inacabada


Um #toque de deslumbramento,  
era o melhor dos refúgios para Violeta, 
que entrava nas nuvens mais baixas 
para refletir o quanto amava o seu nome de flor.
Era só colocar as pétalas viradas contra o vento 
e tomava-se da capacidade de percorrer pequenos espaços, 
pousando ora nas telhas quentes, 
ora nos muros indolentes, ora nos terraços cinzentos.
Violeta amava tanto o seu nome que desprezava as outras, 
as naturais, crescendo sobre os microondas, 
suspensas dos tetos, ou espreitando, meses e anos, 
adormecidas junto às janelas onde não  bate o sol, 
confinadas a um espaço tão pequeno, 
um vaso de fracas proporções, 
e de gestos tão assustadoramente lentos, 
que se diria estarem imóveis. 









terça-feira, 6 de julho de 2021

dnrht

Doméstico estava sentado num banco de pau, com um cotovelo apoiado na mesa improvisada com caixotes, o único mobiliário que podíamos ver naquela pequena casa. A um canto, duas crianças  brincavam com um trapo que outrora houvera sido uma touca do avô Natércio, mas que agora era o único brinquedo que os dois irmãos  possuíam.
O velhote resistira a todas as pragas possíveis, e ali estava, olhando o filho que por sua vez olhava o infinito.
A bela dama aproximara-se da porta, batera delicadamente com os nós dos dedos na madeira, esperara uns segundos, mas como ninguém  abria, voltou a bater, desta vez com um pouco mais de força.
Dentro da barraquita, Doméstico, alheio a tudo, não  ouviu bater. As crianças,  tendo herdado os genes do avô, e concentradas na sua brincadeira tão  bem elaborada, e que consistia em acertarem um no outro com a velha touca encharcara,  não  ouviram nada também, tal como o idoso que dormitava no chão, enrolado num cobertor tão sujo como ele próprio. 
Isabel insistia em que lhe abrissem a porta, mas os  nós dos seus dedos já sangravam, e não conseguia fazer-se ouvir. Olhou à sua volta e descobriu um tronco de eucalipto que lhe permitiria dar uma pancadas mais fortes, até, se necessário  fosse, rebentar com a porta.
Natércio acordou revigorado da sesta. Talvez por isso, se apercebeu do barulho e agarrou no cajado que tinha sempre consigo, para avisar o filho tocando-lhe com a sua ponta nas costas.
Ninguém poderia supor, ao ver tão frágil criatura, a determinação  que tranportava consigo,  mas a generosidade, por vezes, alimenta-nos de uma força  extraordinária e a verdade, verdadinha, é que a delicada senhora partiu a porta em dois e viu-se aterrada no meio da casa.
A família de Doméstico bem conhecia a quela criatura angelical e santa. Sempre que por ali passava era para os ofertar com pequenos e úteis presentes.
Isabel largou o tronco do eucalipto no chão, que rolou até  acertar em Natércio.
_Olá, Doméstico e família. Como passasteís nestes últimos tempos? Tivesteís muita fome? E frio? E doenças? Trago-vos o que  consegui surripiar no castelo. O Dinis controla tudo o que eu escondo no regaço. Têm queijo da serra, pão, vinho, e um #ouvido para o idoso. Para a semana trago o outro._
_Obrigada, gentil senhora! Crianças,  cuidado! Não  acertem na D. Isabel!_ mas o aviso não foi a tempo e o projétil já  encontrara as faces da bela senhora.
A bondosa dama não  relevou o acontecido e prosseguiu aproximando-se de Natércio. Içou um pouco a saia comprida para melhor lhe tocar com a ponta do sapato.
_Levantai-vos da enxerga, para que vos enrosque este ouvido na orelha direita. Isso. Agora dizei-me. Estais-me a ouvir? Sim? Formidável!
E vós, criancinhas? Desejais acertar-me outra vez nas faces? Podeis, pobres anjinhos de Deus._
Doméstico tinha o peito quase a rebentar de gratidão. Bastava, pressentia, que Isabel ainda os agraciasse  mais uma pequena coisa, um amendoim por exemplo, e rebentaria mesmo, na verdadeira acepção das palavras, e os seus órgãos  internos espalhar-se-iam, despedaçados, pelo recinto.
E foi quando a bondosa raínha levou a mão ao bolso, exclamando:
_Trouxe destes já descascados, Doméstico. Ora comei uns quantos aqui comigo._
D. Dinis, que brincava às escondidas com dois ursos no pinhal de Leiria, ouviu, claramente, o grande estrondo.











terça-feira, 8 de junho de 2021

Em volta da mesa redonda,
que vista de longe era uma 
roda verde sobre a paisagem,
com as cadeiras de ferro trabalhado,
e os arabescos das costas inclinados,
e eles lá sentados, lendo,
cada um deles animado pela respetiva  ilusão.

Agarrei suave, mas firmemente, 
no braço do que estava mais próximo, 
e convidei-o a um passeio pelo jardim.

Dava-se o acaso de estarmos na primavera, que, 
para além das flores sobejamente 
conhecidas pela sua beleza,
também  usufrui da vivacidade das cores, 
única dentro das estações  possíveis 
para um ano inteiro.

Todos os trilhos eram de circunstância,
traçados pela necessidade. As ervas eram 
destruídas matematicamente 
por baixo dos pés dos que passavam.

Um pouco mais para lá, o ressalto do terreno 
obrigava a dois toscos degraus, dos quais o avisei.
Olhou para o chão e assentou os pés  
devagar e cuidadosamente.

Passámos pelo campo das oliveiras, 
árvores rasteiras, palco de batalhas de criança,
que as imaginavam como barcos de pirata 
e aos campos adjacentes como #oceanos sem fim.

Havia um plátano, de tronco magro, 
uma magreza causada pela sujeição aos 
humores desagradáveis do tempo.

Passou indiferente,  
rumo à sua posição de estátua de fonte,
olhando fixamente a pedra da frente,
enquanto a água cai.
Ao fundo, havia um muro, onde brilhavam 
flores cor de laranja viradas para o sol da tarde.



sábado, 5 de junho de 2021

Em volta da mesa redonda, vista de longe era uma  roda verde quase espalmada  sobre a paisagem, com as cadeiras de ferro trabalhado, arabescos nas costas ligeiramente reclinadas sobre a relva, 
Era onde estavam sentados os meus três leitores sossegados, cada um dentro da história  que os animava. E eu aborrecida com o seu silêncio que só era cortado pelos cães, que falavam de longe com os seus ladrares, resolvi convidar um deles, aleatoriamente, talvez aquele que me parecera menos embrenhado na leitura, talvez, 
Para ser mais convincente, agarrei-lhe pelo braço, com suavidade e firmeza, exerci sobre o seu corpo alguma força propulsora, propositadamente, eu de pé e ele sentado é fácil exercer força, e  convidei-o a levantar-se e a acompanhar-me num passeio pelo jardim.
Dava-se o caso de ser primavera, que, para além das flores sobejamente conhecidas de todos como sendo da maior beleza, também  usufrui da vivacidade das cores, única dentro de todas as estações  possíveis para um ano inteiro.
Os atalhos eram circunstanciais, traçados pelos pés de quem por ali passava todos os dias, que calcavam a terra, destruindo matematicamente as ervas por baixo do túnel de videiras, junto ao milho. Um pouco mais à frente, o ressalto do terreno obrigou a dois toscos degraus, dos quais o avisei.
Olhou para o chão  e assentou os pés devagar e cuidadosamente.
O campo das oliveiras, árvores rasteiras, palco de batalhas de criança, que as imaginavam como barcos ondeando  nos campos que  por sua vez faziam as vezes de oceanos esverdeados.
Mantinha a imobilidade o tempo necessário para que o pequeno inseto se habituasse à sua presença, e, num rápido e eficaz movimento, caçava-o lançando a língua supersónica, e apanhava o inseto voador, qua andava  distraído em deambulações confiantes, mesmo em fazer em frente aos seus olhos. Camuflado entre um pedaço morto de tronco e a folha de uma grande amoreira, despertando a sua atenção de leitor concentrado, olhava para os plátanos à beira da estrada como se nada fosse, dois ou três plátanos de troncos magros pela sujeição  ao frio devastador e ao calor sufocante.
Havia um muro velho, onde brilhavam flores cor de laranja, viradas para o sol da tarde. 
Quando a brisa se tornou desconfortável, aconchegaram os casacos ao corpo e encaminharam-se para junto da mesa redonda. Todos agarraram nos seus livros e retornaram a casa.













quarta-feira, 2 de junho de 2021

Através  
dos teus olhos compostos 
e da tua visão hexagonal
deste mundo aliciante,
irás atrever-te
pelos #intervalos da chuva,
sabendo que, se não 
detiveres
a  perícia necessária,
um só pingo de água
naquela sua forma 
incontornável  de 
lágrima
será suficiente
para te aniquilar,
porque é da matéria 
das metáforas 
e tu não provéns dos ventres 
protetores e inquebráveis
das mães.
Não nos é difícil perceber
a ousadia,
com as nossas asas
translúcidas 
que batem muito rapidamente
e são capazes de mudar de
direção num segundo,
e também porque
sabemos que ela caí
paralelamente, e, para além de
paralelamente, 
cai por bastas vezes
em perigosas diagonais
que se atiram contra
o chão.
Mas os teus olhos, losângulos,
vão processando
à procura de soluções.
E pode bastar um só erro 
para morrermos inundados 
por causa de um inofensivo 
aguaceiro.



quinta-feira, 27 de maio de 2021

Indzível

Sem a força da revolta,
ou a beleza da contemplação, nada feito.
Só me vem à ideia a frieza 
dos algarismos e das palavras feias.
A camada de que os revesti era enganadora, 
e eu não quero,
nem os pretendo ocos, ou vazios.
Também por isso,
tratei de mudar de forma rapidamente, 
para observar melhor 
as águas bravas que caem das cascatas, 
e não as cortinas que se agitam
quase nada para trás e para a frente.
E como estava tudo torto, 
fui pôr roupa a lavar...
ninguém põe roupa a lavar nos poemas.
É tão feio!
Estendê-la é outra coisa,
com o vento a bater nos cabelos 
e a imagem versátil das peças 
a ondular em função da corrente, 
e musical, tal como quando
canta um pássaro bem disposto.
Não é o mesmo 
que pegar na sujidade em monte, 
procurar o programa específico, 
carregar nos botões, 
medir os detergentes.
Isso ninguém  faz nos poemas, 
que servem o #indizível apenas.
Terei, então, que mudar uma vida inteira,
aleatoriamente, porque 
sem inventário desapareço,
e não serão as pedras 
umas sobre as outras que falarão por mim.




A Cabana

À procura da sorte num trevo de quatro folhas, 
vê lá se voas para onde voaram as frésias no verão passado, 
como certas palavras que fazemos nossas, dê lá por onde der, 
para nos fazerem companhia para o resto da vida.
Tinha por mais do que uma vez, observado várias movimentações. 
Contudo os cenários e os personagens mudavam de tal forma,
que era como se habitasse mil casas, ou mais, 
ou lutasse por encontrar a "cor", uma cor especial
no espacial que determina o céu, 
sei lá eu o que estou a fazer.
Bastas vezes, vira mulheres silenciosas
a deslocarem-se de um lado para o outro, 
todas diferentes e caladas, 
entravam e saíam por portas inventadas, 
enquanto preguiçosamente as previa,
podia ser a meteorologia qualquer uma, 
tanto fazia calor e luz, como o nevoeiro 
agarrado ao entardecer com unhas e dentes, 
ou uma noite um pouco mais brilhante do que as outras, 
ou essa mesma noite morrendo no orvalho da manhã.
Dobravam a esquina, presumo,
já só as via quando estavam à minha frente, 
dando-se assim a conhecer, sempre do outro lado da estrada, 
debaixo da lona de um toldo,
o local onde mais as ervas tendem a invadir o passeio.
Os gatos, essas fantásticas  e enigmáticas criaturas, 
estão por todo lado. 
Quantas vezes aparecem sem aviso prévio, 
controlando o que não  se vê, 
sólidos e harmoniosos, menos na areia, 
os gatos não gostam dela,
deitam-se nos catos das dunas, que vejo daqui, 
da minha janela, e estendem-se ao sol.
As árvores existem, 
obviamente nuas umas vezes, quase nunca, 
mas são, contudo, as mais rápidas e eficazes
a desaparecer, 
para serem recolocadas noutro sítio, numa daquelas serras 
em que se respiram umas às outras 
provocando frescura, 
e onde velhos plátanos, pela primavera,
revivem o entusiasmo juvenil.
Não era que os adorasse mais que tudo, mas queria-os para mim, 
isso era certo,
as palavras, as mulheres do outro lado da estrada, as árvores, os gatos,
os trevos.








segunda-feira, 24 de maio de 2021

Havia uma terra de vento, construída no topo de um monte, onde a vida parecia impossível.
No entanto, as crianças viam os pais atarefados transportando pela rua acima um piano, suportado nos ombros, tentando evitar as pedras soltas debaixo dos pés e suando terrivelmente por causa do peso excessivo.

Naquelas terras de vento, construídas num topo de monte, onde a vida parecia impossível, três homens subiam a rua, conversando. 
Mantivera-se a rua em silêncio desde o abandono da rua? O adro da capela, e deixaram as casas abandonadas.
Virou-na orientação  das gargalhadas excessivas das crianças e gritou-lhes: Menos ruído, por favor! Estou a costruir uma aldeia."
Enquanto iam subindo, os três aldeões a avançavam em ritmo lento.
Procuravam, de olhos baixos, evitar as pedras soltas do caminho, deslizantes, por causa da intensa chuva de Verão  que acabara por molhar tudo, sucediam-se as pedras nas fachadas, ou nos muros, umas sobre as outras, onde as crianças  se encostavam, depois da chuva passar.





segunda-feira, 17 de maio de 2021

Satie

À procura da sorte num trevo de quatro folhas, 
vê lá se voas para onde voaram as frésias no verão passado, 
como certas palavras que fazemos nossas, dê lá por onde der, 
para nos fazerem companhia para o resto da vida.
Tinha por mais do que uma vez, observado várias movimentações. 
Contudo os cenários e os personagens mudavam de tal forma,
que era como se habitasse mil casas, ou mais, 
ou lutasse por encontrar a "cor", uma cor especial
no espacial que determina o céu, 
sei lá eu o que estou a fazer.
Bastas vezes, vira mulheres silenciosas
a deslocarem-se de um lado para o outro, 
todas diferentes e caladas, 
entravam e saíam por portas inventadas, 
enquanto preguiçosamente as previa,
podia ser a meteorologia qualquer uma, 
tanto fazia calor e luz, como o nevoeiro 
agarrado ao entardecer com unhas e dentes, 
ou uma noite um pouco mais brilhante do que as outras, 
ou essa mesma noite morrendo no orvalho da manhã.
Dobravam a esquina, presumo,
já só as via quando estavam à minha frente, 
dando-se assim a conhecer, sempre do outro lado da estrada, 
debaixo da lona de um toldo,
o local onde mais as ervas tendem a invadir o passeio.
Os gatos, essas fantásticas  e enigmáticas criaturas, 
estão por todo lado. 
Quantas vezes aparecem sem aviso prévio, 
controlando o que não  se vê, 
sólidos e harmoniosos, menos na areia, 
os gatos não gostam dela,
deitam-se nos catos das dunas, que vejo daqui, 
da minha janela, e estendem-se ao sol.
As árvores existem, 
obviamente nuas umas vezes, quase nunca, 
mas são, contudo, as mais rápidas e eficazes
a desaparecer, 
para serem recolocadas noutro sítio, numa daquelas serras 
em que se respiram umas às outras 
provocando frescura, 
e onde velhos plátanos, pela primavera,
revivem o entusiasmo juvenil.
Não era que os adorasse mais que tudo, mas queria-os para mim, 
isso era certo,
as palavras, as mulheres do outro lado da estrada, as árvores, os gatos,
os trevos.








quinta-feira, 13 de maio de 2021

nrdjrj

Era uma vez uma menina que partiu os #óculos. Estava a tirar uma pestana de um olho, que insistia em picá-la como um alfinete, não sei como, saltaram-lhe das orelhas e estatelaram-se no chão. Uma das lentes saltou e a outra rachou quase toda, de alto a baixo, na diagonal, e a fenda ficou a atravessar o vidro como atravessam os vidros os para-brisas dos nossos automóveis. 
_Ohhhh..._ exclamou,  ao apanhá-los do chão._Já  me lixei!_ e, num gesto resignado, voltou a metê-los na cara.
Foi andando pelo passeio, um pouco atrapalhada com o caminho, para mais que o dia estava cinzento, piorando a visibilidade, às vezes parava a cumprimentar um candeeiro, como se fosse algum dos vizinhos, foi apanhar do chão uma flor do canteiro, que era, afinal, um saco de plástico, fez festas a um gato, pensando que era um gato, não foi por mal, afinal era a cabeça da D. Mónica, que estava sentada na paragem do autocarro, acabadinha de sair do cabeleleiro com o cabelo pintado de Preto Devastador. Ainda se não tivesse dito "bichano, bichaninho", enquanto lhe alisava os cabelos  talvez ela não se tivesse irritado, enfim, passou todas estas peripécias  sempre com a preocupação  de saber o que fazer quando chegasse ao pé da mãe que era muito exigente e até, em determinadas circunstâncias, um bocadinho má.
"Talvez se negar até ao fim, fique como uma coisa sem importância", e com este pensamento,  tocou à campaínha de sua casa.
Ainda não  tinham vindo abrir, quando começou a chover intensamente e a menina, numa questão de segundos, ficou encharcada, mas lá  ouviu o trinco a funcionar e entrou rapidamente para não  se molhar mais. 
À entrada esperando por ela, estava a mãe mazona. A miúda parou no meio da entrada, formando imediatamente um grande lago à sua volta. 
_Onde é que tu andaste? O que é que aconteceu aos teus óculos? _perguntou-lhe a malvada, de semblante demoníaco e feroz,  enquanto dava meia volta para ir ao armário  buscar uma cana de pesca e um banquinho desdobrável para se sentar a pescar. _Não me mintas!_
A menina sabia que não devia mentir, sobretudo quando era fácil ser apanhada, era uma estupidez, por isso contou como tudo tinha acontecido_
_Estás a ver isto, estás? _Inquiriu o monstro à menina, em tom ameaçador.
_Não estou a ver nada._ respondeu a criança_Ê o quê?_
_E ainda me dizes que os óculos estão em condições! Tu, antes, reconhecias um achigã a léguas. Nem sabes o castigo horrendo que vais ter!  Olha, o para-brisas funciona! Nunca tinha visto! És tu que o ligas ou tem um sensor?_







terça-feira, 11 de maio de 2021

Os caminhos dão voltas
intermináveis 
entre as florestas de pinheiros, 
pintadas  de verde compacto
e indiferente 
que escorrem pelas 
serras adormecidas.
Lá ao fundo, os salgueiros 
cumprimentam a água, 
eternamente
debruçados em grandes vénias
sobre o seu caudal 
nascidos e criados ali, uns 
metros à frente do moínho húmido
e pedregoso, 
com metade da sua grande roda 
inacessível aos meus olhos.
As estradas estão enroladas 
na superfície dos montes, 
o sol fragmenta o rio, onde
suponho que brilhem os peixes , 
até quase desaparecer. 
Após o ocaso inquieto 
medonhas estrelas infinitas
revelam-se de noite, 
tão próximas que, por vezes, 
caem do céu
como uma chuva habitual.





 

sábado, 8 de maio de 2021

O Jasmim


O #Jasmim

Não haverá  poema
capaz de igualar
em delicadeza
as suas pétalas pequenas
nem versos, 
nem palavra alguma,
nos envolverão tão 
agradavelmente
como o seu volátil aroma.





sexta-feira, 7 de maio de 2021

Pedrito fugira de casa com onze anos, #imberbe e inocente, para regressar agora, duas décadas depois, com a ponta da  barba  a bater-lhe no umbigo, que por sua vez espreitava pelo intervalo da camisa repuchada.
Estava irreconhecível. Ao princípio, nem acreditou, quando ele insistia que era o filho da vizinha Telma, mas quando ele esfregou a manga do casaco no nariz para o limpar, ela reconheceu-lhe o tique de criança,  quando tinha o nariz a pingar e o limpava ao bibe. 
_Ó Aderito! Adérito, vem cá!_ chamou ela o marido _vem ver quem está  aqui à nossa porta!_
Adérito levantou-se e, cheio de curiosidade, espreitou por trás da figura da mulher.
_Oh!_exclamou_ O Pedrito, agora enorme e peludo! Nem parece ele! Mas a mim não me enganou. Continua a ter os mesmos olhos doces de sempre. Ora prova lá, Albina_ e enquanto falava com a mulher, foi tratando de retirar um dos olhos ao homem para ela provar.
_São doces, sim_confirmou Albina. É ele, o Pedrito! E mais a apanhar o ranho com a manga... Era  muita coincidência. Põe-lhe o olho no sítio, que ele já  está  a chorar do outro e nesse as lágrimas não lhe caem._
__Sim. Desculpa. Ainda ia parar à gaveta dos perdidos, os que eu provo e depois esqueço-me de devolver. Que cabeça  a minha... Mas que alegria, que alegria! Não  tinhas um pelinho só na cara, eras uma criança,  e agora pareces o King Kong, a tua mãe já te viu? Grande desgosto que ela vai ter, aposto... Oh... Não chores... Ó Albina! O olho está mal colocado. Rodaste para a direita ou para a esquerda?_
_Se ele chorasse menos, aguentava-se, mas pronto, é o meu azar do costume..._








terça-feira, 4 de maio de 2021

Debaixo do freixo, nem as cacículas cresciam, tão grande era a invasão de alcíticos naquela altura do ano.
Nas sombras provocadas pela árvore frondosa moviam-se bichos rastejantes, que caíam das folhas após um certo renascer.
Os que sobreviviam à queda, cresciam naquela terra com o propósito de serem mais tarde, e muito orgulhosamente, as borboletas que pousavam no nariz dos veados, o que os obrigava a entortar os olhos.
A resistente badilócia trepava-lhe pelo tronco e, na altura da primavera, rebentava-lhe as veias seiva com o poder das suas flores azuis que aimpediam de respirar.
As suas sementes, que eram cor de fogo, caíam no chão para se confundirem com mantas de liquenes enferrujados, não  havia sol debaixo do freixo naquela altura do ano.



terça-feira, 27 de abril de 2021


#Yeats

Vagueava 
no jardim
onde vogavam 
os mortos,
com as suas
almas verdes
refletidas
no lago.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

bailarinas, versão 2

Envergando um vestido rosa com bolinhas brancas, parecia a versão acomodada de uma barbie bailarina.
Transportava  música trágica  nos fones que lhe ia entrando pelos ouvidos, enquanto patinava pelas ruas anulando voluntariamente os movimentos ondulantes da cidade.
A sua cabeleira despropositada por vezes raspava o chão, serpenteando, solta, bastava a simples deslocação  do ar provocada, às vezes, pelo  movimento roncador  de um autocarro.
Nas vielas onde não  cabem viaturas tão grandes, era a brisa que se imiscuía nelas, entrava nos recantos onde ninguém cabe, e até nesses lugares quase inacessíveis o seu cabelo vogava com a mesmíssima leveza habitual. Prendia-se nos estendais.
Mais à frente, enrolava-se nas velhas grades dos portões dos palácios de ferro, ou apertava, sob a forma de abraço esquivo, ao longo da avenida descendente, os troncos alinhados das suas árvores. Duas madeixas indomáveis acabaram por se prender num velho cartaz de cartão grosso, atrás de um banco de jardim, com um #anúncio ilegível carcomido pelo tempo.
Atravessava as estações do ano sentando-se  nos canteiros desde que estes mantivessem as flores.
Quando chovia muito, havia  sempre um toldo cor de laranja, onde se abrigasse, com o vestido ensopado a escorrer, vagaroso, para os seus pés.
Ao dançar sobre a passadeira, e após uma eternidade à espera que o sinal tornasse a verde, enrolou, inadvertidamente, os longos cabelos, primeiro,  na copa de uma árvore, e logo a seguir num alto candeeiro mesmo ao lado, sem imaginar que alguém lá se escondia, informe, aproveitando as sombras esguias, o quadriculado dos passeios,ou o recorte assimétrico dos plátanos.
Olhou bem para o alto e viu os morcegos agitaram as asas secas e partirem, de imediato, em busca de um lugar mais sombrio.
Porque o perturbara, informe e esguio, tímido  como as paredes nuas das torres de um castelo, tão ereto como elas, e igualmente guardião dos patos bravos e das cegonhas brancas, as aves que mais ascendem sobre os telhados altos das cidades.
Sentou-se no canteiro das margaridas, com a saia em roda de si mesma e os joelhos fletidos à altura do nariz. Havia por ali uma presença reconfortante que a iluminou.
Uma fada que por ali andava concebeu o trabalho delicado e extraordinário, de cortar tudo com tesouras douradas, quando esse era o caso, o de cortar arestas ou pontas soltas, que, de alguma forma, impedissem a felicidade.
Ela, asas despidas de penas, que se houveram soltado e de imediato juntado aos remoínhos que se formavam entre ruelas circulando em espiral por todo o lado, com as pernas em meias de seda, muito direitas e fusiformes, rodopiava com o cabelo azul em liberdade, que acabou por se enrolar nos poemas que ele, transformado agora em linhas de tinta, escrevia no ar.
As gaivotas iam trazendo palavras que depositavam por ali, sob a forma de guinchos imperscrutáveis.
Por breves momentos, ambos viram um futuro de begónias à altura da barriga, a serem envasadas e desenvasadas conforme a necessidade, e grandes fatias de bolo de chocolate, ele imaginou-se a descansar nos raios de luz que atravessavam as salas, oblíquos, desde as janelas até às paredes do outro lado.
Mas as frases gravadas no ar são efémeras e jamais retornam às mãos de quem as escreveu, ainda que seja uma história de amor.
Eles não  sabiam que nunca tinham existido, nem existiriam, a não  ser na turvação das cores. 



 





sábado, 17 de abril de 2021

Tinha um fato rosa às bolinhas brancas, parecia uma barbie acomodada na sua versão de bailarina,
Música trágica nos fones que lhe entrava pelos ouvidos, enquanto percorria as ruas, deslizando nos patins, indiferente aos movimentos ondulantes da cidade.
Sem equívocos.
A sua grande cabeleira azul, por vezes, raspava no chão,  ou voava, solta, por instantes, com a deslocação  do ar provocada pelos autocarros, quando aguardava a mudança de cor de um  semáforo, e tomava, bebendo, alguma brisa que por acaso se imiscuísse nas vielas, e então soltava-se em fitas ondeantes, que se prendiam nas grades dos palácios, nos seus portões de ferro, ou se enrolava sob a forma de abraço esquivo pelas avenidas, ao longo dos  troncos alinhados das suas árvores.
Se chovia e se recolhia debaixo de um toldo laranja, por exemplo, olhava para si desgostosa, porque as cores não condiziam, ou porque o vestido estava ensopado e escorria num todo, sem formato, alcançando, vagaroso, as pontas dos seus pés.

A sua presença reconfortante iluminou os dois.
Com begónias na barriga e bolo de chocolate.
Era tão esguio  nem um pouco da sua figura sobrava na sombra dos candeeiros altos, lá  para o meio da noite, e por isso se escondia atrás deles.
Sentira inequívocamente a sua presença ao dançar sobre a passadeira no dia anterior, ele inadvertidamente movera-se. Um ligeiro gesto e os morcegos agitaram as asas, e restolharam incrivelmente secos. Depois foram-se embora, em busca de um lugar mais sombrio.
Estava sentada no chão, com a saia em roda de si mesma e os joelhos fletidos à altura do nariz. Aproveitara a relva como tapete persa ou como lençol de seda verde ou de cetim.
Olhou bem para o alto, viu os seus olhos muito ao longe, era de noite, não havia luz verdadeira capaz de esclarecer algumas dúvidas, ou pontos, ou pontas soltas que haveriam de rematar.
Quando a viu, sentiu uma alegria tamanha que se esticou numa linha de tinta e assim se entrelaçou no céu para formar corações e outras palavras belas, para lhe oferecer em modo de reconhecimento. Brilhava em pequenos fios.
Tão tímido como as paredes nuas das torres de um castelo abandonado, tão alto como elas, e em idêntica condição,  guardião das aves que mais alto voam nas cidades, os patos reais e as cegonhas brancas.
Ela, asas despidas das penas, que se houveram soltado e de imediato juntado aos remoínhos que se formavam entre ruelas, acompanhando as folhas, que circulavam em espiral por todo o lado, com as pernas em meias de seda, muito direitas e fusiformes, os dedos grandes dos pés descalços rodopiavam pelas praças vazias, o seu cabelo azul em liberdade, escrevia poemas no ar, enrolava-se sobre si próprio, formava nós, para se prender entre ramos, e se deixar repousar definitivamente num velho  cartaz de cartão grosso, carcomido pelo tempo passado, e perdido atrás de um banco de jardim.
Uma fada concebia o  trabalho extraordinário das tesouras douradas, quando havia necessidade, ou do enlaçamento dos fios de cobre em laços apertados, como nós. O emaranhado estava em movimento. Juntava-se às palavras que as gaivotas iam trazendo, e que depositavam por ali, sob a forma de guinchos imperscrutáveis. Brilhavam, como diamantes na opacidade dos edíficios cinzentos, ela sentava-se nos canteiros dos malmequeres, enquanto mantivessem as flores, ele descansava nos raios de luz que atravessavam as salas, oblíquos, de uma janela ao lado oposto, perfeitos para repousar.
A tinta das palavras gravadas no ar era indelével. Jamais retornaria às mãos de quem as escreveu, jamais seriam outra vez uma história  de amor colorido acontecido na cabeça de alguém. 
Não  eram nada, nem nunca tinham existido, a não ser na turvação das cores.












segunda-feira, 12 de abril de 2021

#Intriga

Preparou uma resenha de palavras sem sentido,
no papel que encontrara para 
para fazer um avião para lançar das falésias. 

Ao fim da tarde iria lá. 

Esperava que o vento soprasse de feição, 
nem muito forte, nem ausente,
só o necessário para que o objeto,
construído aerodinamicamente,
percorresse uns metros de céu a direito, 
com o focinho de papel virado para o oceano.

Escolheu frases ao acaso, porque sabia que, 
mais tarde ou mais cedo,
não  haveriam de permanecer, ficariam encharcadas, 
desfeitas em moléculas ilegíveis, 
admitindo a verdade de que as palavras escritas
não servem senão para que as leiam.

Todavia, não se preocupou com a mensagem. 

Era só uma brincadeira solitária,
uma conexão com viagens sem destino, 
ou com um quotidiano de finais incongruentes,
tanto lhe haveria de fazer que se diluíssem, ou não, 
enquanto boiavam na água, 
de olhos postos nas nuvens, 
enquanto aguardassem a desintegração. 

E portanto, sem raciocínio de maior, 
ou qualquer outro instrumento para as conectar, 
pegou na caneta que tinha no bolso, 
ajeitou a cadeira, que estava um pouco afastada da mesa, 
sentou-se mais confortavelmente 
e escreveu meia folha de uma #intriga de frases, 
errantes,
completamente alheias ao propósito de 
escrever. 

O sol desaparecera, levando a sua tonalidade amarela 
para outros lugares do mundo, 
a noite aproximava-se rapidamente
e o mar permaneceria azul por escassos momentos.

Com o braço encolhido,
para ajudar no impulso fundamental para o lançamento, 
segredou umas palavras ao objeto voador 
colando os seus lábios a uma das asas.
 
Murmurou-lhe um qualquer feitiço, 
daqueles das bruxas antigas que rondavam, às vezes, 
em torno de si.

E o avião seguiu durante algum tempo o seu vôo planador,
perdurando na brisa, até cair na água salgada.










quinta-feira, 8 de abril de 2021

o #Halo dos gatos

Os gatos sabem alguma coisa que eu não sei. 
Observo-os há  tantos anos 
e não consigo compreender onde chega o seu olhar infinito, 
ou o que ouvem no silêncio  mais do que eu. 
Esforço-me para os entender, espanto-me
quando fixam os olhos num qualquer ponto aleatório
colocado noutra dimensão, 
o que alcançam eles para lá do atingível, fora da minha zona de conforto.. 
E ainda atravessam a sala com a vaidade dos animais silenciosos, 
e se enroscam a dormir confortavelmente estiraçados em almofadas, 
ou se equilibram majestaticamente  num muro, 
a absorver o sol amarelo que lhes aquece o corpo lustroso.
Às vezes, são esfinges nos espaços vazios dos tampos dos móveis
e semicerram levemente os olhos verdes quando eu vou a passar.
Os gatos sabem alguma coisa que eu não sei...


 






quarta-feira, 7 de abril de 2021

Ocupavam 
uma #faixa 
ondulante no céu,
ano após ano, 
orientados pelo 
pressuposto
de uma certa
liberdade.
Vinham de 
terras distantes 
procurando
locais encobertos
que supunham 
ver nas árvores.

terça-feira, 30 de março de 2021

#Xian

#Xian montou no pássaro
que o levava a todos os lugares. 
Tinha sido uma oferta...
Bem que gostaria 
de se lembrar quem lho oferecera, 
mas a sua memória  gastara-se
com o passar dos anos.
O que era certo e sabido é que 
fazia bom uso dele, aproveitava
para, sem sair de casa, ou mesmo
do seu quarto, cortar as correntes
de vento e  pousar nas árvores.

domingo, 28 de março de 2021



Só deixaram as raízes das árvores 
mas elas, de corpo mutilado,
acabaram por morrer.
A terra estranhou o enredado,
agora moribundo
e que sempre a atravessara
pleno de vida,
furando de forma imprevisível
fungos e líquenes 
nutridos pelo sal que o mar
um dia deixara por ali.
As árvores, como já não existem,
já  não  me escondo atrás delas,
e os fantasmas, que antes nelas habitavam,
acorrem, indignados, a outros lugares
conversando entre si
sobre o movimento ondulante dos galhos
onde antes se sentavam para pensar.



quinta-feira, 25 de março de 2021

Não  há  cidade, das que conheço, que acorde tão luminosa como Lisboa. 
Pode ser da largueza do rio, pode ser porque fazemos bom uso das suas colinas e das espreitadelas nos miradouros, o que é certo e sabido é que cidade mais brilhante não  há. 
Eu não  andava à procura  do #Torel. Ainda que estivesse fechado, o ar fresco, o sol a incidir nas folhas mais altas dos enormes plátanos, e o silêncio  da rua eram suficientes para que não  desse por perdido o passeio, mas um velhote com quem me cruzei inesperadamente, tão cedo ainda, encarregou-se de me informar. "Está aberto", foi só o que me disse, sem eu lhe perguntar nada, ao princípio  nem o percebi, só lhe  vi a  figura, de corpo ligeiramente inclinado a dar utilidade à bengala, mas ele repetiu, sem um bom dia, sem nada, só isso, "Está  aberto", melhor bom dia que aquele parecera-lhe impossível, anunciar logo pela manhã, bem cedo, aos caminhantes solitários  estar escancarado o grande portão de ferro, dizer-lhes, "vai lá, começa  o teu dia assim, olhando, não  dês grande importância aos meus passos claudicantes e à minha bengala para caminhar. Ouve só o que te digo: "Está  aberto, o jardim. Vai lá."









terça-feira, 23 de março de 2021

Rossio

Havia algo de diferente na sua geometria. Modificara-se
Uma praça sem flores, eram  as árvores que suportavam tudo, engoliam o bulício através  das folhas e só se livravam dele com a ajuda da chuva e do vento das tempestades. Nessas alturas, era quando, também, aproveitavam para desembaraçar os cabelos esverdeados, que esticavam para o meio da cidade, até onde a sua elasticidade permitia, os galhos  mais fracos partiam, mas eram recolhidos durante a noite, nem chegavam a ser um incómodo.
Havia um homem que dormia num canto invisível, debaixo de uma varanda baixa de um primeiro andar.
Havia pombas incapazes de pousar nas arestas, pernoitar nelas, voavam para longe, para próximo do rio, para perto das gaivotas, reuniam-se na beira do tejo em pequenas porções de areia.
Atravessei o chão ladrilhado por lá mil vezes, na diagonal, havia sol estampado na água azul da fonte, cujo reflexo me cegava tantas vezes quantas o sol embatia na água da fonte azul sem peixes, nenhuns peixes naquela água redonda, quando podiam muito bem nadar por ali, sem dificuldade, na sua forma habitual de existir.
Eram prateados, todavia, não  estavam lá, mas pareciam-me possíveis, tantas vezes, vivinhos da Silva a nadar.
Havia janelas sem ninguém, espalhadas em redor, eram quadrados, paralelepípedos de vidros espelhados cujas linhas se cruzavam com as da luz.
No ponto de interseção dos pensamentos silenciosos, ficava uma igreja em pedra fria com telhados altos e  pássaros sem casa que por ali circulavam.
Para quem caminha de cabeça  baixa, com as pálpebras semicerradas e as palavras expontâneas a percorrerem-lhe a cabeça enquanto atravessam de um ouvido ao outro, inequivocamente interligadas, porém escorregadias, a praça ficou enorme e lustrosa.
Não estava ninguém,  todavia tanta gente caminhava pela praça imitando a minha forma de andar, os meus passos. Pareciam protótipos de mim. Posso sentar-me por vezes, e apenas por momentos, naqueles bancos de jardim que lá estão.










quinta-feira, 18 de março de 2021

cnffjfj

Os jarros acumulam-se
à beira dos riachos,
murmurando intrigas
e rindo do mal.
Espalham-se 
escondendo debaixo
do seu manto 
mil e uma coisas que 
rolam 
quando chove muito
e as águas se 
movem em caudal.
Quando eu sou 
esse vento, 
todas,
mas mesmo todas
as flores
se viram de costas
à minha passagem, 
sobretudo as pequenas, 
as que germinam 
entre as rochas 
e crescem, 
imprevisíveis,
nessa  incrível forma 
de existir,
presas por fios
onde quase não há 
terra,
só poeiras levantadas, 
poeiras, 
poemas intrusos 
como cristais de quartzo 
sujeitos à tempestade
feroz. 

quinta-feira, 4 de março de 2021

Em Casa de Adriana

A casita amarela em frente à sua, e de fachada idêntica porque por ali eram idênticas todas as casas, estava pintada de fresco. Tão fresca ainda estava a tinta, que o gato, ao cheirá-la, tinha encostado o nariz à parede e aparecera depois à porta da cozinha com os bigodes pintados daquela cor.

O animal, de personalidade vaidosa e suscetível, ficara um pouco aborrecido com o seu ar de troça, muito bem a conhecia para  ser possível  perceber-lhe os trejeitos, mas, fingindo uma indiferença total, percorreu metro e meio, mais coisa, menos coisa, dos motivos geométricos e carcomidos  dos mosaicos, para se ir enroscar entre umas quantas almofadas desalinhadas em cima de um cadeirão de madeira velha, costas com costas com a estante verde que continha os livros de culinária, os fascículos sobre plantas ornamentais e outras minudências do quotidiano.


Assim que anoitecia, saltava para o muro do quintal e ficava sobre ele, de sentinela, até à manhã seguinte, sem nunca chegar a fechar os olhos, e, invariavelmente, quando principiava a luz do dia, espreguiçava-se e iniciava uma pequena volta de reconhecimento pelo terreno circundante. Depois voltava.

Hoje, o seu ritual de limpeza, humedecendo a pata com a língua e passando-a pelo focinho repetidas vezes até ele ficar completamente limpo e lustroso, haveria de ser mais trabalhoso.

Duas gotas de café caíram em frente aos pés de Adriana. Foi buscar a esfregona e rapidamente tratou delas, não sem tentar, uma vez mais, remover aquela maldita mancha alaranjada, mesmo ali, dez centímetros ao lado do tapete, e que teimava em  permanecer indelével, isto porque já fora  absorvida há  muito pelos  ladrilhos do chão.

Fechou a porta, que guinchou como se estivessem a exigir-lhe um trabalho muito pesado, correu as cortinas e assim manteve as coisas até o sol deixar de embater demasiado quente, daquele lado da casa.

A um canto do quintal havia um monte de trastes velhos à espera de transporte para o  lixo. Um espelho veneziano entalado entre duas cadeiras obsoletas e cuja superfície espelhada se encontrava carcomida pelo tempo, um alguidar sem asas e cheio de sobras de folhas e água da chuva, sobrevoado constantemente por um sem número  de mosquitos quase invisíveis, mas que se percebiam muito bem nos poentes mais luminosos sob a forma de nuvem trémula e transparente.

Uma buganvília por podar espalhava uma bonita desordem, com os seus braços lilazes em liberdade. Vivia desencontrada de si mesma,  pois tanto se agarrava às coisas e lhes trepava por cima, como se deixava suspender sobre elas.

Já as luzes da rua estavam acesas quando os homens começaram a arrumar os materiais. Fizeram-no rapidamente, talvez por força da prática de todos os dias repetirem os mesmos gestos,  meteram tudo na carrinha e arrancaram, primeiro em primeira, depois em segunda e depois em terceira, e lá foram roncando até ao cruzamento, até se perderem de vista e a sua sombra comprida se desvanecer totalmente.

Tinham enfiado todos os seus capacetes cor de laranja dentro de um saco violeta, ou pelo menos assim se lhe revelaram as coisas, desses tons vivos, numa tarde de sol intenso que teimava em definir estupidamente as cores, sobrevalorizando-as. Mais tarde, num dos últimos momentos em que afastara a cortina para espreitar, vira atirarem com o saco para o fundo da bagagem, mas podia ter-se equivocado, os ambientes demasiado radiantes tendiam a enganá-la fantasiando a realidade.

As horas tinham passado na sua rotina habitual.

Adriana meteu as chaves ao bolso.

O gato, por essa altura, já estava empoleirado no muro, com a vigília iniciada, como era seu hábito, e assim ficou, de olhos abertos e verdes, à sua espera, desde que a viu sair, até que  regressou, enroscada no seu xaile de xadrez em tons de encarnado.

Atravessou a estrada e chegou-se ao muro para espreitar melhor. 

Na casa amarela estava um gato, muito quieto, não  era o seu, porque não  tinha o seu pelo negro carvão, confundia-se-lhe o ar pardacento com o brilho cinzento da noite enluarada, mas o animal, que já  tinha dado pela sua presença e esperava atentamente a sua aproximação, saltou com agilidade para o negrume do buraco entre os rododendros emaranhados um no outro, ou talvez se tivesse refugiado debaixo das tralhas do canto, ou lá muito para trás desses dois arbustos que resistiram a todas as modificações  sem serem incomodados, só uma poeira residual se lhes acumulava nas folhas, de vez em quando, conforme o pó produzido nos trabalhos, mas qualquer chuva brilhante, mais ou menos intensa, era suficiente para os avivar.

Adriana percorreu com o olhar o que a rodeava. Apreciou, com admiração,  o trabalho bem feito. Um imóvel à beira da ruína ficara com um aspecto agradável  e acolhedor, deveria apostar em arranjar a sua, pintando-a, talvez de branco. Se todos os proprietários tivessem o mesmo comportamento, ficaria o bairro mais alegre e rejuvenescido.

Os homens dos capacetes coloridos haviam deixado num canto sobras da velha casa, madeiras ultrapassadas, baldes de tinta vazios, fragmentos do espelho de um velho roupeiro. Não há trabalhos perfeitos e aquele pormenor descuidado, mas facilmente solucionável, não lhes retirava competência  e zelo. 

Em pleno silêncio  de bairro adormecido debaixo dos salpicos das estrelas, porque era sempre rápido, esse tempo que o sol levava a desaparecer totalmente no horizonte, desde que intercetava a terra até  que era engolido por ela,  atravessou a estrada lentamente, já só os candeeiros verticais, colocados equidistantes na rua, restavam para iluminar o lugar, eles e a claridade tímida da lua em quarto crescente.

Adriana ouvia o miar do gato desconhecido, com nitidez, sabia que  haveria de estar escondido no canto da tralha, ou atrás  dos arbustos húmidos, ou seguindo, com a curiosidade própria dos gatos, o veio de terra líquida  que se movia a caminho do passeio, transportando sobras de areia e cimento.

Afastou a folhagem na tentativa de o encontrar, mas o animal calou-se instantaneamente, como se não  quisesse ser encontrado. 

Os gatos eram assim, plenos de mistério,  o seu roçava-se-lhe nas pernas de cada vez que ela calçava e descalçava os sapatos, sentada no lugar dele, no cadeirão, para ir, ou para regressar, e ela contava-lhe, como lhe era possível, as suas pequenas aventuras, ou dava-lhe a sentir as batidas silenciosas do seu  coração.

Adaptou os olhos à falta de visibilidade dentro do cenário escuro e, a cada passo cauteloso que ia dando, julgou sentir na pele os suaves  toques da trepadeira entrelaçada do outro lado da rua, no seu jardim confiante.  Sabia, pela grande maioria dos sonhos que até ali tivera, que não há que recear a escuridão.

 O seu gato já  não  estava no muro quando regressou pela manhã e abriu a porta castanha, meticulosamente  pintada de fresco e  bem centrada na imagem de um dos espelhos.

Entrou. Pousou as chaves sobre a mesa e pendurou o xaile de tecido rude e cor de carvão, enquanto olhava com curiosidade o gato cinzento a dormitar tranquilamente entre a penumbra das almofadas da velha cadeira, colocada costas com costas com a estante em ébano, onde repousavam algumas revistas de culinária, desusadas teias de aranha e outras trivialidades do quotidiano.















 




segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Luz

A casita amarela, em tudo idêntica à sua, estava pintada de fresco. Tão fresco ainda que o gato, quando fora cheirar a tinta, tinha encostado o nariz à parede e aparecera à porta da cozinha com os bigodes pintados daquela cor.
O animal fcou um pouco aborrecido por ela se ter rido dele, percorreu um ou dois metros dos motivos geométricas e carcomidos dos mosaicos, subiu para a cadeira de madeira velha, e começou o seu ritual de limpeza,  humedecendo a pata com a língua a cada movimento,  e passando-a pelo focinho repetidas vezes até  ele voltar a ficar completamente limpo e lustroso.
Duas gotas de café  caíram em frente aos pés de Adriana. Foi buscar um pano,  baixou-se, limpou-as do chão e depois foi fechar a porta porque já ia entrando uma humidade desagradável.
Antes de fechar a porta totalmente, que guinchou como se lhe estivessem a pedir para fazer um trabalho difícil, 
Olhou de relance o espelho veneziano partido, pesado abandonado debaixo da buganvília  do canto, aquela que floria tanto, enroscada no seu velho suporte de metal ferrugento, crescendo ao sabor da sua liberdade, ha muito que deixara de a podar, apreciava vê-la impondo-se à ordenação  das coisas, espalhando desordenadamente os seus braços  lilazes no ar.
Ficara a ver os homens que arrumavam os materiais, na casa em frente, estava linda e pronta, a obra, usavam capacetes incrivelmente azuis, a relva era anormalmente verde, pelo menos para um dia de sol, a definir estupidamente as cores.
O dia acabou por passar, inteiro, e eles foram-se embora já os candeeiros da rua estavam acesos, uns quantos iriam ter com as suas famílias,  outros ainda iriam beber um copo para que a vida tivesse alguma coisa de liberdade. Puseram a carrinha a trabalhar e arrancaram, primeiro em primeira, depois em segunda e depois em terceira,  para, finalmente roncarem até ao cruzamento e desaparecerem numa perpendicular áquela rua. 
A sua sombra comprida se desvaneceu ocultando -lhe a continuação da viagem ficar completamente oculta pelas casas circundantes, até deixar de ser alcançável  aos seus olhos, ficaram só as luzes de outros automóveis, ou as que espreitavam de dentro da folhagem de algumas árvores,  ou as que se apresentavam-se nuas, iluminando o passeio, ou irradiando por ali. 
Adriana agarrou nas chaves de casa e meteu-as no bolso.
Voltou a abrir a porta e saíu.
O gato, que dormia fazia uns minutos, de sono leve ainda, abriu os olhos enviesados  para melhor perceber o motivo do ruído das chaves a tilintar.
Ficou assim, de olhos abertos e verdes, à sua espera.
A mulher chegou-se ao muro para espreitar melhor. O muro estava pintado de branco, a sua camisola pela altura da barriga, também ficara branca, mas ela nem deu por isso, só  reparou mais tarde, quando chegou a casa e se baixou para tirar os sapatos.
Na casa amarela acabada de pintar, estava um gato. Não  era o seu, porque o seu era preto e aquele tinha riscas. Nem ele a seguiria, preguiçoso como se tinha tornado ao longo dos anos. 
Movida pela curiosidade, atreveu-se a entrar pelo portão de ferro cinzento. O animal, que estava no quarto e último  degrau da pequena escada, igual à sua, o mesmo alpendre era assim a entrada de todas as casas do bairro, eram iguais todas as casas do bairro, saltou agilmente para dentro da escuridão. 
Adriana apreciou com admiração  o trabalho  bem feito. Era praticamente uma ruína e agora tinha um aspeto agradável e acolhedor. 
Por entre os arbustos, velhos pedaços de vida que passaram pela transformação  sem que os incomodassem, só de vez em quando eram cobertos por camadas de pó, mas a chuva encarregava-se de os limpar, bebiam a frescura do seu corpo em gotas alinhadas umas nas outras, que faziam os fios de água que passavam na estrada perderem a sua transparência e tornarem-se da cor do barro.
A terra líquida movia-se entre o passeio e a estrada, transportando sobras de areia e cimento.
Com muito cuidado onde colocava os pés, Adriana atreveu-se pela correnteza. Não  tinha o seu barco branco, mas tinha os seus pés de peixe, e as suas barbatanas. O miar do gato desconhecido continuava bem presente na sua cabeça. Talvez até fosse atrás dela, tão nítida era a sua voz.
O espelho que se encontrava à espera de ser recolhido para o lixo, num canto do jardim, engolia umas quantas reflexões  de pequenas vivendas junto à estrada principal e quando Adriana olhava para ele, via-lhe nitidamente  uma porta castanha, bem no centro, como se uma  espelho pudesse ter uma porta, como se arquitetos e engenheiros tivessem, virtuosamente, conseguido colocar uma porta no centro de um espelho.
Adriana voltou para casa. Tinha mandado arranjá-la, muito arranjadinha, os homens tinham acabado a obra naquele mesmo dia, ainda cheirava a diluentes e tintas, e outros materiais quimicamente modificados vogando sob a forma de aerossóis na atmosfera.
Naquele canto onde estava o espelho, a buganvília,  e um monte de outras tralhas sem importância, ouvia o gato das riscas, raspando a terra com as unhas, e miando aflitivamente. O seu gato preto continuava semicerrando os olhos em linha imaginária atento a todas as movimentações, a todos os sons, e fixando-os nalguns pontos imaginários. Espantosamente parecia não  se incomodar com os gritos do outro animal. Talvez não  os ouvisse.
As flores tinham -se virado de costas à sua passagem, mesmo as mais pequenas, nascidas de uma mãe  que teve de furar pelos espaços  entre as pedras para as parir. 



















sábado, 13 de fevereiro de 2021

O som do violino, arrastando a sua dor até  mim.
Dava-lhe a frescura do seu corpo a beber.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Sem Fronteiras

Se bem me lembro,
As velas derreteram sob o efeito da chuva ácida 
A paisagem ocre transportou numa folha de loureiro,
o cheiro do louvadeus qua ali pousara, instantes antes.
Essa árvore  vivia encostada a uma ribanceira, 
escura e afitivamente estática,
enquanto falava pelos cotovelos.
A fonte era mais à frente, era a nascente de água pura, 
que saía, e sai,  de uma fenda nas rochas.
Os cães ladravam tão longe, no silêncio, 
pareciam  animais selvagens 
anunciando qualquer coisa,
quem me dera que fosse a renovada  promessa das flores, 
um ano após o outro.
A estearina caíu-lhe no sapato e secou imediatamente, 
espalhou-se em redor formando flocos de neve.
Barbie sentou-se no chão, muito direita e desconfortável,  
de pernas esticadas na relva.
Nunca vi a Barbie assim.
O gato, com as suas patas mudas,
parecia o gato das botas 
aparecia subitamente de outros lugares,
ora estava em cima da mesa, ora no chão, 
ora saltava de móvel em móvel
ficando uns minutos a observar, do alto do armário,  
como se tudo aquilo fosse o seu reino,
o reino de um gato preto e forte.
Outra vez os violinos, o violono, melhor dizendo, 
arrastando a sua dor até  mim.
Bailava completamente invisivel na atmosfera, 
mas ouvia-se com nitidez.
A tempestade levou-nos as árvores,  e nós aqui, 
esperando por elas, 
ou confiando que as suas raízes mortas 
continuem a segurar a terra.
Até os meus livros, tenho ideia,
foram levados por ondas enormes,
como todos os  outros,
Estavam na praia a ver o luar maravilhoso dessa noite.
A cera derreteu devagar.
A vaga veio e levou-os para o mar alto,
para junto das sereias.












segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

O #Bule Azul

A rua não  tinha saída. Lá  em cima, na esquina da casa amarela, virava-se à direita e desciam-se trezentos metros, com muito cuidado nos dias de chuva porque o passeio era inclinado e escorregava muito. Por ali só passavam os automóveis  de quem habitava naquela rua, eventualmente uma ou outra escassa visita, um dos filhos do velhote da pequena quinta, a prima da Eduarda, sempre tão cuidadosa com uma senhora que vivia sozinha com algumas dificuldades, e, mais raro ainda, alguém que eu não  conhecesse, nem de vista, depois de tantos anos sempre atrás das mesmas janelas, desviando as mesmas cortinas.
Em boa verdade, também ninguém se atrevia a ir pelo meio da estrada, apesar do perigo não  ser  nenhum, por não  ter onde se segurar, pelo menos quando estava tudo encharcado, propício à queda, ninguém  se atrevia a caminhar longe das beiras dos muros, ou das hastes das trepadeiras que lhes acudissem a uma aflição 
Nesse dia, e apesar de ser a milionésima vez que andava a pé pelo passeio, habituadíssima à humidade escorregadia cobrindo todas as superfícies deixando-as melosas e traiçoeiras, deixei-me resvalar.
A queda não  foi violenta, ainda me agarrei ao galho de uma buganvília, mas  atrapalhei-me e e o que consegui foi apenas arrancar-lhe duas folhas que permaneceram na minha mão até ao fim.
Talvez a dinâmica do tombo tenha tido alguma coisa a ver com o facto de eu ter rolado pela rua abaixo, com os olhos fechados e os braços  a protegerem-me a cabeça, ou talvez em qualquer jeito, ou pose, aconteça, e a qualquer um, convenhamos que esta rua é mesmo muito inclinada, só sei que, pelo tempo que ia rebolando por ali fora, já  teria passado a minha vivenda há  muito, que fica equidistante entre a primeira das vivendas e o último portão, o que está  mesmo virado para a subida, sempre aberto, como se fosse a grande  boca de um animal grotesco, capaz de engolir tudo o que lhe apareça à frente.
A rua angulosa obrigou-me a continuar a rolar, a rolar, a rolar...
Passada uma infinidade de tempo, senti-me a diminuir de velocidade, quase parando,  sem que a minha vontade fosse responsável por qualquer dos meus movimentos, e, finalmente, embater contra algo bem sólido,  estancar, e parar por ali.
Abri os olhos e esfreguei o braço dorido do embate. 
Havia árvores majestosas para onde quer que olhasse, arbustos florindo para as abelhas e as abelhas iam e vinham pelos caminhos iluminados só pela beleza do sol. Havia  borboletas alegres que riam baixinho, pelo menos assim me pareceu, aproveitavam a última luz do dia, acompanhavam-me de perto o suficiente para as ouvir.
Decidi naquele momento ficar mais tempo para ver como seria a noite. Podia ter o privilégio  de ver os pirilampos luzindo nos cantos, ver as estrelas nuas, no céu.
Apertava conscientemente as folhas arrancadas à buganvília na minha mão direita, que eu não sou de me deixar enganar, e com a mão esquerda  livre, tocar as páginas interiores de veludo das videiras, com as suas uvas tremendamente roxas e redondas, em cachos de cristal.
Passaram talvez umas horas, quando resolvi retornar ao meu jardim, à minha sala de estar. A madrugada não  se tinha revelado tão encantadora como tudo me levara a crer, precisava descansar os olhos dos campos de azedas de todas as cores, do gato esfíngico olhando o mar, do muro em frente, da lua enorme espalhando aleatoriamente o seu mistério por todo o lado.
Havia algo de familar naquele lugar, embora, que me lembrasse, nunca lá houvera estado.
Percebi, após alguns minutos de confusão, ter entrado naquela quinta onde ninguém  se atrevia a ir. Diziam ser assombrada, mas assim numa primeira impressão, era dos locais mais aprazíveis de todos os que me foram dados a conhecer.
Confesso que me deixei ficar porque a  beleza das coisas era tanta que fiquei extasiada, nem me lembrei de feitiços  ou maldições, entrei pelas reentrâncias, pelas pedras escavadas em escada no meio do nada, bebi água duma fonte dourada, porque já estava com alguma sede, e segui caminho. 
Depois de várias voltas à toa, acabei por me perder.
Terei, talvez, adormecido escondida numa sombra, exausta e sem qualquer orientação. E assim, a dormitar levemente,  lembro-me vagamente de um vago sonho que sempre acabo por ter.





sábado, 30 de janeiro de 2021



Era uma vez, em tempos que já  lá vão, uma camponesa, que apanhava couves na sua horta para vender mais tarde no mercado, quando, subitamente, uma das ditas se transformou num príncipe. 
Para além  da pele um pouco esverdeada, talvez demais para um ser humano, o príncipe era em tudo igual aos outros príncipes que conhecemos, tanto os que existem mesmo, como os que chegam até  nós através das histórias  de encantar.
A camponesa, quando viu aquela figura tão  esbelta, tratou logo de ajeitar o cabelo, que lhe caía despenteado sobre a testa, endireitar as saias, e limpar as mãos ao avental. 
O príncipe  couve acordou de um pesadelo a meio da noite. 
Deu por si sentado no chão sem a sua capa verde e com uma bela camponesa, isilda chamava-se ela, a olhar para si e a endireitar os cabelos conforme conseguia.
Tomou-se de amores por ela, mas, nessa época  longínqua , e apesar de alguma bruxa endemoninhada o ter enfeitiçado, não era permitido aos legumes apaixonarem-se por seres humanos, e foi com uma grande tristeza que falou assim:
_Isilda, sou uma couve, e nem sequer sou uma couve portuguesa, sou um repolho Isilda, sou um repolho, não  me posso apaixonar. E que fazer se a #sensualidade dos teus gestos me deixa louco? O que faz uma couve repolho louca transformada em príncipe  nestas situações? Diz-me! Terei amigos que me ajudem? Magos que me livrem desta maldição? 
Isilda sacou da faca de cortar a hortaliça,  que tinha dentro do cesto de vime. 
_Queres que te faça em Juliana? Ou caldo verde? Não  por mim, mas por ti. Vejo que sofres._
Clorófilo soluçou, comovido, mas recusou a proposta de Isilda, com um ligeiro abanar de cabeça.
Contam os antigos que por aquelas terras,  em noites de lua cheia, o fantasma do príncipe couve ainda hoje aparece nas hortas, a choramingar. 

















e, dava-lhe a frescura 

do seu corpo a beber.

sentavas-te, silencioso, 

com os olhos fixos num

 ponto inantígível para mim.

O gato está sentado, 

quieto e silencioso, 

com os olhos fixos 

num ponto inatingível.

Faz-me companhia 

enquanto olho para 

o casaco e me lembro 

de alguns episódios que 

lhe estão agarrados à cor, 

ou ao formato, 

ou ao cheiro, não sei, 

de quando me contavas 

segredos e eu, por 

encantos e feitiçarias  

te dava a frescura do 

meu corpo a beber.

Deu-lhe a frescura do 

seu corpo a beber,

O gato está sentado, quieto

 e silencioso, junto a mim.

Fixa os olhos num 

ponto inantigível, 

daqueles que só os 

gatos conseguem ver.

Do outro lado da sala, há 

um casaco pendurado no 

cabide, com histórias  que lhe 

estão agarradas à cor, 

ou ao formato, ou ao 

cheiro, não  sei.

Contavas-me as tuas

aventuras e desventuras

e eu dava-te a frescura do 

meu corpo a beber.

A viver na companhia 

de velhos vasos com

 flores alagadas pela

 chuva insistente.

Velhos vasos alagados

 pela chuva insistente,

Tomavam conta da casa.

O gato nem queria saber.

Velhos vasos alagados

E a chuva insistente 

Batendo à porta

Dando-lhe frescura 





O gato nem queria saber. Só queria dormir sossegado e assim, quem tomava conta da casa eram velhos vasos alagados pela chuva insistente. 

No momento da camélia b se aproveitar da frescura das suas gotas era quando elas caíam brancas, sobre o inverno








quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Uma #Pauta para Pássaro

 À conversa com um pássaro que me veio pousar no parapeito da janela, contei-lhe os meus receios.

Acharão, decerto, estranho que tenha iniciado conversa com uma ave, já que, para além de não falarem para nos poderem responder, nem sequer são bons ouvintes, cortam-nos a palavra constantemente, para cantarolarem pequenos trechos melódicos sem interesse nenhum, muito melhor do que eles cantam alguns homens e mulheres, muito mais belas são as notas dos instrumentos musicais que o homem foi inventando ao longo dos tempos.

Ainda assim, e muito por não ter com quem falar no momento, expus-me a essa situação ridícula e embaraçosa, acaso algum vizinho passasse por ali e desse conta do insólito.

Durante alguns segundos, em que esperei de forma inconsciente que ele fizesse o que lhes é habitual, que seria partir como chegou, naqueles seus jestos nervosos e delicados, quase parece, às vezes, que nem chegam a pousar nas superfícies, tal é a rapidez e a instabilidade com que se movem, ficámos-nos a olhar mutuamente, cada um à espera da reação do outro.

Após esse período, que me pareceu muito longo, mas que provavelmente nem terá sido, somos enganados muitas vezes pelo tempo, comecei a contar-lhe, não direi a minha vida toda, porque também não sou assim tão idiota, que, sem o conhecer, lha fosse narrar ao pormenor, para ele ir fazer mexericos com os vizinhos,  sob a forma de trinados e gralhadas.

Logo no momento seguinte, e porque não foi a primeira vez que me pareceu vê-lo esvoaçando no jardim da casa em frente, à procura de alguém, arrependi-me. 

Como eu imaginava, pouco ouviu do que eu lhe disse, parecia uma conversa de tontos, eu falava em alhos e ele respondia em bugalhos, e dali não saímos durante toda a manhã. 

A determinada altura, confesso que não saí mais cedo dali, nem foi tanto por mim, o sol, no seu percurso arqueado, bem que me incomodou em determinados momentos, senti-me enebriar demasiado pela sua languidez, foi mais pelo animal, que parecia satisfeito por ter alguém com quem partilhar a manhã.

O clima é instável nesta altura do ano e, de um momento para o outro, o céu ficou cinzento e uma chuva forte, sob a forma de aguaceiro, começou a cair. uma chuva inadequada para aquilo que me ia sair da boca, em tom irado e dominador,  "Voa daqui para fora, já não te posso ouvir", mas tive pena dele, eu que sou um coração de manteiga, e ele, ali onde se encontrava, estava protegido pela reentrância dos telhado, não consigo ver pássaros à chuva, incomoda-me, é obvio que o deixei ali estar.

Por tudo isto, acabei só por lhe confessar por onde andava de noite, quando fechava os olhos, mas isso não é coisa pouca, são os nossos sonhos que se revelam, mesmo aqueles que se prendem com o facto de estarmos acordados, 

No dia seguinte, bateram-me à porta. Estranhei, à quela hora, ou a outra hora qualquer, não era comum que alguém tocasse à campaínha sem um prévio aviso, um telefonema ou uma simples mensagem de telemóvel.

Um desconhecido, com nariz adunco e cara de poucos amigos e que se encontrava desenhado na minha cabeça  há muito, ali estava agora, parado à minha porta.

_Escadas que sobem e descem sem fim possível, odores flutuantes que vagueiam entre as velas e as suas chamas e sombras que se deslocam nas paredes pelo tremor delas? Universos diferentes? Tem de me acompanhar, está presa!_

E aqui fiquei, já nem sei por quanto tempo, encerrada numa gaiola.