sexta-feira, 30 de março de 2018

Lenho

A dona Maria e a vizinha todas as tardes pegavam nas cadeirinhas e saíam de casa para assistir ao espectáculo.
A primeira, mais curiosa, gostava de reparar bem nos pormenores, as cabeças, por exemplo, se o trabalho fosse bem feito e o material estivesse em condições, e como são uma parte pesada do corpo, caíam logo ali e ainda rolavam um bocadinho, depois, pelo chão, devagar, mas às vezes saltavam e iam cair uns metros à frente, de olhos arregalados.
Nessa tarde alguma coisa tinha mudado no cenário.
"Olha lá, ó Celeste, eles de ontem para hoje não mudaram o #lenho?
E afiaram a lâmina! Não reparas em nada!"



quinta-feira, 29 de março de 2018

Kiwi

Mas que bela primavera!
Como é bom de contemplar
as taquicárdias em flor
as dispneias cor de rosa
os #kiwis cor de bolor
simpáticos
acompanhando as pessoas.
e as varizes a treparem os muros,
resplandecentes!
Não falta muito para
desabrocharem as septicémias,
ou cor de fogo,
ou amarelo belicoso, bilioso,
vivíssimas!
Mas que bela primavera,
os pássaros a debicar
por toda a natureza elástica
as águas pluviais
tão enternecedoramente
aproveitadas
para grandes baldes de plástico,
azuis.
E os pássaros,
outra vez os pássaros,
a roubarem  sementes esterilizadas
de dentro das caixas,
com o bico a bater, repetidamente,
nos invólucros dos bróculos,
"Pimba, pimba...!"











quarta-feira, 28 de março de 2018

O menino azul

Era uma vez um menino azul.
Não era assim de nascença. Quando veio ao mundo até tinha uma pele muito rosada e vulgar nos recém nascidos, mas uma doença rara deixou-lhe esta sequela, mais rara ainda do que a própria doença, devo dizer.
Para além de tudo, não era um azul qualquer. Era um azul forte, intenso, opaco, como se lhe tivessem despejado uma lata de tinta por cima, daquelas de pintar as paredes das casas ou restaurar velhos e antiquados móveis de madeira.
Se não saísse de casa, o miúdo conseguia esquecer a sua cor anormal que lhe causava, não direi um verdadeiro problema, hoje em dia as pessoas são mais tolerantes às diferenças, mas talvez um certo mau estar. Calçava umas luvas, logo de manhã quando se vestia, e, desde que não se visse ao espelho, ele próprio se esquecia daquele azul incómodo que lhe cobria o corpo. mas bastava passar perto de uma superfície refletora, ou uma das mangas da camisola subir um pouco, para que tivesse consciência da sua diferença em relação às outras pessoas.
Apesar dos cuidados da mãe para que fosse feliz tal e qual como era, o miúdo começou a interiorizar aquele seu desajuste, e, mesmo quando ia passear no seu #jardim preferido, por ser pouco frequentado por gente, para falar com um velhote cego que estava sempre sentado no mesmo banco nos dias de sol, gostava de falar com ele porque o senhor não o podia ver, não deixava de pensar: "eu sou azul, eu sou azul, eu sou azul".
Um dia, o homem, estranhamente, desviou a conversa para a sua cor. A criança ficou espantada, porque, sendo cego e nunca lhe tendo ele contado da sua diferença, não percebeu como podia ele saber.
"É o teu reflexo que dá cor aos nossos céus,  Um dia, quando fores muito velhinho e morreres, o teu coração, que quer tu queiras ou não, tem o mesmo tom que tu, subirá muito alto até se estilhaçar e os
 seus pedaços pequenos, as suas partículas azuis, darão, durante muito tempo, calor e conforto aos outros. Viverás assim duma forma diferente, mas mais tempo e mais feliz do que a maioria das pessoas".
Mas o miúdo, não queria ser diferente, nem para melhor, nem para pior, queria, como todos os miúdos, ser igual aos outros.








segunda-feira, 26 de março de 2018

Habitação


É justo que tenhamos o trabalho de apreciar os inúmeros gestos altruistas de que a sua vida está recheada, para não cometermos erros ao avaliar o seu caráter, e é para repor a verdade que conto aqui esta história que se tem mantido apenas em família, e que me parece relevante:

Habituado a viver numa #habitação de luxo, quando lhe propuseram um apartamento no Cacém, com vista para os prédios da frente, recusou.
Mas não recusou por ele. 
Pensava nos seus próximos, na tia paralítica que ficava sem piscina para mergulhar os pés, à tardinha, no jardineiro que ficava só com três vasos numa varanda para cuidar, no cão que não gostava de espaços reduzidos.
Falava sempre mais alto a sua natureza bondosa.




domingo, 25 de março de 2018

Gavião

A propósito de #gavião, há uma ave noturna que vem aqui pousar nas árvores.
Ouço-o muitas vezes durante a noite.
Quando dou conta dele, chamo sempre alguém que por aqui esteja para que o ouça comigo, porque acho muito engraçado, vale a pena. Mas quando as pessoas se chegam à minha beira, num canto qualquer da casa, mais silencioso, onde o som do seu piar se deixa ouvir, o estúpido do pássaro cala-se. Não dá nem mais um pio. Nem mais um gritinho só, que seja.
Nunca ninguém ouve nada, claro, encolhem os ombros e vão-se embora.
Acabo por detestar o animal.



sexta-feira, 23 de março de 2018

Espada

Pensava que aquela espada já não lhe poderia ser útil, mas, quando dobrou a esquina, e se deparou com um dragão em fúria, percebeu a recomendação do seu mentor, que era, naturalmente, o professor de Histórias da Carochinha, módulo II, para que nunca percorresse as ruas da cidade antiga, sobretudo aquela zona mais turística, sem a levar consigo.
Foi rápido. Em frações de segundo, desmbaínhou-a, e desferiu um golpe mortal no animal mitológico, que se esvaiu em sangue, mesmo ali à sua frente, entre o Martim Moniz e o Rossio.
O povo, quando se apercebeu da heroíca façanha, nem tinham dado conta do perigo, pois confundiram a criatura com mais uma pomba gorda e oleosa, como há tantas em Lisboa, levou-o em braços até à entrada do metro, que era precisamente para onde ele queria ir.
Houve quem até quisesse transportá-lo mesmo à porta do emprego, mas ele, com a sua humildade natural, e com receio que as pessoas atrasassem as suas próprias tarefas, recusou.










quarta-feira, 21 de março de 2018

Cosmo

Já que me engano
constantemente,
direi que ela vive de
sopros ininteligíveis
no cabelo
ou do magma incandescente
anterior  às superfícies geladas.
Que se alimenta
das sobras dos planetas velhos,
Que sente as carícias  que vêm
do mundo inultrapassável
dos queridos mortos,
da figura da mãe,
dos versos,
ou de qualquer outro
universo, naturalmente sobreposto,
ou paralelo.
Não sei onde, nem porquê,
nem como existe
mas é assim que fala,
que comunica
numa morna linguagem
sem a necessidade imperiosa
de ter quatro olhos
ou a pele pintada pintada de verde
forte,
e por isso figurar em galerias
de fantasmas afónicos,
ou extraterrestres etéreos,
cujas canções, sem melodia,
são as línguas, os dedos,
as águas de um #dilúvio
ou de uma maré cheia,
lambendo, suavemente,
as portas dos prédios.
Já que me
engano...




















terça-feira, 20 de março de 2018

Bando

Voam em #bando
pássaros metálicos,
com as suas asas
programáveis,
e falsas refletoras
de luz.
Às vezes, repousam,
quando estão cansados,
aproveitam os semáforos
encarnados,
as garras agarradas,
ao trânsito,
trepidante, parado,
para observarem, juntos,
e com genuína
curiosidade,
lá dos beirais dos
telhados,
uma ave solitária,
grande e real,
de bico imóvel,
recortada no céu,
e pousada,
oposta e livre,
do outro lado,
num dos pontos mais altos
da cidade.









segunda-feira, 19 de março de 2018

Sem Título


Um dia, ao passar, pela milionésima vez, debaixo daquela #árvore apercebi-me de que não fazia sombra.
Fosse qual fosse o ângulo ou a intensidade do sol, a altura do dia, não havia nem vestígios dela.
Ainda me dirigi ao local umas quantas vezes com o propósito de observar melhor para confirmar, e, de facto, assim era, a sombra simplesmente não se formava.
A mim, sempre me irritaram um pouco as árvores com a mania que são espertas, e obviamente que era o caso daquela, a imitar descaradamente o Peter Pan pensando que ninguém ia dar por isso, e, em última instância, mesmo que dessem, não relacionariam o facto com o personagem, portanto não seria acusada de plágio.
Também achava que tinha a seu favor, soube depois pela sua própria boca, a sua localização no terreno. uma zona tão afastada da cidade, um pequeno jardim sem qualquer relevância, que lhe permitiria, pensava ela, imitar descaradamente o truquezinho do outro sem niguém dar conta.
Foi multada em vinte flores e duzentas folhas.
Lamentei. Gostaria de não a ter denunciado, mas sou muito zeloza dos direitos de autor da bonecada.







quarta-feira, 14 de março de 2018

Ulm

Eu resolvi ir tomar banho, mas escorreguei ao lado da banheira, e caí.
Então comecei a gritar: "Acudam! Acudam!" mas estava sózinha em casa e ninguém me acudiu.
Os filhos? Eu tenho filhos, mas não ligam, e depois de cair senti sobre a cabeça o varão da cortina e perdi os sentidos.
Foi já no outro dia que a vizinha me bateu à porta e eu chamei como pude, e ela ouviu.
Chamou os bombeiros e eles trouxeram-me para aqui, mas eu sinto-me bem, não tenho nada de especial.
Os filhos? Os filhos não estão, não me visitam, só os vejo no Natal, este ano, o mais velho, o Luis, ofereceu-me uma mantazinha para as pernas, bem quentinha, e bonita, aos quadrados azuis e brancos, e eu uso-a sempre que tenho frio. A menina, que é a do meio, a Maria, deu-me uma mala beje, pequena, ela sabe que eu gosto de malas pequenas para não andar com muito peso.
O mais novo, este ano não pôde vir. Está lá para a Alemanha, para #Ulm, nem sei como se diz isso, e ele ralha sempre comigo. "não é assim que se diz, mãe!" Este meu filho lá telefona de vez em quando, preocupa-se, deu-me um telemóvel para eu andar sempre com ele, mas eu não me ajeito, já nem sei o que lhe fiz.
Mas eu não tenho nada, já nem me doí, eu já disse, deixe-me ir embora, tenho lá dois gatos, que me fazem companhia, não se preocupe, está tudo bem.






sexta-feira, 9 de março de 2018

O Monstro Não Tem Nome

(O padrão da água no vidro
perturbava a paisagem do
lado mais barulhento)
.
Não se lhe vêem os traços
mas sim os braços
hastes pendentes
que formam quadrículas, teias,
e porque os
cabelos e as barbas movendo
será, muito naturalmente,
 o vento que lhes dará a vida.
mas é assustador,
ainda que dali não saia
preso à mãe pelo tronco.

Vejo-lhe o nariz,
e nas ramificações,
veios vaidosos, redes
de renda impossível,
sem esquema.

As órbitas, buracos impreenchíveis,
tanto no inverno,
como em copa frondosa, no verão,
e então por elas
se espreita
para o outro lado da estrada.

E as pessoas passam,
são-lhe invisíveis
e vice-versa, só eu o vejo,
o conheço,
mas porque estou no ângulo certo,
na inclinação perfeita,
no ponto estrelar que dá acesso
direto, direito legal
ao seu ar misterioso.

Nem me aborrece
o seu tamanho
desmesurado,
nem os movimentos basculantes
do seu corpo,
nem a presumível maldade
do seu aspeto.

É a força vital das folhas
dos meus olhos nos plátanos,
e o seu sopro
em rajadas por dentro
que um dia livre e presa
ao mesmo tempo
terei que abandonar,
ou serão cortadas,
e com elas morrerá
o monstro.












quarta-feira, 7 de março de 2018

Neve

Era uma vez uma família de camponeses muito pobrezinhos.
O pai era um jovem, encantador e delicado, e a mãe uma robusta lenhadora. Viviam numa cabana, na floresta com os seus seis filhos pequenos. Eram de facto muito pequenos, tão pequenos que nem consigo descrever.
Numa manhã de rigoroso inverno as crianças começaram a gritar com fome e frio, e a mãe, que tinha acabado de cuspir nas mãos para melhor aderência ao machado, largou o dito e sentou-se numa pedra, a fumar.
"Se ao menos estes flocos que caem fossem de aveia e não de #neve."
E ao dizer isto, tocou com a biqueira da bota em qualquer coisa que luziu, como se de uma estrela da sorte se tratasse, ou, talvez, uma fada madrinha, ou ainda uma moeda que lhe daria para comprar tudo o que precisava.
Assim como apareceu, o brilho desapareceu, e depois voltou a aparecer, mas depois desapareceu e assim por diante, eu sei que se torna chato, mas a culpa não é minha.
Ao verificar que nada tinha acontecido a mulher encheu-se outra vez de tristeza, desiludida com os brilhos que tinha visto.
Mas, quando ao fim do dia, se aproximou de casa, teve uma enorme surpresa. Havia no ar um aroma revigorante. O seu bem amado esposo tinha ido apanhar cogumelos mágicos, e confecionado uma sopa  maravilhosa.
Como por encanto, os meninos começaram a crescer, até atingirem o tamanho dito normal, e os pais riram de felicidade para sempre.





domingo, 4 de março de 2018

Kentucky

Novos indícios forenses indicam uma forte possibilidade para que a mãe do Bambi fosse consumidora habitual de #Kentucky.
Também reanalisaram o cadáver da bruxa má, de uma história paralela, que revelou os mesmos agentes químicos.
Esta investigação poderá dar razão aos que, na comunidade científica, afirmam que a Branca de Neve terá mudado o seu nome para Amarela Ovo Caseiro, por causa do elevado consumo de tabaco, e não, como até aqui se tem afirmado, por causa do seu problema congénito e sobejamente conhecido, na vesícula.
Este canal televisivo dar-lhe-á conta, naturalmente, das investigações dos próximos dias.
Aguardemos.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Imagem II



Sentada numa cadeira
voadora
aproveitando os poemas
e o tempo
sublime,
as palavras,
as palavras,
a forma difusa do sonho
o vento, inábil
e tonto,
rodopiando à minha
volta
em longos sopros,
cravando-me na pele
a #imagem
monótona
de um aperto
no peito,
por segundos.
E é por isso que nem
sempre
as sinto,
às vezes
não permanecem,
morrem,
neste mundo,
e é essa beleza
de que tanto
prescindo,
talvez tanto
quanto vivo,
para que seja
inequívoca a condição
de as amar.











Imagem

Já fazia uns dias que andava para limpar melhor as narinas da nossa senhora. Aquelas concavidades acumulavam muito lixo, e por isso, nessa tarde, quando andava a dar um jeitinho à capela, resolveu enfiar bem o espanador no nariz da santa.
A #imagem, para seu espanto, começou a fazer uns ligeiros trejeitos, e acabou por espirrar.
A D. Conceição, observou o fenómeno, maravilhada, e levou a mão direita ao peito para fazer o sinal da cruz.
"Milagre!"
"O milagre", explicou a angelical criatura, " foste tu que o fizeste, por seres a pessoa boa que és".
Desde então, milhares de excursionistas visitam aquele local abençoado, munidos de um espanador que pode estar incluido no preço das excursões, ou ser adquirido no local.