sábado, 30 de dezembro de 2017

A bicha pede-me, imagine-se, que eu continue a sua história. O argumento mais forte que utiliza é o facto de não haver leitor que não a reconheça,  com o seu chapelinho, muito elegante e colorido, sentada em cima da mesa.
Para além de que, diz ela, se afirmas que eu entro e saio, a toda a hora, pela tua janela, se  sou tu cá, tu lá, contigo, se privamos, e se tens o direito, até, de relatar a forma como eu enrolo a cauda à volta das patas, ou de como encostei o corpo no vidro para tu me veres pelo lado de dentro, é óbvio que, por muito misteriosos que os gatos sejam, e eu não sou exceção, tem que haver uma explicação para essas visitas. Para além de que, deixaste por desvendar o misterioso número inscrito na parte interior do chapéu.

Amanhã, tenho um chapéu de que cor?
Azul petróleo. Queres com flor, ou sem flor?


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

A casa

Nem parecia ter tido um começo, caminho infinito , porque não lhe conhecemos o fim , só caminhamos por ele porque assim tem de ser.
Talvez por isso a mulher ficava tão triste com tristezas que magoam, ou alegre com coisas sem importância, como um telefonema de um filho, lá longe na sua vida, numa casa de coisas novas, no princípio da estrada.
A sua, a sua casa era pequena, mas tinha um portão verde e o jardim, onde cresciam plantas de flores às cores, que ela tratava com amor.
Se chovia, que chovesse durante a noite, era melhor, depois de dia, a terra mole permitia arrancar as ervas daninhas, que cresciam incontroláveis, e era necessário fazê-lo  periodicamente, porque se o não fizesse, transformar-se-ia o que era belo num matagal.
É claro que os anos iam passando, dezenas deles que se contam para trás, ou se vislumbram quando se olha de esguelha, nunca diretamente, para não se perder a alegria de continuar, mas ela fazia aquele trabalho sem tão pouco usar umas luvas para proteger os dedos e as unhas, só porque lhe sabia bem mexer na terra, só que depois as unhas negras, o traço escuro à volta da pele, pareciam aos outros uma porcaria  qualquer.
De qualquer forma, aquela força impulsionadora, nada mais do que reações fisico-químicas, metabolismos  relacionados com a uma energia decrescente e absolutamente natural, que se ia desgastando, e é claro que, como já disse, tudo tem um começo, e não lhe conhecemos o fim, mas percebê-mo-lo, quando, de visita, abrimos o portão que range, e por entre as pedras nascem malvas e outros chás naturais.
Lá dentro poderá não estar ninguém,  mas está, porque vejo a sua silhueta recortada na janela. Agora o que eu não sei, é se será efetivamente uma pessoa, ou apenas a sombra curva daquilo que ela já foi.
Haverá um dia em que alguém pegará na casa, que nessa altura estará em ruínas, com buracos no telhado, a câmara municipal já enviou umas notificações, pode cair, põe em risco todos ao mesmo tempo, os que passam na rua despreocupadamente e  os vizinhos que têm infiltrações, e nessa altura far-se-ão obras de reabilitação, e ficará tudo muito bonito, o jardim voltará a ser uma alegria, quem sabe se não terá, na altura, duas ou três buganvílias em flor.
Para mais tarde o tempo, inevitável, colocar os anos sobre as costas de outra mulher.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Pombas

De manhã,
bem cedo,
uma garrafa rolou
pela ruela
inclinada.
Foi um ruído
tão intenso
no silêncio
da madrugada,
que lhes pareceu
partir-se
o enorme coração
de vidro
da cidade calada.
E então,
levantaram vôo,
em bando,
abandonando
os telhados
onde esperavam
o primeiro sol
que haveria
de secar
a telha molhada.


quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Azevia (EI)

Os pássaros aproximam-se
cada vez mais.
Se alguém se encosta ao
tronco de uma árvore,
numa pausa distraída,
eles confundem as coisas
inanimadas.
pensando que se trata
da mesma matéria
orgânica,
por causa do silêncio
ou da imobilidade.

Ainda hoje vi um
quando
atravessei o jardim.
Traçou uma perpendicular
àquele segmento do meu
caminho.
Não voava. Corria
com as asas fechadas
utilizando as patas,
numa corrida rápida.
Era um melro
e chamava-se  #azevia,
e eu achei graça
ao bichinho.





terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Yasuhito (EI)

#Yasuhito, esse malandro que nem sequer me ensina a pronunciar o seu nome, apesar de eu já lhe ter pedido vezes sem conta, resolveu instalar-se entre o Alto Alentejo e Lisboa.

Agora queixa-se que não aprecia torresmos e de migas.

Não gostasse eu de palavras, ainda ontem apanhei um saco cheio delas, que o vizinho deitou fora, e que já encaminhei para a oficina com o fim de serem reutilizadas, e assim enriquecerem os meus dias,  pelo menos as mais vulgares, não gostasse eu de palavras, também as apanho quando são só uma ou duas, não desperdico nada, a oficina é a poente, essa certeza eu tenho, desde a primeira frase do texto, e tem um cofre, onde guardo as mais raras que só utilizo em ocasiões especiais, não gostasse eu de palavras, não lhe diria para ir ver as amendoeiras em flor, lá do Algarve, que ele tanto gosta.




sábado, 16 de dezembro de 2017

Viena (EI)

A Viviane vai
de visita
aos avós.
Na viagem,
o vento
que envolve o avião
varia,
e ela, lá dentro,
não o sente
nem o vê
porque é o avião
que voa
e não ela.
Verifica,
vezes sem conta,
quando viaja,
por esse vasto
horizonte,
e ao observar os
vários
indivíduos que
varrem
exorbitantes volumes
de violetas
velhas
e de "vês"
verdadeiros
das varandas,
que vivem livros
falantes
tanto em #Viena
como em Veneza
como em Varsóvia.
Ainda te perdes, Viviane,
volta!







sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Urze (EI)

Se estiveres perdido na mata há muitas horas, longe da civilização,  que tipo de planta, ou plantas, deves tentar encontrar primeiro?
1- Estevas
2- Giestas
3- #Urze
4- Fetos
5- Coelhos

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Loja (EI)

Primeiro apontamento,
para um planeamento a curto
prazo:
primavera é profusão de flores.
Seguinte:
estava frio na #loja, as batatas
ao canto, num  estrado,
as ferramentas do outro lado,
o chão era de cimento,
húmido,
e havia umas pipas
de madeira.
Terceiro, já na oitava página:
quando vejo um buraco,
invisível, de céu,
situado entre as folhas instáveis
do outono
(há-de desaparecer, por completo),
salto sempre lá para o meio.
Em quarto, umas impossíveis
ímpares, cinco, em monte de
papel prensado,
sem nada lá dentro.
Em quinto afirmava,
escrevendo,
que a ordem estaria,
muito provavelmente,
trocada.
Em sexto, outra vez nada,
e por último, e em sétimo,
uma impensável recomendação:
passear pelo pontão
evitando as falhas entre as rochas.
De repente,
nem se esperava,
portanto ainda por classificar
como imagem,
uma  casinha térrea,
de paredes de cal,
com um banco à porta.
Entretanto,e como é óbvio,
preencheu-se por completo
o cadernito, muito bonito,
e era o mar azul e a  capa azul,
e as contas.







sábado, 2 de dezembro de 2017

Hiena (EI)

Era já noite cerrada, e não havia ninguém nas ruas, àquela hora em que  saíu do bar.
Já tinha bebido bastante e resolveu ir para casa, que era mesmo ali, no Largo do Camões, quando lhe pareceu ver a silhueta de alguém que se dirigia a ele.
Ao aproximarem-se um do outro, confrontou-se com um indivíduo muito bem vestido, de fato e gravata, mas, por outro lado, a sua fisionomia fazia lembrar um animal selvagem.
Pareceu-lhe tratar-se de uma #hiena, mas, não tendo a certeza, resolveu contar uma anedota para confirmar.
Toda a gente sabe que as hienas têm uma maneira de rir muito particular. Quantas vezes não usamos esse subterfúgio para distinguir uma hiena do Pai Natal. A primeira ri-se hihihi, e o segundo, houhouhou, o que é completamente diferente.
A verdade, é que, depois de acabar de contar a anedota, a criatura não se riu, pelo contrário, ficou muito séria, com cara de aborrecida.
"Bom...," pensou, "pode ser uma hiena sem sentido de humor, ou seja, o que acabei de fazer não me dá segurança nenhuma", e resolveu usar da sinceridade porque estes animais são tidos como os mais sinceros das estepes, perguntando-lhe:
Se eu, por mero acaso, já estivesse morto, tu eras capaz de me arrancar uns pedaços para fazeres uma bela duma refeição"?
"Ó pá...! Anda lá, Aníbal! Eu vi logo que estavas a emborcar demais!"