quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O frigorífico

O objetivo tinha sido apenas tirar o leite do frigorífico para encher um copo e beber, não era suposto estar a reparar como ele se tornara tão grande, ele que tinha sido adquirido com o objetivo de refrigerar a comida de uma família numerosa.
E ao espreitarem o que havia dentro das janelas iluminadas, ou um ou outro movimento que podiam observar, imaginavam-se a viver outras vidas que não as suas.
Dali via-se a vila a descer a encosta até mesmo à praia. Nos dias de chuva as telhas molhadas e escuras, e os seus reflexos cor de chumbo e nos dias de sol nem é preciso imaginar muito para as ver a brilhar.
A fonte pingava.
Porque não falas, Mila?
A porta do frigorífico rangia.
Mila! Vem para cima! E foi! Levantou-se do banco, as folhas também desprendiam das árvores, a cair para o chão com o vento. Subiu as escadas a correr.
Chamei-te Emiliana porque queria gritar Mila, daqui da janela. Imaginei-te a seres aquilo em que realmente te tornaste. Uma linda menina!
Mila, porque não falas?
O horizonte entrava pelos olhos de Mila e expandia-se já dentro do seu corpo, e aí, nessa altura, as palavras não eram sequer possíveis, não são possíveis, às vezes, as palavras.
A fonte pingava e o luar iluminava de forma a não deixar perceber, e Mila, incapaz de falar pensava, "porque não me beijas antes, agora? Nem preciso falar para que entendas a vontade que tenho, o meu arrebatamento!"
Ah! Copo de leite! Dás-me essa tarefa cansativa de conservar a limpidez dos olhos, desacompanhados assim do rosto.
Mila! Mila!
Subiam de mão dada, estafados, aquietavam-se no silêncio cortado pelos pingos da fonte. A praia, por não estar assim tão perto nem se lhe ouviam as ondas, e o oceano era apenas uma faixa de outra cor.
Mila, porque não falas?
"Não vou dizer que te abraço todos os dias, ou vou? Não vou dizer que o teu corpo aquece o meu como nenhum outro."
Debaixo da árvore, Mila deitada de costas.
A mãe, da varanda, acenava, e ele ao fundo da rua, ambos chamando por ela.
"Ouve com as tuas mãos, se quiseres."
Até os gritos das gaivotas, distorcidos pelo vento pareciam querer chamá-la, Mila, Mila!
O frigorífico...! Esse enorme monstro de metal com o leite lá dentro, o leite que sobe e desce por escadas dolorosas, até à porta que dá para o largo, que se mantém igual. O chão empedrado, a árvore, o banco, e as pessoas animadas a passear.
Olha! Aqueles ali, vês? Deram um abraço enquanto fazem o jantar! Mila, porque não falas?
"Por acaso ia agora dizer-te que me fazes arder em febre? Ou por acaso não sentes que somos donos do mundo, aqui em cima! Que temos tudo para nós! Alcança o que conseguires, vê o que os teus olhos te deixarem ver, mas por favor, concentra a tua atenção nesta água em gota. É um som único! Repara!
Porque não falas, Mila?
A mãe também perguntava. Tu nunca falas, Mila! Queixava-se do mesmo, a mãe.
Um saquinho de compras e é um martírio. É chegar aqui arfando devagar.
Agora o frigorífico tão grande.
Fala comigo, Mila! Não fiques a ouvir em silêncio o ruído do meu velho motor a trabalhar.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Gabardina ( Enciclopédia Ilustrada )

A Lina
é que tinha
uma #GABARDINA
Tinha-a desde menina
e a Lina
não percebia
porque não lhe servia
se lha tinha dado a mãe
e lhe ficava tão bem,
na altura!
E a Lina
tentava vestir
a gabardina
e nem apertavam os botões
enormes e comilões,
anos de toucinho e feijões,
e desistia a Lina
de vestir a gabardina
e acabou por a dar
a um dos irmões!
( que eram pobres e magros e não tinham o que vestir e também não sabiam escrever, como deve de de de ser )

Castanha

                                              Não podia ter corrido de outra forma.
                                              O sol oferecia uma enorme quantidade de luz
                                              a passar por entre as folhas das árvores.
                                              E elas,
                                              em fase de ficar nuas.
                                              Antes,
                                              antes da nudez completa,
                                              expressavam-se nas mudanças de tom
                                              transformando copas verdes e exuberantes
                                              em imagens amarelas e castanhas.
                                              Não podia ter corrido de outra forma
                                              ofuscado pelo dia radioso
                                              absorvido pela parte viva do corpo
                                              puxava para si o brilho de tanto mar ali perto,
                                              mas qualquer mar com este sol seria assim.
                                              Antes,
                                              antes da nudez completa,
                                              não podia ter corrido de outra forma,
                                              ficaram pernadas e galhos cor de terra
                                              virados, como grandes braços, para cima

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Lembranças EI (adaptado)

A casa cheia de objetos supérfluos e inconvenientes, amontoados pelos cantos, garrafas e embalagens vazias.
(Numa persistência encantadora e comovente, com as palavras adequadas, conseguiu evitar-lhe um buraco sem fundo).
E era aí que dizia, as tuas palavras não me matam a sede, quando se virava para ela.
A pancada maior são escritores que não me matam a sede.
Tenho alguns elogios para ti, mas não me matas a sede! E dizia: Que previlégio ser alguém solitário mas que os outros abraçam.
Espreitava da pequena janela, para ver os plátanos, o que pouco aquece ou pouco arrefece, a mãe dizia, hei-de levar isto para aqui e para ali. Dava pequenas voltas, passos absolutamente curtos, mas não me matam a sede as tuas palavras. Repetia maravilhada de encantos invisíveis.
A roupa suja, os sacos e de vez em quando um simpático sorriso sem alguns dentes.
Que previlégio, que previlégio descer ao fundo do mar, as tuas palavras não me matam a sede, era tudo tão lindo com os peixes de cores vivas e as algas basculantes, tudo pintado como os limões e as laranjas que me trazes.
Que previlégio as tuas palavras não me matarem a sede, afogadas naquele copo de água. Enfim!
E a janela? A janelita? Praticamente um postigo, um quadrado de vidro numa moldura de madeira., as tuas palavras não me matam a sede.
A puxá-la pela mão, #LEMBRANÇAS, a casa cheia de lembranças pairando irreais ou acumuladas em tralha sobre os móveis, onde por sua vez sempre se move uma graciosa amálgama de sombras de sol e de folhas!
O que também me serve de amparo são as tuas palavras que não me matam a sede, percebes?
É a janela, é o postigo. O outono repetido vezes sem conta, o pó sobre a mesa, o pequeno troço de estrada que nele fiz com a ponta de um dedo.
E as tuas palavras não me matam a sede, só o movimento impercetível das velhas cortinas.

Maçã EI

Partiu-a, descascou-a,
e, em silêncio,
ofereceu-lhe o primeiro quarto
daquela #MAÇÃ fresca
que ela comeu
saboreando, devagar,
o gesto.
E o corpo dela
acordou de imediato,
sentado
numa cadeira de cozinha
e confortou-a
com eficácia,
metabolizando rapidamente
o açúcar.

Pasolini EI

Na televisão dá o Porto não sei quem e por aqui uma onda demoníaca de lívidos desesperados afirmam que estão quase doidos varridos.
Propuseram-se saber tudo sobre Pier Paolo #PASOLINI ,o três pês. Pintaram-no de preto e de tinta, viram-no um jovem arrebatado, um velho irreverente, um génio da lâmpada, com profusão, difração, reflexão e muitos anos de luz, transformando assim o transformado, até saber tudo de tudo.
Percebia-se que eram renegados porque trocavam as voltas, não ligando a dois sentidos nem a um, e, sobretudo, porque embirravam demais com o sacana do homem, e insisto que estavam homogeneamente lívidos precisamente porque nunca mais os vi a apanhar sol.
Pier Paolo Pasolini, pá pá pá, pé pé, pó pó, e iam batendo com os pés no chão, e com as mãos na parede, em ritmo alucinado, maluquinhos, hi hi hi, a cantarem: Ó três pês, ó três pês, vem já aqui!

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Um Poema Vazio?

           


                            Um poema vazio
                            Sem folhas de outono
                            Sem pontões de mar tranquilo
                            Sem o sol se pôr
                            ou nascer
                            por trás do mar ou das montanhas.
                            Sem rimas!
                            Oco como um dia cinzento
                            mas não há dias cinzentos
                            Só folhas,
                            que no outono vão caindo
                            tão leves que me levam
                            para um poema vazio.

                            Um poema delicado
                            sem grosserias ou maus modos
                            Só amor do mais amado
                            mas sem rimas ou horizonte
                            nem as abelhas a zunir
                            nem um livro
                            aberto sobre as pernas.
                            Nem um só dia sem vento
                            ou as folhas no ar,
                            incertas,
                            tão leves que me levam
                            para um poema vazio.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Queda ( Enciclopédia Ilustrada- Adaptação de um texto que não sei o que lhe fiz)

No desleixo desleixado dos cadernos pela casa está um texto, que é impossível agora de encontrar.
Nesse texto está descrita uma #QUEDA bonita que um dia me deu para escrever.
Era a história, construída, de uma jovem circense que se lançava das alturas, não caía, lançava-se de verdade, elegante e temerária, para depois se reerguer orgulhosamente forte, com o que aprendia sempre ao caír!
De quanto mais alto se lançava mais o seu corpo elástico e ágil maravilhava, e todos pagavam de bom grado, porque adoravam sentir o medo e a coragem através dela!
Os aplausos calorosos, os seus olhos determinados, juntamente com o brilho de milhares de lantejoulas, tudo se misturava e reagia entre si, formando átomos de energia predominante que fluía, gasosa, por todas aquelas veias.
Onde é que andará essa merda desse texto?

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Onde está o Wally?

Para si era invisível a estreiteza do que o seu mundo pequeno e a sua péssima memória lhe davam, o movimento circulatório da rotina. Um exercício com provável propósito, mais nada.Sem aquele preenchimento necessário, uma espécie de universo perdido, uma pequenez de vida.
O seu mundo pequeno, de que se esqueceu, e lhe sobraram apenas algumas palavras de hoje, de ontem e de amanhã, estéreis umas, outras, ao contrário, fecundas.
Da sua absorvância brotavam todos os anos flores de varanda, que tomavam uma importância, nem sabemos que importância tomavam, e o planeta rodando sobre si!
No entanto, e por outro lado, a pequenez do seu mundo era mais que força brutal, avassaladora e persistente, e era nisso e apenas nisso, que era grande e pequeno, pior ainda, enorme ou insignificante.
Aquela insistência dele em pôr nas frases um simples estou vivo, repetidamente, como se os outros não soubessem.
Ouve só o outono, o crepitar das folhas, debaixo dos nossos pés. Ouves? Olha ali aquelas, num remoínho de vento, rodando como eu, em espiral!
Nem fixava a memória dos livros, esses livros, um problema quixotesco, melhor dito, um universo infinito.
Atormentava-me a sua pequenez de mundo, a sua falta de memória, uma memória sem tenacidade nenhuma, lembrando apenas uma ou outra coisa pequena, e depois, aquela explosão! Parece que ao explodir se espalhava em estrelas no firmamento.
Como se os outros não soubessem!
E por saberem, eram então repentinamente puxados para o mundo mais pequeno do mundo, que é o WALLY a lavar a louça!

Eternidade ( Adaptado para Enciclopédia Ilustrada)

Um frémito!
Sem um grito
nem um tremor
nem um gemido.
Um frémito, só!
Nada a ver
com aquele torpor
que nos faz
dar balanço
a um baloiço,
eternamente,
tendo debaixo dos pés
enormes folhas,
de outono!
Numa, que apanhei,
das maiores,
onde tentei escrever:
frémito!
E ela partiu-se,
como se partem
as folhas secas,
em pequeníssimos estalos,
sem um gemido,
sem um grito!

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Navalha ( Enciclopédia Ilustrada)

Espetou uma navalha na velha.
Na virilha.
Calhou lá estar a filha,
toda ela uma pilha,
de nervos.
"Empresta aí a navalha, ó Canivete!
Eu mesma a vou estraçalhar!"
E vai de dar golpes certeiros
para lhe atingir a femural,
e enquanto a velha esguichava, dizia,
Tens um defeito estrutural.
"És uma gralha, és uma gralha!
E és de palha, e és de palha!
Uma navalha, uma navalha!"
...Horas nisto,
já a mulher estava morta há que tempos

Turismo (Enciclopédia Ilustrada)

Uma pessoa a querer escrever outra coisa qualquer, não sei bem o quê, mas é bonita.
Debruado nas pontas em rosa, e fiquei-me por aí.
Só me vem à cabeça o bendito turismo e os turistas, com os seus paus de telemóvel, e eu a querer passar, e o meu pessoal a dizer, olha aí a fotografia, e paro.
Outra vez!
Debruado nas pontas em rosa, o meu casaco, ou eu a turistar por esse mundo fora, lenço preto e cinzento, que baloiça no vento, longe daqui.
Uma pessoa a querer escrever outra coisa qualquer, não sei bem o quê, mas é bonita.
Já os restaurantes começam a lotar de turistas, de turismo, e eu a querer escrever outra coisa qualquer, mas não interessa.
Eram só os búzios ao fim do dia, insignificantes, nos restinhos de água morna, da maré vazia.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Natureza morta

Sob um pretexto qualquer
perdi a vontade.
Ai o que fazem as palavras
e o amor às folhinhas!
Nunca vi tanta falta de humildade,
junta!
Credo! É impressionante!
Nunca vi nada assim!
Cansei-me daquela coisa de ser nuvem
ou pedaço de céu!
Não é para mim.
Para além de que
odeio rimas de toda a natureza e feitio.
O que é que me deu?
As rimas costumo escondê-las
por motivos óbvios
Noutros lugares das palavras.
Apanho boleia do seu ruído flutuante,
influente,
e depois se vê...!
Mesmo assim
gostava de seguir em frente
e ainda conseguir envolver nos braços,
nem que fosse, por exemplo,
de um lado,
um ramo de margaridas amestradas,
e do outro,
um eucalipto
e dois ou três arrogantes de mãos dadas!
Ai, esta cabeça!
Uma folha seca,
pintada à pressa,
a tentar avivar
uma puta duma natureza morta!
Tentar, inutilmente
movimentar a merda da tela,
parada!
Põe-te a mexer!
Parada e parda
como o papel de embrulhar o café!
Olha! Acabou-se-me o espaço na folha!
Lá vai isto já de viés,
e sem tinta na caneta,
outra vez!

domingo, 28 de agosto de 2016

Qualquer princesa

  Era uma vez uma princesa. Não porque fosse filha de um rei ou duma rainha, mas porque era jovem e bonita, e vivia paixão com outro príncipe.
  O destino separou-os, acontece, e muitos anos depois, já a princesa mulher, rainha, vivia tranquilamente, como compete a uma senhora da sua idade, vinte ou trinta anos depois, tempo curto e comprido, tempo de algum vazio, tempo de instalada felicidade.
  Dos papos nos olhos a rainha retirou que lhe faltava o preenchimento de um pedaço de espaço, que é como quem diz, uma falha.
  Estava diferente no espelho, mas era ela. As gatas eram agora as suas princesas, e comiam peixe no chão da sala, assim como dormiam enroscadas no seu corpo, vestido com a roupa com que tinha andado todo o dia.
  Também ninguém reparava no desmazelo, naquela cabeça sozinha, naquele bichanar compulsivo.
  Um vizinho bebia imenso, o outro, a casa estava vazia.
  Muito anos depois, já a mulher rainha vivia tranquila, como competia a uma senhora da sua idade, vinte ou trinta anos depois, tempo curto e comprido, tempo de algum vazio, tempo de instalada felicidade, agora com as janelas partidas, só tinha a chuva e, conforme o tempo,um ciclo de correntes de ar muito frias.
  E quando entrava não estava ninguém. Só os gatos e a memória injetada na quietude das traseiras.
  " Quando o rio secar, os pássaros vão beber a outro lado e não aproveitarão estes maravilhosos plátanos, e um rio que é antes um riacho. De um lado o muro, e do outro lado os plátanos aparvalhados na margem, acometidos de riso por servirem de improviso para os pássaros.
Cidades de cimento, ciumento e expansível! Incrível! Do nível da qualidade dos homens!"
  Do bom tinha conhecido a vida dos filhos, exigentes na roupa e no aroma dos cozinhados. Também  conhecia os tachos e as panelas como as palmas das suas mãos gretadas, com restos de comida no fundo, um papel e uma caneta num pedaço livre da mesa da cozinha.
  Mínimo! Um bloco de notas com folhas que saem descoladas, e preso ao tampo meio limão apodrecido, e um velho regador, próprio para plantas completamente secas e desprezadas.
   "O mundo e a sua superfície! Quando os pássaros vão beber a outro lado é porque são escorraçados, ou porque não há água no riacho, lagoa, albufeira."
  " Se eu morrer, a minha morte vai limpar isto tudo " dizia muito de vez em quando, até porque morrer não fazia parte dos seus planos.
" Como eu fui feliz, meu príncipe! " ia falando, devagar, pela rua. " Lembras-te do nosso ar angelical? Lembras-te daquelas cordas, fortíssimas rebentadas? E daquela vez, na praia, os chapéus de sol, soltos ao vento, arrancados pela força da águas?"
  Era o que balbuciava pelo passeio, à procura de sobras para os gatos.

sábado, 27 de agosto de 2016

Olhos de Invenção

Na impossibilidade
de ver os teus olhos cor de mel,
e são cor de mel
porque assim os inventei,
imagino-os sem fundo,
e serão os mais bonitos
do mundo
e os meus perderão a cor
quando os teus nascerem,
impossíveis e brilhantes.
Porque,
como eu os definir,
assim ficarão,
provavelmente fabulosos,
desesperadamente frágeis,
comprovando como é fácil
reconhecer existência
nos teus olhos irreais!

manga ( Enciclopédia Ilustrada )

Umas mangas de tecido leve?
Um braço mais comprido
e na manga a faltar tecido?
Ou uma manga..., uma manga...,
em mugido?
Ou uma cheia de cocó,
que ma cagou o bebé,
cheio de caganeira,
tão querido!
Umas mangas de tecido leve?
Ou umas em forma de abrigo?
Ou nenhumas?
Mangas que o verão quente
não permite.
E depois,
coçou o ouvido
com o braço mais comprido
aquele onde à manga faltava tecido,
e gritou,
numa espécie de grunhido,
"Que se lixe, que se lixe!"

Uruguai ( Enciclopédia Ilustrada )

Quando vivia em Buenos Aires ia muitas vezes ao Uruguai, só para comer um chiquito, que é uma espécie de prego, mas muito especial e bom.
Fazia aquele bocadinho de água a nado, num instante (é só um bocadito, no mapa), e chegava lá, um lá qualquer desde que fosse solo Uruguaiano.
Deixava-me secar ao sol, isto se não estivesse um mau dia, senão tinha que recorrer a uma lavandaria, que também as há por lá.
Claro que este processo de secagem nem sempre foi fácil, sobretudo quando levava orgulhosamente vestida tanto a Nazaré, como as suas sete saias, e, será para todos um facto óbvio, a dificuldade de secar tanto tecido. Talvez por isso se usam tanto os ponchos naquele país, de leveza, beleza, e aspereza incomparáveis.
Feito isto, e já de chiquito no bucho, para não me meter outra vez dentro de água a fazer a digestão, ficava por ali a ver as formigas a passar, que é cada formigão que eles têm, de meter medo!
O problema, é que sempre que regressava a BA, era ensombrada por uma terrível melancolia, causada, talvez, pelo cansaço. Então, invariavelmente, apanhava um avião da TAP diretamente para o Porto, só para ter o prazer de me sentar na zona da ribeira, e ver a ponte D. Luís ao fundo

Vela ( Enciclopédia Ilustrada )

Uma vela que acendeu do nada
e a sua chama a tremer sem vento,
sem brisa,
ou outro qualquer fenómeno
que produzisse movimento.
A sua chama, insisto,
numa agitação descontrolada
espalhou para lá do seu alcance
pingos de estearina encarnada
que queimavam
tanto por fora como por dentro.
Era uma vela pequena, mínima,
em nada comparável
às velas dos descobrimentos.
Era uma vela velinha,
sózinha,
bem espetada,
em maleáveis,
poderosos,
e invisíveis pensamentos!

workshop ( Enciclopédia Ilustrada)

O workshop mais interessante de todos os que assisti ( frequentei? Participei? ), foi sobre coisa nenhuma. Paguei só setenta euros. Felizmente fiz a inscrição com antecedência, porque muito próximo da data já custava noventa, e eu não gosto de gastar dinheiro mal gasto.
Depois de entrarem no espaço os envolvidos sentavam-se, calados, a olhar uns para os outros, até mais ao menos o meio da manhã, altura em que se fazia uma pequena pausa para café e bolinhos, que, aliás, desapareceram num ápice, como se fossem a última refeição antes do fim do mundo!
Regressámos ao local, e novamente nos sentámos em silêncio. Isto até à hora do almoço, que infelizmente não estava incluído na inscrição, pelo que as pessoas dispersaram, e eu fui comer uma sopa ao café da esquina, em pé, com a barriga colada à "vitrine" dos pasteís de nata.
A tarde foi bastante interessante.
Estávamos nós a assimilar umas noções já bastante profundas do que é realmente o nada, mantendo-nos apenas a respirar, e a revirar os olhos uma ou outra vez, quando uma das cadeiras resolveu chiar, produzindo um som em tudo semelhante a outros que conhecemos bem, mas de natureza mais fisiológica.
A aprendizagem a que tínhamos sido sujeitos ao longo do dia, e o fortíssimo "CALEM-SE" do mentor, manteve a seriedade do evento.
A meio da tarde, outro intervalo. Bebi três cafés, que eram de borla, e aos bolos já não cheguei, porque voltaram a desaparecer numa fúria descontrolada.
Gostei! Se tudo correr bem em setembro vou a um outro, cujo tema é bastante apelativo: "O idoso transmontano, defeitos e qualidades". Estou ansiosa pela parte prática.

Xenofobia ( Enciclopédia Ilustrada)

O sítio onde trabalho é de bizarrias. No outro dia estava lá um casal correio de droga (de vez em quando aparecem), acompanhado pela polícia e com um filho de quatro anos.
Tenho por princípio não fazer juízos de valor. Ensinaram-mo, tanto o sítio onde trabalho, cheio de desequilíbrios, como o tempo e o seu movimento, inflexível.
Ainda assim comentei com um colega: "Vê lá! Com um filho de quatro anos!"
Ele respondeu-me o que eu costumo responder aos outros: "Não sabemos a vida das pessoas!"
Fiquei envergonhada. Eu a sensível, eu a informada, passando tantas vezes por advogado do diabo, procurando olhar atentamente para o outro lado das coisas, a dizer um disparate daqueles!
A verdade é que ando constantemente a tentar que não me lavem a cabeça por dentro, antes compreender tudo por mim, mas o que é facto é que esse exercício me está acessível, e, por sorte e previlégio, também me foi ensinado desde sempre.
Mas o que tem tudo isto a ver com xenofobia? O miúdo de quatro anos, os correios de droga, um reality show em nome da liberdade, ou o cheiro repugnante que um homem nojento exala? Repito. Um homem.
Se calhar não tem nada!

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Kuduro ( Enciclopédia Ilustrada )

     









Numa série policial que acompanho pela televisão, nem de propósito, e com tudo a ver com a palavra que me foi hoje proposta, o assassino era um professor de Kuduro.
A pesquisa foi complexa, embora, se estivéssemos bem atentos desde o inicio do episódio, nos   fossem dadas várias pistas reveladoras.
O assassino em questão, tinha um padrão para os seus crimes diabólicos. Esquartejava os  cadáveres deitando fora as partes que não lhe interessavam, e os kus espetava-os em sinais de trânsito.
O pormenor mais relevante para o sucesso da investigação, e que contribuiu largamente para a sua eficácia, foi a constatação em laboratório de que esses mesmos kus eram todos bastante duros.
Depois de intrincados raciocínios, elevados conhecimentos forenses, e uma boa dose de intuição, chegaram ao já mencionado professor de Kuduro, que foi apanhado em flagrante no próprio domicílio, a  apalpar a empregada, para ver se valia a pena esquartejá-la ou não.

Impossível ( Enciclopédia Ilustrada )

Na impossibilidade
de ver os teus olhos cor de mel,
e são cor de mel porque assim os inventei,
imagino-os sem fundo,
e serão os mais bonitos do mundo
e os meus perderão a cor
quando os teus nascerem,
impossíveis e brilhantes.
Porque,
como eu os definir,
assim ficarão,
provavelmente fabulosos,
desesperadamente frágeis,
comprovando como é fácil
reconhecer existência
nos teus olhos irreais!

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Tertúlia ( Enciclopédia Ilustrada )

O D. Quixote
ganhou o concurso do laçarote
um concurso de intelectuais
que se ajudam mutuamente
a apertar os aventais.
Queimaram-lhe um livro
e ele, com o Peter Pan no regaço florido,
um Peter Pan sempre com a Wendy na cabeça,
e por aí fora
a verdade é que se juntaram todos
na mansão do Barba Azul,
um homem que perdeu o seu castelo,
que lhe foi roubado pelo rei Artur.
Ou teria sido Achille Talon
a cometer esse hediondo crime?
Passei perto da estante
e ouvi-os a discutir.
Nem se dava pelo Cavaleiro da Dinamarca,
mas Frodo, esse é que dormia
enquanto Gollum, jogava em simultâneo,
às cartas com a abelha Maia
e xadrez com o presidente.
Isso é que é uma tertúlia valente,
a prateleira a tremer de contente,
e Gulliver, esse gigante,
Simplesmente sentado a ler.

Balalaica ( Enciclopédia Ilustrada )

Uma balalaica
e um universo cantante
um grão de areia
uma rocha impressionante
todo o oceano
um peixe em zigue zague
e uma alga basculante.
Duas balalaicas
e dois universos cantantes
dois grãos de areia
duas rochas impressionantes
todo o oceano
dois peixes em zigue zague
e duas algas basculantes.
Três balalaicas........

domingo, 7 de agosto de 2016

Xaile ( Enciclopédia Ilustrada )

Na gaveta havia um xaile, e de lá o retirou.
Procurou o remate, puxou a ponta e desmanchou-o.
O fio saíu todo marcado, dos muitos anos de liga e de meia, presos em malha de arroz.
Lavou a lã, em meadas, e ela num instante secou.
Mas este fio não era lã. Se fosse, as traças tê-lo-iam comido, e os buracos do tecido seriam abismos intransponíveis, seriam a impossibilidade de voltar a dobá-lo em novelo.
Mais um pouco de fio vermelho e teceria um lindo casaco para o filho.
Bem feita, xaile filho da mãe, que eras tão feio!
Para ti acabou!

Destino ( Enciclopédia Ilustrada )

Assim como odiava a intensidade
daquele mar cinzento
temente da sua força extrema
assim o amava ao mesmo tempo
e dependendo
se se via forte com a força dos deuses
ou fraco
com as fraquezas de outros homens
dúvidas,
inúmeras dúvidas pairavam à sua volta
como serpentinas, desenroladas, ao vento.
São ou não o meu destino estas escarpas?
Era ou não
o seu destino a força das águas
e o seu movimento?
Abriria os braços
num abraço vivo, imenso,
ou deixar-se-ia cair
em ritmo lento
procurando reproduzir
a harmonia das gaivotas?

Força ( Enciclopédia Ilustrada)

Não é fácil controlar aquele ímpeto brutal. Só uns minutos.
Depois, força! Muita força!
A seguir, os devidos procedimentos.
Então, essa coisa mecânica, essa objetividade de pontos de aplicação e vetores, acaba por se traduzir num corpo novinho em folha, cuidadosamente colocado sobre ti. Um corpo assim pequeno, como um boneco, mas vivo e quente.
A maior e mais gloriosa força que até hoje fiz, e que me tornou deus por momentos.

Mais Mar

Se insisto no mar
é porque o tenho em volta
e ele me foi chamando
ele e as gaivotas....
e os brilhos
e a água
calma ou revolta
e a luz!
Se insisto no mar
é porque o percorro
pela areia molhada
de norte a sul
de lés a lés
nem há melhor forma
de o conhecer,
é assim
tépido e suave
nos meus pés.
É porque o tenho em volta
e ele me foi chamando
ele e as gaivotas
e os brilhos
e a água
calma ou revolta
e a luz!

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Questão ( Enc. Ilustrada)

O cientista estava debruçado sobre o computador. A toda a volta repousavam folhas de papel, amachucadas, como prova da sua incapacidade de resolver a questão. Também no ecrã estava escrita aquela igualdade certeira, aquela verdade absoluta. Fazia uns dias que qualquer coisa no seu íntimo o tinha alertado para uma possível incorreção.
Dois mais dois igual a quatro! Há aqui qualquer coisa que não está bem. Surgida a dúvida, os dias seguintes foram dias de desassossego, mal dormiu e mal comeu!
Ora bem, dois..., mais dois...., igual a quatro!?!? Não, não pode ser! Ora bem, dois e dois...! Onde é que está o cinzeiro?
Não bate certo, esta igualdade. Pelo menos no meu espírito, esta inquestionável equação terá uma qualquer variante.
O ambiente era pesado. O fumo saía-lhe filtrado dos pulmões, e juntava-se ainda espesso, numa atmosfera densa, ao que subia do cigarro aceso.
Dois mais dois igual a quatro. Meu Deus! O que é que está errado aqui? Perguntavam os seus olhos encovados.
A mulher abriu a porta.
_Querido, tu matas-te aí dentro! Larga isso que vai começar a bola!

Des (Enciclopédia Ilustrada)

Mas que feia, a mulher, a desistir!
A Maria, no banho-maria,
um membro para cada lado,
braços e pernas desgraçados.
Estão-me sempre a desdizer!
Agarrou no bicho e desmembrou-o,
destapou a panela
e lá colocou os seus pedaços.
Muito mais do que um repasto
era um desaguisado.
Ou comes tudo, ou eu mesma te desfaço!
Pimba! Desodorizante no olho,
desiquilíbrio no espaço,
a crença em volta,
em todo o lado.
Pimba, putos desagasalhados,
uns descalços
outros calçados.
Deslarga-me, disse ao marido!
Pimba, deste por isso?
Ouvi um ruído
afinal eram só moelas desaustinadas
a lutar contra um pão de milho.
Então se é des é des, pronto!
Desamadora, Desbarcarena, Desodivelas.
Desenmerda-re!
Sua desassossegada!

Gregoriana ( Enciclopédia Ilustrada)

É óbvio para todos que gregoriano é um natural de Gregório.
A expressão muito usada em Portugal, "ir ao gregório", prende-se com o facto de cientistas portugueses de renome, terem descoberto que nesse país, quando as pessoas consomem bebidas alcoólicas em elevada quantidade, começam a dizer imensos disparates, e " vomitam-se todas".
O ponto inicial do estudo foi a constatação de que ninguém diz, nas mesmas circunstâncias, "ir ao congo", ou "ir ao reino unido".
Foi concluído que , afinal, os gregorianos não são muito diferentes de todos os outros, se retirarmos o facto de que, após alcoolizados, os gregorianos também entoam uma panóplia de cânticos aborrecidos.
Apesar dos protestos da comunidade científica, e das medalhas e menções honrosas que adquiriu este grupo de trabalho, a expressão mantém-se até hoje, inalterável.

Hera ( Enciclopédia Ilustrada)

Afinal era hera ou não era,
aquela erva azedume,
vinha da base do monte
e trepava até ao cume.
Afinal era hera ou não era,
perguntava aquela gente,
só o poeta iluminado
se era hera ou não era,
era-lhe completamente indiferente,
nem esteve para ir lá ver,
só ficava incomodado
com o ruído daquela merda a crescer!

Imaginação ( Enc. Ilustrada)

O miúdo não tinha juízo nenhum!
Subiu a uma torre enorme, e de lá planou, direito a um planeta, que encontrou preso ao chão por um cordel.
Quando voltasse, o miúdo haveria de ter à espera todo o povo com bandeiras, e a mãe aflita para lhe dar uma sova, se aterrasse de mãos dadas, com um acaso de fada que pelo céu andasse às compras.
Na sua vassoura, muito compenetrada naquela primeira lição de aprendiz de bruxa, quando o miúdo a viu lembrou-se de mulheres, e talheres, e ampéres, e malmequeres, e ao cruzar-se com ela , sorrindo, cumprimentou-a .
Um sorriso tão disparatadamente largo que engoliu litros de vento, e se transformou no ar de um balão, que depressa encheu, e lhe roubou todas as curvas do nariz.
Ainda assim o miúdo sem juízo nenhum, mirou o sol para lá da lua, mais redondo do que ele, e então, e para sempre, quando viu a fada bruxa a fugir teve medo, e, com o propósito de rebentar de propósito, chegou-se a uma das muitas pontas de uma estrela de cinco pontas em papel brilhante, algumas verdadeiras outras imaginadas.
Quando rebentou, morreu!

Job ( Enc. Ilustrada)

No outro dia ia a passar na rua um vizinho, que é bastante careca, e eu estava a sacudir uma toalha à janela. Isto é perfeitamente errado, ok! Mas por vezes acontece.
Até aí tudo muito normal, não fosse o caraças da coincidência do homem se chamar Job. Imagine-se! Parece que a mãe é hebraica e o pai é do norte.
A questão foi, que algum do lixo da minha toalha, migalhas, um lenço de papel que me escapou da primeira abordagem, e um ou outro bocadinho de gelatina, lhe ficaram agarrados na parte superior da cabeça, o que até se percebe, dado o meio mais que propício.
O sr. Job pareceu ter sentido qualquer coisa, e olhou cá para cima. _Bom dia sr. Job!_ nessa altura já eu tinha trocado rapidamente a toalha por uma enorme bandeira portuguesa.
No mesmo passeio, mas em sentido contrário, apareceu uma mulher.
_Bom dia D. Asisa! Também é filha de hebraicos, bem sabemos que ele as pessoas é por zonas.
Quando Fechei a janela, a D. Asisa retirava pacientemente o lixo da cabeça do sr. Job, deixando para o fim os refegos das orelhas e a gelatina.
Dias depois, pela cumplicidade, percebi que são namorados.
É impressionante como a palavra mágica vem sempre ao encontro de situações que já vivi!

Koweit ( Enciclopédia Ilustrada)

Entrei no espaço, ''tava a palavrinha toda triste, sentada a um canto.
_O que é que tens?_
_Ninguém faz uns versos comigo, nem nada! Mesmo que fossem parvos, eu gostava!_
A esta hora já se ouviam chorar as pedras da calçada, pela janela aberta.
Fiquei com pena. _Mesmo parvos, não te importas?
_Não, não! Vais fazer?_ E o seu ózinho em forma de olho, brilhou.
_Ouve só:
Hoje não me dá jeite
ir ao Koweit
porque 'tô doente
dói-me o peite.
_Há, que bonito, obrigada!_
E pronto, lá ficou ela toda contente

Mecenas (Enciclopédia Ilustrada)

Para o "mecenas"
serve perfeitamente
este guardanapo.
Como vai
ficar sem ele
para limpar as beiças,
irritado,
não vai mais
proteger as artes.
De qualquer forma
agradeço.
Sempre podia
não ter
um pedaço de papel
ao meu lado.

Nuance ( Enciclopédia Ilustrada)

A propósito de nuances e da associação que se pode fazer entre elas e coloração de cabelo, lembrei-me de um episódio que vivi. Este, juro pelo que há de mais sagrado, aconteceu mesmo.
Uma ocasião, uma vizinha minha apresentou-me uma amiga, que estava de visita em sua casa. Imediatamente a seguir àqueles cumprimentos habituais, olá tudo bem, eu sou esta tu és aquela, a não sei quantas, cujo nome não me lembro, deu-me a seguinte informação:
" Este foi o penteado que eu levei ao casamento do João Francisco".
Fui obrigada a olhar melhor, eu que já estava com os olhos meio fechados à que tempos.
Para dizer alguma coisa tive que pensar rápida e objetivamente, por isso , perguntei a mim mesma:
Primeiro, quem és tu, afinal?
Segundo, quem é o João Francisco?
Terceiro, qual penteado?
Quarto, será que estou a ficar maluca?
Felizmente, em segundos, encontrei uma resposta razoável para ela.
_Ha......OK!
( É p'ra multa, 'tá-se mesmo a ver!)

Oásis (Enc. Ilustrada)

Nem pensar em seguir hoje a palavra, porque as vacas lhe tiraram o sono, o único oásis, ou seja lá o que fôr!
Vacas debaixo de palmeiras, evidentemente. Ali, quietinhas, um passo fora da sombra e acabou-se o pasto. Só areia.

Oásis (Enciclopédia Ilustrada)

Oásis verde, o Tejo e as suas margens,
com Almourol ao fundo.
Oásis azul, o mar ao sol
e o sol bem amarelo.
Oásis cinzento, o mar debaixo das nuvens.
Oásis cor de rosa,
Flores de rosas brancas
e, em pequenos movimentos,
buganvílias rosa
e o seu restolhar na brisa.
Oásis lilás, e os lilases pendendo,
e as laranjas
e o provável tesouro esquecido
do mais deslumbrante arco íris.
Oásis cor, oásis lápis.

Queque (Enciclopédia Ilustrada)

Tudo começou com um queque.
Logo pela manhã o homem estava encostado ao balcão, a beber um café e a comer o tal do queque. Era um homem bem vestido, bem barbeado, cheiroso. Era o diretor do departamento.
Não sei que jeito deu às mãos, que lhe caíu o queque no chão. Baixou-se para o apanhar, e, ao levantar-se, deparou com ela. Linda!
O cabelo grisalho, a farda às riscas finas, verticais, azuis e brancas. Ela sorriu-lhe, com o ligeiro buço, e a falta de um dente.
_Bom dia, senhora! Como se chama?_
_Ermelinda!_
_Sentamo-nos? Pago-lhe o pequeno almoço. Gosta de queques?
_Adoro, Dótor! Adoro!_
_Também eu! Todos os dias como um. Que coincidência!_ disse o diretor, entusiasmado._Olhe, também vou pedir mais um para mim!_ Uma certa fragrância a desinfetante estava a deixá-lo enebriado.
Deu um belo casamento, este amor improvável. Uma festa de arromba, em que o bolo de noiva foi um queque de vinte quilos, em homenagem ao dia em que se conheceram, enfeitado com meia dúzia de passas.
(É claro que isto aconteceu mesmo. Não me atreveria a inventar tamanha idiotice!)

Tertúlia ( Enciclopédia Ilustrada)

O D. Quixote
ganhou o concurso do laçarote
um concurso de intelectuais
que se ajudam mutuamente
a apertar os aventais.
Queimaram-lhe um livro
e ele, com o Peter Pan no regaço florido,
um Peter Pan sempre com a Wendy na cabeça,
e por aí fora
a verdade é que se juntaram todos
na mansão do Barba Azul,
um homem que perdeu o seu castelo,
que lhe foi roubado pelo rei Artur.
Ou teria sido Achille Talon
a cometer esse hediondo crime?
Passei perto da estante
e ouvi-os a discutir.
Nem se dava pelo Cavaleiro da Dinamarca,
mas Frodo, esse é que dormia
enquanto Gollum, jogava em simultâneo,
às cartas com a abelha Maia
e xadrez com o presidente.
Isso é que é uma tertúlia valente,
a prateleira a tremer de contente,
e Gulliver, esse gigante,
Simplesmente sentado a ler.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Literatura Versus Ciência

Um fluxo de previsíveis células jovens
de belíssima morfologia
corre no sangue da senhora esmorecida,
e o barulho é precisamente o mesmo
que faz a hélice por entre as tílias.
Pegar em meia dúzia de palavras
e incumbi-las de gestos invisíveis
e prisões definitivas.
E as tílias iluminadas, amarelas
e o terrível som das pás
a cortar o silêncio das estrelas.
Precisamente o mesmo
do bendito helicóptero e da bendita bonomia.
Absolutamente a morte nas células invisíveis
e nas verdades impossíveis!
E aquele ruído do animal metálico,
estático, mesmo ali em cima,
e nas tílias a indescritível poesia!

Yakuza ( Enciclopédia Ilustrada )

Aqui à uns anos atrás conheci um membro duma  terrível organização.
Era um homem simpático, ainda jovem, assim para o grande, e tinha um bigode farfalhudo, já carregado de influências lusas, que se enchia de migalhas quando íamos comer uma bifana aos Restauradores.
Um dia, ao passarmos por lá, ele ficou parado na montra, encantado com aquela frigideira enorme, onde borbulhava uma gordura turva e viscosa.
Também foi nesse dia que fiquei a conhecê-lo melhor. "Sabes", confessou, "eu era para ser mau. Muito mau, mesmo! Mas depois conheci a Anabela, fomos viver para Odivelas, e nunca mais me chamaram lá do Japão. O problema é que já não me sinto terrivelmente assassino, e isso prejudica a minha carreira"!
Fiquei apreensiva. Não devia ser fácil. Sugeri-lhe o S.João. " Já experimentaste ir a uma festa, que há cá em Portugal, em que as pessoas compram uns martelinhos, e se dá com eles no toutiço uns dos outros? Talvez que te ajude"!
"Vá, não chores"! Tinha os olhos oblíquos cheios de lágrimas, " Não há lugar para tristezas! Vais voltar a ser péssimo, não tenho qualquer dúvida! Anda daí áquele largo beber uma ginginha, que ajuda muito à malvadez!
Ainda hoje somos amigos

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Poesia versus Animais ( Literatura e Ciência )

O meu gato dorme, numa almofada.
Às vezes adota posições muito curiosas,
mas agora dorme com o corpo enrolado
como normalmente os gatos fazem.
O meu gato é muito bonito.
É preto, de um preto lustroso,
em que apetece fazer festas.
Uma velha que eu conheci
tinha em casa vinte gatos
a roçarem-lhe nas pernas.
Havia pratos e tigelas com comida
em cima da roupa,
e também três cães que havia, felizes.
O meu gato mudou de posição.
Durante o movimento espreguiçou-se.
É lindo, o meu gato brilhante,
a fazer as necessidades no caixote.
Agora coça a orelha com a pata,
espero que não tenha apanhado pulgas,
que as havia na casa da velha, aos montes.
O meu gato é um gato imensamente poético,
mas podia ser uma tartaruga anorética
ou um bisonte.

Gemeos ( Enciclopédia )

Haviam de ter como eu
um gémeo dentro de mim
Se estou a pensar uma coisa
vem ela: Pensa antes assim!
Se é do signo ou da loucura
não sei nem quero saber,
só sei que de confusão é uma fartura,
e se está um dia de sol, pegunto-me
porque não está a chover?
Tem é um grande problema
seja o que fôr que fizermos
sou só eu a responder.
Paciência!
Será igual para as duas
só na hora de morrer

Inferno ( Enciclopédia )

O inferno é um conceito, ou o que fôr, que já ninguém respeita. Já lá vai o tempo em que as pessoas se aterrorizavam só de pensar naquele lugar em chamas.
Agora são apenas os grandes infernos terrenos que conhecemos, e alguns, vistos pela televisão, não passam de infernos de outros, por isso demasiado pequenos. E assim como associamos um maléfico demónio, armado de tridente, a uma simples pastilha elástica, também verificamos que o inferno é uma impossibilidade matemática, tal como o céu, visível e abstrato, a entrar-nos todos os dias pela janela.
Primeiro a visita da morte negra, e depois, meu Deus que medo, perpétuos diabinhos e eternas labaredas

Junho ( Enciclopédia Ilustrada )

Disse-me um dia
o poeta
Junho é pela certa
uma grandiosa
fonte de luz
um dia brilhante
e comprido
um grito mudo
impalpável.
Sentes?
É Junho quente
uma glória
de mês fervente
um absolutamente
uma imagem de nada
ou um Dezembro
em miragem.
Disse-me um dia
o poeta
Junho é Junho
concerteza
só folhas verdes
versos bonitos
e rimas
delicadas,
brincos de princesa
pendurados no sol
mais a brisa
que os movimenta!
Pois o poeta
que se lixe!
Vou tirar a louça
da máquina!

Lua ( Enciclopédia Ilustrada )

Dizem-me
Andas sempre na lua
por isso a lua é a minha casa
quatro assoalhadas
um grande terraço com flores
com vista para o planeta terra,
quando o permite
a camada de poluição.
Gostas de viver na lua?
Adoro!
É uma solidão maravilhosa
porque é uma liberdade infinita,
os sentidos
totalmente preenchidos
com satélites
e constelações.
Tanto que nem anda
gravita
e o que vê?
O luar a formar
aquela imensa estrada brilhante
ao incidir sobre o mar!
Alô?
Terra a chamar!
Terra a chamar!

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Vão ( Enciclopédia Ilustrada)

A minha amiga Luísa vive num vão de escada. Ainda não percebi onde é o buraco que conduz à sua casa.
Às vezes, de cá de cima da janela, só lhe vejo uma cauda comprida e fina colada ao chão. O corpo cinzento e gordo está escondido atrás da esquina.
Tem dias que não dá pela minha presença, silenciosa, um andar acima. Então, sem medos, rasteja rapidamente em várias direções, movimentos que eu não entendo, mas que ela lá sabe, a Luísa.
Fui eu que a batizei. Aliás, ninguém lhe dá o previlégio da identidade a não ser eu, mas tive o cuidado de escolher um nome que não fosse de ninguém conhecido, para não ofender, porque a Luísa é um animal nojento.
À altura dos meus olhos cruzam -se tubos na parede uns muito grossos, outros mais finos, alguns partem do chão até ao último andar do prédio. Nem vou dizer que tubos tão feios procuram o sol, que dali não se vê.
Ao meu lado, de vez em quando, arranca um velho motor barulhento, tão velho que parece não servir para nada.
Aquele vão de prédio é absolutamente deprimente. Só me chego à janela porque a Luísa, como é fumadora, fica ali a fumar um cigarrinho e faz-me um pouco de companhia!

Xisto (Enciclopédia Ilustrada)

Xisto é que é uma falha na memória, onde só existem grandes blocos de granito, ou casinhas térreas, brancas de cal.
O calor é muito, e nem os cães se ouvem, só o rumor de fantasmas de paquidermes ancestrais.
Por entre os montes, o barro e a água pura que eu ia buscar à fonte, que era, por assim dizer, o chorar duma nascente escondida, com fresco e verde a pingar constantemente, alimentando o seu lago.
Xisto não há, só blocos de granito em grandes paredes, escuras e imponentes, e uma ou outra, térrea e branca, com as velhotas à porta, a fazer metros de renda, no fim de uma tarde de verão, e a fazerem-me perguntas idiotas.
Xisto não há. Só o chão brilhante duma eira abandonada, na casa do pássaro, um animal que nunca vi mas que diziam ser uma enorme criatura, alada e triste.
Xisto não há, só sombras, lentas, por entre as árvores, e ao seu lado enormes rochas!

segunda-feira, 30 de maio de 2016

A Oliveira


    No cimo do cerro da fonte
    havia a fonte propriamente dita,
    e ao seu lado, uma oliveira.

    Era uma árvore diferente
    porque nas subidas e descidas dos montes
    não havia mais nenhuma,
    e também
    porque a sua copa de folhas pequenas
    dava uma bela sombra.

    A água da fonte era fresca,
    duma frescura natural,
    proveniente dos esconderijos sombrios da terra
    e não de qualquer maquineta elétrica.

    Agarrou no canivete,
    e, numa parte lisa do tronco rugoso da árvore
    sulcou, julgando-o indelével,
    o nome da namorada,
    e, ao mesmo tempo que o fazia,
    soletrava a palavra
    tal e qual gostava de lho fazer ao ouvido,
    murmurada.

    A água caía ineterruptamente,
    e o seu ruído produzia grande parte da paisagem.
    A paisagem era isso
    e o horizonte extendido para lá das casas.

    Aquela oliveira
    tinha o previlégio de ter uma fonte só para si,
    por isso era tão frondosa.
    Por isso,
    e porque num determinado segmento de tempo infinito,
    ficou escrito o seu nome
    num pedaço vivo de casca.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Nem acredito no que me aconteceu. A página, a  primeira página do meu conto desapareceu! Eu não fiz nada, juro!
Alguma coisa fizeste, mãe! Bem..., este programa também não é o que devia ser!
Eu não fiz nada, e foi-se a minha Mila, já é a segunda vez que a minha Mila vai, e hoje, estive toda a tarde a fazê-la crescer!
Escreve antes no blogue, mãe! Escreves em rascunho, e assim não se perde!
Mas acho que  o Joaquim nunca mais passará  a mão pelos cabelos de Mila como passou esta tarde, e o sol nunca mais fará aquele efeito nos telhados. Foi hoje. Estava na página que perdi!
E pior. Agora a Mila perece-me ridícula, e quase me dá vontade de chorar.
Hoje já nem consigo associar a palavra administrador aqui!



sexta-feira, 13 de maio de 2016

Uva (Enciclpédia Ilustrada)

Conta-nos a mitologia romana que um dia Baco foi ao médico por não se andar a sentir muito bem. Já nessa altura estes profissionais de saúde eram facilmente reconhecíveis dos outros, por andarem sempre de estetoscópio ao pescoço. Por isso Baco, apesar de nauseado, cumprimentou a pessoa que se chegava ao pé dele.
_Bom dia Dótor, 'tô tão mal disposto!_
_O senhor exagera, sr. Baco! O senhor exagera! O que é que comeu hoje?_
_Comi três galinhas assadas, duas bailarinas, e quatro quilos de uvas moscatel!_
_E beber?_
_Três litros de vinho! Ai, "tô tão mal disposto!_
_Deite-se na maca e tire essa porcaria da cabeça, se faz favor!_
_Doí-lhe aqui, doí-lhe ali, doí-lhe acoli? Pois....! Para si acabaram-se as uvas, sr. Baco! Uvas nunca mais!_

Testamento (Enciclpédia Ilustrada)

Minhas queridas e amantíssimas filhas:
Quando eu morrer não haverá testamento, porque para vos legar só tenho uma casa velha.
À medida que os anos passam, a morte é mais provável, está mais próxima. Não que a tema, tenho é pena de deixar de existir, já que sou uma apaixonada pela vida, pelas pequenas coisas, pelas grandes causas, e sobretudo pelo pensamento.
Mas o que importa agora é que não tenho nada para vos deixar, a não ser uma casa velha.
Procurei que olhassem para mim como alguém que fosse mais do que a mãe que gosta e cuida, alguém com valores acrescidos, alguém que depois de terminado o seu papel de mãe ( papel que a bem dizer se mantém para sempre, embora com uma dimensão diferente ), continuasse a existir, rica, preenchida.
O que procurei transmitir-vos foi sobretudo força. Essa energia superior à energia física, esse vigor para enfrentar as adversidades. Mas também tentei ensinar-vos o valor incalculável da boa disposição, do riso, o respeito pelos outros, o gosto pela vida.
Resumindo, o que tentei, e acho que me posso orgulhar de ter conseguido, foi que se possa dizer das duas que são mulheres com "m" maiúsculo, o que, economicamente falando, não vale nada. É apenas um pormenor de escrita. Só isso.
De resto não farei testamento, pois para vos deixar só tenho esse "m", e a nossa casa velha!

terça-feira, 3 de maio de 2016

Marta (Enciclopédia Ilustrada)

Duas Martas acabadinhas de sair do forno.

Marta 1
A Marta era uma mulher muito velha, que tinha ido parar ali.
Para lhe serem prestados os cuidados mínimos foi preciso amarrá-la, mas nesse processo rápido, ainda conseguiu arranhar e beliscar dois ou três!
Por segurança tiram-lhes sempre as dentaduras, de forma que os lábios da Marta se metiam para dentro, e ficavam com o aspecto de um vulcão extinto pelo tempo. O nariz, a sair da magreza saliente, apontava, altivo para o teto. Era só o que tinha de altivo, o nariz!
A Marta já não era uma mulher, era uma sobra do género feminino, talvez nem isso, era só uma mulher velha, só uma velha mais nada, já nem era a Doutora Marta, nem a Dona Marta, nem a senhora Engenheira.
Houve um que até lhe chamou avózinha, veja-se o descaramento, e ela, que ouvia bem como tudo, quis arranhá-lo pela indelicadeza, mas, imobilizada, não conseguiu, e teve que se pôr aos gritos: Acudam, Acudam! Ó da guarda!
Depois veio alguém que lhe fez uma festa suave na cabeça, e lhe bichanou ao ouvido: Sossegue, querida, sossegue.
E a D. Marta sossegou. Nada de mais.
É só o episódio de um conjunto de ossos sem nome que foram lá parar, e que tenho o previlégio de batizar como Ilustríssima e Digníssima Senhora Dona Marta Só!

Marta 2
_Marta, despacha-te!
Às onze tens natação, às doze ballet, às treze vamos almoçar aos avós, depois vamos às compras.
Quando chegares fazes os trabalhos. A ver se estão prontos antes da aula de esgrima, porque ainda tens explicação lá para o fim do dia!_
Caga nisso, Marta!
Foge de casa nem que seja por um dia! É o conselho que te dou!

Luta (Enciclopédia Ilustrada)

Os testemunhos de lutas estavam todos no caderno de capa preta. Guardadas as batalhas, mudas e sossegadas, o caderno fechado, no meio dos outros todos, como se nunca se tivesse passado nada.
As últimas lutas quase as perdeu, que isto uma coisa é ser um vigoroso jovem a lutar, outra coisa é lutar já mais cansado.
Por vezes nem sabia contra o que lutava. Quixotesco no meio do cimento, os moínhos de vento a persegui-lo na auto-estrada.
Outras sabia. Lutava contra previsões e possibilidades, certos movimentos, passos errados, só porque iriam dar origem a horríveis situações, tinha a certeza, uma luta de igual para igual contra o medo!
Outras nem lutava. Crescia para o acontecimento e nem dava hipótese de confronto. Ganhava só de existir, de ser forte!
Outras, encolhia-se no seu abrigo, debaixo do caderno preto!

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Xavier (EI)

O Xavier
era tão amigo da mulher
que lhe ofereceu uma esfregona
e uma colher de sopa,
e dava-lhe a comida à boca.
E era tão amigo dos animais,
salvava cães gatos e pardais
moscas e outros que tais,
e mijava nos pinhais,
o Xavier...!
Era a bondade em pessoa,
uma gravura do Foz Côa!
O Xavier exemplar,
foi lá para fora fumar,
o Xavier sem limites,
um Xavier qualquer
uma caneta e um malmequer,
o que quiser,
até bacalhau com broa!
Era um cromo da bola
com pancada na carola!
Cá para mim o Xavier
era mas era louca, a mulher!

Wagner (Enciclopédia Ilustrada)

O Wagner era um cão submisso.
Podem sempre dizer, “Escolheu o nome do animal em função da palavra de hoje”. E é bem verdade. O cão já existia, mas até agora era apenas um cão sem nome que me rondava o pensamento. Ainda pesquisei imagens do grande compositor para tentar uma relação entre os seus cabelos e o pelo do cão,ou entre o semblante de um e o de outro, mas nem toda a imaginação do mundo conseguiria encontrar semelhança entre eles. Ainda assim, parece-me Wagner um excelente nome para o meu cão.
Como dizia, o Wagner era um cão submisso. Seguia o tratador para todo o lado para que o defendesse dos outros cães do canil, alguns bem mais fortes do que ele. Quando o tratador parava, ocupado com qualquer coisa, e acontecia perdê-lo, guiava-se pelo seu cheiro, ou pelo seu assobio, e de orelhas em baixo para não ouvir tanto o ladrar dos outros, dava umas corridas medrosas até alcançar o homem, enfiado nas suas botas de borracha. Pedia duas ou três festas, abanando a cauda e dando pequenos latidos. “Onde é que andavas, Wagner?”. Adorava o som da pergunta, e deitava-se bem perto dela, em segurança, com a cabeça entre as patas.
Um dia, devido a uma necessidade qualquer, para ele incompreensível, colocaram-no numa boxe com um velho rafeiro dominante, tornado pachorrento e inofensivo pela idade, mas dono de qualquer território. Assustado, Wagner enrolou-se num canto, e ali ficou durante dois ou três dias, mal se mexendo. “Tanto me faz, pensou, só me importa que perdi o meu único amigo”.
O tratador entrou para limpar o espaço e para lhes dar comida. Wagner lançou-se sobre o outro cão, atacando-o,e, feroz como nunca fora, agarrou-se ao seu pescoço resolvido a matar ou a morrer!
Isto contou o homem aos colegas, ao fim do dia. “Um cão tão dócil, não sei o que lhe deu! Não percebo”, e o Wagner, deitado ao seu lado, a ouvir tudo, de olhos semicerrados, fingindo que dormia!

Unha (EI)

Quem já viu
a tristeza de uma mulher infeliz
escondida debaixo do verniz?
Eu vi!
Quem já viu
unhas de abandono,
as dos pés, enormes,
enroladas sobre si?
Eu vi!
Vi muitas, infelizmente vi!!
E a unhaca do mindinho,
um disparate comprido.
Tocar guitarra
ou tirar cera do ouvido?
Nunca percebi!
Unhas como cabelo
mórbidas extensões
do corpo sem vida
a crescer para além do fim!
Mas não vamos começar o dia
com imagem tão sombria.
Então vamos lá:
O gel e o gelinho
a unhinha do bebé e assim...!

Raio (EI)

Num dia de sol magnífico
uma mulher foi à praia
apanhar banhos de verão!
Os olhos raiados de raiva
o corpo enfraquecido
o humor lábil
sem qualquer oscilação.
No céu, primeiro uma nuvem
depois muitas, muitas
a entrarem-lhe pelo coração.
Primeiro trovões ao longe
depois mesmo ali em cima
mas a mulher, desatenta
os olhos raiados de raiva
mergulhou na água cinzenta
sentindo um sublime bem estar!
Quando um raio descarregou sobre ela
ficou preta como carvão
e morreu ali no mar!

domingo, 10 de abril de 2016

Quadrilha (Enciclopédia Ilustrada)

Estou bem chateada com isto!
Julguei possível encaixar na palavra de hoje o menino das partículas cintilantes que me apareceu ontem à noite.
Sendo quadrilha um grupo de pessoas cujos propósitos não são os melhores, onde coloco eu este miúdo, que até é uma criança bem sózinha, que tem vergonha dos crepúsculos luminosos suspensos no ar que o rodeia? Ele que tenta apanhá- los disfarçadamente para os pôr no bolso, um bolso que brilha mas pouco, por causa do tecido grosso, e porque o miúdo estica os braços e os aperta contra o corpo, para disfarçar aquela anormalia reluzente.
Como faço para apresentar o meu inocente miúdo e os seus refulgentes grãos de poeira?
Talvez que estejam elementos de uma quadrilha encostados numa esquina, na quadrilhice, como toda a gente, e o miúdo passe, sem que ninguém o veja!

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Jamaica (Enciclopédia Ilustrada)

Na Jamaica, imagino, existem novos e velhos e gente de vários tons.
Há homens perfeitos a terem filhos imperfeitos e vice versa, e mesmo sendo imperfeitos os filhos, choram todas as mães quando os perdem, e os pais, esses que choram menos, neles fica retida uma terrível dor no peito, imagino!
Na Jamaica, ouvimos dizer, alguns fumam charros, outros bebem uns copos, e outros ainda cozinham comidas coloridas, com enormes frutos e não sei se feijão, ou batata ou couve-flor, não sei! Mas sei que na Jamaica há hospitais e escolas, e, suponho, uns miúdos terão melhor vida que outros, e todos envelhecem, e, se calhar, acabam por viver assim, sózinhos e velhos.
Na Jamaica os casais são francamente felizes enquanto se gostam, e incomodamente vazios quando se separam, e, calculo, os cães vadios procuram comida nos caixotes do lixo.
Tenho ideia que haverá árvores, tais como sequóias, palmeiras, eucaliptos, pinheiros e bananeiras, tudo com neve. Na Jamaica deve haver neve e internet, e amores quentes, e paixões e ódios igualmente violentos, admito!
E abetos. Na Jamaica também deve haver abetos!

Karaté (Enciclopédia Ilustrada)

Um conhecido karateca
atravessou a Marateca
apoiado num só pé.
E enquanto o fazia
ia aplicando pancadas
desferindo ou lá o que é
em tudo o que mexia,
e todos comentavam:
É karaté!
Não, não é karaté!
É!
Não é!
Santa ignorância!

sexta-feira, 25 de março de 2016

Zimbro ( EI )





       Lembra-te
       que por vezes
       vagueio
       incorpórea
       entre ti
       e a tua pele.
       Como
       uma garrafa
       inteira
       de gin
       ou
       uma pequena
       colher
       de mel.

quinta-feira, 17 de março de 2016

O quintal ( Enciclopédia Ilustrada )

Um dia andava eu a deambular pelo meu quintal, lá para cima para as beiras, o silêncio interrompido pelo ladrar de um cão, ou pelo cantar de um passarinho mais enervado, os gafanhotos a saltarem a cada passo que dava.
Estava eu nesta harmonia total com a natureza, ia observando os cachos de uvas, o talhão dos feijões já em fase de secagem, os tomateiros, as alfaces, quando me apareceu um desconhecido acompanhado de um fantasma.
Vais ouvir os meus poemas, disse-me, senão lanço o meu fantasma do sovaco contra ti.
Fantasma do sovaco? Sim, mostra-lhe lá. E o fantasma levantou os braços, e eu pude ver dois enormes sovacos, muito bem rapadinhos, por onde saíam chispas de verdadeira maldade.
Bem, pensei, não tenho outro remédio, não deve ser assim tão mau.
Manda lá, então!
E o homem começou: lá lá lá lá, lá lá lá lá, lá lá lá lá, lá lá lá lá!
Aquela métrica aos saltinhos era tão desagradável, que eu fugi a correr e subi para cima de uma oliveira.
Imediatamente o fantasma dos sovacos foi em minha perseguição, embora tenha parado pelo caminho para apanhar umas folhas de couve portuguesa, para mais tarde migar para as galinhas.
Encurralada em cima da árvore, que as oliveiras são baixinhas, o homem continuou: lá lá lá lá, lá lá lá lá.
Não!!! Disse eu. E tapei os ouvidos com as mãos, o que me fez perder o equilíbrio, e caí no chão desamparada, dentro de um alguidar com água, que estava para ali abandonado há tanto tempo, que já servia de casa a alguns sapos e rãs.
Desmaiei!
Quando acordei, atordoada, não vi ninguém.
EI!!! Onde é que estão?
Estamos aqui ao fundo a roubar pimentos, para mais logo fazer uma sardinhada!
Tu vais, não vais?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Os plátanos (2)

Precisava de um caderno de folhas limpas, só vejo uns quantos todos escrevinhados, conversas inacabadas, jardins abandonados, as ervas a crescerem livremente, nada de bonito, nada de bom.
Alguns até são de outras pessoas, reconheço a letra da minha filha, usurpados a quem lhes dá o uso correto, e não para mim.
E esta divagação que encontro, começada a meio duma página, mesmo no final de outra história, e com o fim na contracapa. Percebo que é a mesma porque está com uma destacável tinta roxa.  Nem percebo a letra, nem interessa. Se não fôr tudo lixo também não passarão de voláteis pensamentos, comentários exclusos, mecânica artesanal, metros quadrados de colchas e cachecóis, feitos a pensar em ninguém, ou em alguém muito especial que nem sei, sequer, se existe!
Há! Precisava de um caderno de folhas limpas, uma caneta que escrevesse sozinha, uma aplicação para o computador.
Releio umas quantas palavras, e, insisto, da letra não se percebe nada, onde pus eu o fim desta memória, ou aquela história tão bem escrita de um homem que abre a pasta onde estão os seus poemas, e os despeja na sanita. Não, não era assim. Era uma coisa mais bonita. Espalhava-os na calçada molhada, debaixo de chuva, para que dos seus versos indeléveis não restasse nada, para lhes pôr um fim!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O Grito (2)

Era uma sala sem nada. Só as paredes brancas, o teto e o chão.
 Primeiro ouviu-se um fraco gemido, do homem acocorado num canto. Os braços em volta das pernas encolhidas, a cabeça escondida pelos joelhos.
 Depois um lamento. Um lamento quase musical, um som em surdina, tépido, ainda assim incapaz de emanar qualquer espécie de calor.
 O homem levantou lentamente a cabeça e espreitou o espaço vazio. Quebrado o mutismo continuava a sentir-se completamente sozinho porque a sua voz doce era como se não existisse, e só ele a ouvia.
 Depois um grito. Um grito lancinante e feroz, uma coisa animalesca, um urro selvático, um rugido pragmático, um incêndio que qualquer de nós tem por dentro.
 Levantou-se em movimentos rápidos com os pulmões abertos em berros insuportáveis e descontrolados.
 Queria mexer em objetos, ou, quem sabe, arremessá-los contra alguém de quem não gostasse, e que, por um mero acaso, se materializasse à sua frente.
 Pôs-se de gatas para sentir o chão com a palma das mãos, com as pontas dos dedos.
 As suas mãos afagavam o mosaico frio, e assim foi andando, de rastos, o grito a esmorecer, e, em gestos lentos, acabou por encontrar o seu canto,  um leve cheiro a vida, levíssimo e surpreendente.
 Sentou-se.
 As pernas encolhidas, os braços em volta delas, a cabeça escondida entre o corpo e os joelhos.
Depois um  lamento, depois um gemido, depois o silêncio.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Só uma impressão

Ao fazer uma pesquisa pelos canais de televisão,depois de um exigente dia de trabalho, acabei por travar o gesto maquinal de carregar no botão do comando, ao ver no ecran um programa de "bricolage". Eu, que até gosto do tema, fiquei a vê aquele canal.
A senhora que falava era esquisita, não era nova nem velha, nem feia nem bonita, mas isto é um aparte. O que interessa é que nos ensinava a fazer pequenos bonecos para construir um presépio, não me lembro exatamente em que materiais, mas andavam entre o cartão e o feltro, aqueles que usamos na escola, antes até do ensino básico. Mas isto é outro aparte.
A mulher cortou, colou, pintou, fez a nossa senhora, aproveitou os restos da pele do burro para fazer o manto da virgem para nos ensinar, também, a poupar no material. As peças para o menino Jesus foram um desafio difícil, por ser tudo tão pequenino!
Pareceram-me lindamente aquelas horas de entretém. Também eu, às vezes, me ponho a comer bolachas e a ver programas parvos de televisão, o que é bem menos produtivo do que fazer presépios.
Depois de várias horas, das quais só vimos vinte minutos, o tempo inútil foi disfarçado na montagem da coisa, vinte minutos de cabeças cortadas, colagens, secagens, um ou outro palavrão nas gravações, imagino, não que aquela senhora não o diria. Até sorriu quando espetou uma agulha num olho! Como dizia, vinte minutos depois apresentou-nos o resultado final da sagrada família para maiores de seis anos.
Até aqui tudo bem, gostei de ver. Pode ser uma forma interessante de fazer passar um tempo vazio.
Depois da obra acabada, não sei quem limpou o chiqueiro que ela fez, mas isto é mais um aparte dos meus, a mulher foi às compras, a comprar roupa para os filhos, e eu, a olhar para o écran, e ela, virando-se para a câmara enquanto segurava pelo cabide uma camisa de criança, terminou o bendito programa com uma conversa amistosa e um alegre sorriso.
"Hoje", afirmou, " foi um dia muito produtivo"!
Quando olhei melhor para as figuras do presépio, percebi perfeitamente, pelo semblante da vaca, que estava a gozar comigo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Não me ocorre

Porque é que encontrei
o Pai Natal tão triste
sentado à beira Tejo
no paredão?
Com a sua indumentária encarnada
o saco das prendas sem nada
o gorro e as botas,
tudo molhado
do suor da transgressão.
Porque estava um calor do caraças
estávamos em pleno verão!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Os plátanos (1)


 Tinha acordado com uma impressão nos olhos, , abriu-os, e viu a carita do gato.
A Maria, pequenina, tentava  chegar às bolinhas dos plátanos,  que do jardim se debruçavam sobre a varanda, nas traseiras da casa. Os plátanos, nús no Inverno de Sintra, pendurados no castanho. A boneca, deitada no chão molhado, com os braços esticados, os olhos tanto vazios como implorando, e a Maria ainda tinha outra brincadeira. Apanhava a água da chuva em tachinhos de criança, para depois  fazer uma bela duma sopa, com umas folhas de jasmim, e um pouco de terra do vaso.
Foi passear de mão dada com a mãe, e a mão da mãe, à altura dos seus olhos, envolvia a sua. 
Iam pelo passeio, e havia daquelas árvores por todo o lado. Umas viam-se inteiras, imponentes, outras espreitavam por detrás das casas velhas, todas cheias de bolinhas!  Os seus troncos enormes ocupavam grande espaço no passeio. A calçada toda torta por causa das raízes.
Sentou-se direita na cadeira, e enquanto esperava pelo lanche balouçava as pernas, ao ritmo de uma canção que lhe estava na cabeça e ia apreciando as luzes brilhantes da pastelaria, em contraste com o nevoeiro lá fora.
Chegou a casa e voltou para a varanda. Da varanda ouviam-se os pássaros e pouco mais, às vezes a avó na cozinha a fazer a comida, um ou outro automóvel mais barulhento, cujo ruído a casa não abafava. Come! Papa tudo!
E a boneca de ontem, sem articulação nenhuma, tesa como um parafuso, os braços sempre esticados, os cabelos húmidos, o musgo, a pedra.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Números


Acordava com o telemóvel que punha para despertar às seis e dez. Seis e dez equivalia  no seu relógio a talvez umas cinco e cinquenta e seis ou cinquenta e sete, porque o tinha adiantado uns minutos imprecisos, um tempo que não desse para somar ou subtrair, porque saber a hora exata, estupidamente o atrasava. Corria para apanhar o comboio, com medo de tornar fatal um segundo que fosse. Um segundo era o suficiente para lhe estragar o dia, porque o comboio, a uma hora demasiado certa fechava as portas e iniciava a sua marcha, primeiro vagarosa, e depois veloz e barulhenta, e teria que esperar umas dezenas de minutos pelo próximo. Chegava pois à estação invariavelmente, cinco ou dez minutos mais cedo. No verão, às sete horas já começa um bonito dia, no inverno pode chover a potes, e, para além da noite escura, não se aguenta o frio.
No escritório picava às nove em ponto, e depois ia tirar um café na máquina dos quarenta cêntimos, trabalhava duas horas, interrompia para beber outro, e trabalhava mais duas à espera da hora do almoço.
O meio tempo da tarde passava melhor. Meio dia estava cumprido, e as dezoito horas mais próximas, o momento de dizer até amanhã ao pessoal, e regressar a casa, para o relaxe duma novela ou dum debate de futebol. A mulher faria o jantar, em princípio, claro, porque ultimamente falhava uma ou outra vez, com a desculpa de ter outras coisas para fazer, ou a desculpa do cansaço. Às vinte o telejornal, depois um zapping pelas novelas, e a seguir procurar pelos canais um bom filme de polícias e ladrões, para às vinte e três e trinta, meia noite, se ir deitar, e, se ainda tivesse energia, talvez, quem sabe, faria sexo rapidamente, porque ao outro dia tocaria outra vez bem cedo, o prepotente despertador. 
Parabéns! Disseram-lhe um dia no emprego. Atingiu o tempo mais desejado, aquele porque todos esperamos, o dever cumprido, o direito à reforma.
O quê?
Estamos em dois mil e desasseis, passaram trinta e seis anos, senhor!

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Férias

O sol entra pela varanda já ao fim do dia.
Lá em baixo, na esplanada, um homem feliz e descomprimido imita uma galinha, e,  enquanto faz por cacarejar, rola a pança gorda e luzidia à volta dos filhos.
Os cães passeiam na calçada ao longo da areia, levando as famílias presas pela trela. Por vezes param um pouco, e os donos podem vasculhar o expositor dos chinelos, ou a barraca das malas de couro malcheiroso. Um ou dois puxões vigorosos e acabou-se a pesquisa dos vestidos tipo toalha, tipo cortina, tipo padrões insuportáveis, que "que eu quero fazer uma mija naquele poste ali à frente"!
Os miúdos aproveitam a boa onda e papam gelados e churros. Estão felizes porque o pai fê-los rir com aquela história da galinha, e também porque amanhã há mais praia.
Por detrás do bulício da marginal sobrepõe-se o mar que me vale. Calmo. Ouço-lhe as ondas reconfortantes.
Mais uma semana de tamanho relaxe e bem estar, e serei eu a fazer de chimpanzé, ou de burrié, ou de varejeira, par dar alegria a miúdos, ou a graúdos, ou a quem quer que seja!

Dez minutos de inverno (ou malha de arroz)

Eram uma vez
catorze e trinta e três
e chuva lá fora.
Para a ouvir
tirei o som à televisão
nem me interessam
os cabrões
que lá estão,
prefiro a água a correr
nos canos
que têm um nome
que toda a gente sabe
e eu não!

Catorze e quarenta e três
dez minutos de palavras,
descontroladas, enervantes,
um pouco de vento,
não muito
e chove torrencialmente!
E chuva fria!

Quando eu mandar
na meteorologia
um dia....
sairá uma lei
ou um decreto
uma ordem de serviço
um panfleto
uma brochura
uma merda de um papel escrito
e a partir daí
só haverá verão!

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O jantar do departamento

Quando cheguei, mulheres de cabelo fino e mãos grossas desfilavam pelo mosaico brilhante. Nas unhas pintadas, arranjadas na cabeleireira, espelhava-se o seu modo de vida irrepreensível, o bom casamento endinheirado e feliz, o amor dos filhos e do marido. Aquele núcleo exemplar, o cabelo louro de alguns benjamins, um fator diferenciador nestas terras de gente escura, de olhos e pele bronzeados do sol quente.
Talvez para mim o mais incómodo fossem as opiniões soltas. Tinha acabado de falar com alguém de uma enorme intransigência em relação aos outros. Comentava que os hospitais não deviam receber toxicodependentes, ou outros que tivessem decidido por si pôr em risco uma existência saudável, como se pudéssemos mandar para casa todos os irresponsáveis. Talvez o enfermeiro da triagem perguntasse: "o senhor comeu demais? Então se a culpa é sua, vá vomitar para casa!" ou "se fuma não temos nada que tratar a sua infeção respiratória, ou atentou contra a vida,foi pena não ter morrido", separando os fracos e mal comportados dos fortes e direitos, um mundo irrepreensível composto por homens e mulheres de atitude exemplar.
Encostada a uma mesa, a colega x discursava a sua intransigência em relação aos milhões que fogem da guerra." Eles que fiquem e lutem"! Não pude deixar de a imaginar de metralhadora às costas, com um chapéu a condizer comprado por uma bagatela, e a queixar-se do incómodo das varizes, ou dos dias penosos do período, como sempre a vejo fazer.
O mosaico brilhante espelhava então tranquilidade, ouvia-se o burburinho das conversas, a mulher do cabelo comprido e do vestido bonito conversava. Dizia não perceber as donas de casa que passavam todas as peças de roupa a ferro. Ela, no que se revelava ser mais prático e mais económico, dobrava atoalhados e lençóis, e depois, eventualmente,dava-lhes apenas um cheirinho de alisamento. Que grande parvoíce!
Concordei. Sim senhora, que estupidez, e embora estes eventos sejam organizados para concordarmos uns com os outros, confesso que não me foi difícil. Foi tão expressivo o discurso, e teve tanto ênfase, que me pareceu efectivamente serem estas senhoras dos grupos mais cretinos do mundo.
As paredes decoradas davam eco ao barulho de fundo das conversas.
"Estão a gostar? Tudo a correr bem"? Tinha-se aproximado a diretora. Tudo Doutora,muito Doutora, muito bom jantar. Todos sorriram, claro! A diretora afastou-se, o rabo vagaroso debaixo do carrapito.
Quanto a uma das mães de filho louro, continuava a conversar. Agradável. Quando se entusiasmava um pouco a voz esganiçava-se-lhe num timbre desagradável, pormenor que não pude deixar de associar às mãos grossas, disfarçadas pelas unhas arranjadas irrepreensivelmente, que espelhavam o mosaico brilhante, o mosaico a esta hora já com alguns pedaços de comida, ou pingos de bebidas espirituosas a colar aos sapatos.
Havia umas botas verde alface que foram o calçado mais falado do serão,e a meio do acontecimento colocou-se-me uma questão: Porque não fiquei eu em casa a comer a grotesca bifana que deixei temperada.
Já o mosaico brilhante tinha ataques de riso, o rosê farfalhudos a fazer das suas, de mistura como espumante meio caro meio barato, guardanapos já lixo, maquilhagens intactas, outras menos eficazes iam destapando as rugas, e as mãos grossas de unhas impecáveis, cubos de gelinho perfeito, ou lá como se chama aquele horror que engorda as unhas.
A voz esganiçada, os filhos nas melhores escolas, e os melhores maridos que de alguma forma também lá estavam, eu pelo menos, pude imaginá-los sentados nos carros,ou de óculos escuros encostados às motas, alguns ao telemóvel.
As mais velhas e menos encantadoras senhoras tinham pelo menos os filhos bem sucedidos, engenheiros e doutores, de gavetas imaculadas.
"Então, gostou"? Perguntou-me a diretora à despedida.
" Mais ou menos Doutora, a comida estava uma valente merda"!