quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

#Oxigénio

Tudo começou pelo rumor das rosas.
Era um murmúrio, apenas, ninguém acreditaria em mim.
Mais tarde, era já  uma mulher, ouvi a espuma do mar contar-me histórias, num dia de céu  tão cinzento que nem percebi a previsibilidade do que ia acontecer.
Não foi por causa disso, não teve esse efeito, não. Já antes preenchia folhas aleatoriamente,  quaisquer umas, podiam ser guardanapos onde desenhava centopeias, ou aranhas, ou olhos de boneca, mal feitos, como fazem as crianças que não  têm nada para fazer.
Os choupos, tinha eu talvez quatro anos, alinhavam-se no choupal, tão simetricamente belos e inteligentes, que ficava siderada a olhar para eles.
Escrevi tudo isso num canto de jornal.
Inspirava o ar que vinha dos montes, pleno de #oxigénio, à procura de fantasmas atrás dos rochedos, tendo como certo que eles existiam, e ainda hoje os reconheço como meus.


domingo, 27 de dezembro de 2020

Uma #Lebre à Espera da Chuva

 Hoje, quase choveu.

Contudo,

o céu abriu de repente,

o vento impôs-se 

aos outros elementos

e a roupa nas cordas

quase voô pelo ar.

Quando ele veio,

moldou as palavras juntas

para que ficassem 

coladas umas às outras

para sempre.

Eram vários os 

argumentos válidos

para olharmos a paisagem

extasiada em nós.

Era quase um dia qualquer

de janelas inúteis, sem 

a queda de gotas concêntricas

iguais a perguntas

no lago dos peixes.




sábado, 26 de dezembro de 2020

O #Oxigénio é Transportado Pelo Vento


 Nesse dia,  soprara tão forte 

que levara das varandas alguns vasos. 

As trepadeiras, 

que se entrelaçavam em estacas 

mal seguras na terra, 

formavam mantos propícios 

ao enfolar do vento 

e esses retalhos floridos 

procediam tanto a pequenos vôos, 

curtos, 

como a vôos muito longos, 

e uns caíam logo nos primeiros telhados, 

ou nos passeios, 

ou ficavam presos nos galhos 

mais intrincados do inverno, 

outros desapareciam do nosso alcance 

pelo azul do céu.





quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 _Que lindo Halo que tens hoje! É novo?_

_Gostas? Mandei vir da terra no último que subiu. São mais baratos e muito bons. Pede à Nossa Senhora, ou ao Pai Natal, que eles trazem-te um. Olha, esse anda sempre em circulação, trabalha que é uma coisa estúpida. Já não posso ver o velhote. Qualquer dia dá-lhe uma coisa._


 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

o Natal

Os meninos estavam todos sentados no chão da sala. 

Rafaela, no meio deles, cantava a canção ensaiada mil vezes, maquinalmente, enquanto pensava na noite da consoada. 

Os primos iriam lá estar e brincariam todos no seu quarto, que era o maior, ansiosos por que passasse o tempo e fossem horas de abrir as prendas. Ainda teriam de esperar uma eternidade até ao jantar, os adultos conversariam fazendo tempo para a refeição, alguns atarefavam-se na cozinha, outros juntavam-se na sala da árvore, que piscava as suas luzes intermitentes, e segurava nos ramos pequenos enfeites de chocolate, embrulhados em pratas. 

As bolas vermelhas luziam de vez em quando, conforme algum reflexo de luz lhes tocava a superfície. Debaixo da árvore as prendas amontoavam-se, mais ou menos desorganizadas, apenas seguindo a lógica dos diferentes volumes e tamanhos. 

O jantar foi extenso, quase interminável, e Rafaela batia os pés na cadeira contando de um a dez muitas vezes, à espera do seu fim. Olhou, pela milionésima vez, para os presentes coloridos.

Das sete fadas intactas do papel que revestia um dos embrulhos, porque a tesoura tinha desmembrado algumas, as que encontrou no caminho percorrido pelas suas lâminas implacáveis, uma delas aventurou-se a existir, apesar dos avisos insistentes das outras em relação ao perigo, e separou-se das imagens onde estava estampada ganhando corpo, volume e vida. Deu um grande salto e sentou-se num dos galhos do pinheiro, entre uma estrela dourada e uma luzinha intermitente, ora azul, ora vermelha, ora apagada.

Pela #abertura que ficou no papel, Rafaela percebeu que o que estava lá debaixo era aquela boneca por que ansiava desde sempre e com a qual sonhava acordada, de olhos fechados, todas as noites antes de adormecer.

Nem relevou. O que vale uma boneca de plástico, se a magia pode acontecer?




sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O OURIVES

 Ao ourives bastavam-lhe

uns momentos de inverno

para cinzelar os galhos

das videiras contra o céu.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020


 Em inconscientes passos verticais, subíamos a encosta rochosa, 

colocávamos os pés e as mãos nas saliências da pedra, até ao topo dos topos.

Até lá, a esse cume de vistas desafogadas, de céu aberto para o resto do mundo, 

víamos  árvores nuas entristecerem o caminho,  víamos letras onde elas não existiam, 

sílabas que se juntavam, palavras subreptícias e desconexas no meio das altas ervas, 

 frases contidas nas águas do rio indomável, que preenchia de sons líquidos a atmosfera fria.

Depois, nem sei quantos seríamos por essa altura, 

numa alegoria absolutamente desnecessária e disparatada, 

inventávamos em torno do bucólico cenário, um enorme acontecimento, que cantávamos juntos preenchendo os recantos da floresta com as nossas vozes.

Névoas de nuvem cobriam, com efeito,  vários pontos da paisagem. 

Espalhavam-se pela serra como a espuma dos mares a norte, ou em esferas de algodão doce, 

que  entidades colossais e secretas deixavam cair do céu,

após sumptuosos banquetes 

 só permitidos e difundidos no  universo dos deuses

Ensombravam, tapando aleatoriamente o chão com as suas sombras circulares.

Impressionantemente belo, 

e nós, com tamanha dificuldade em retratá-lo com justiça, 

com a justiça pobre dos nossos olhos bem abertos.

Após totalmente aniquilado, 

o outono desaparecerá das colinas, para dar lugar ao inverno, 

e acabar-se-ão algumas cores

Nessa altura, naturalmente nevará, 

já as palavras escorregarão pela montanha, 

munidas de equipamento alegre e confortável 

e de uma folha  suficientemente grande

onde possam ser transportadas, 

para que desçam vertiginosamente a encosta sem se magoarem,

nem que para isso sejam necessárias portas e janelas,

canetas e papel vazio, 

paredes de cimento protetoras. Nalgum lugar muito distante.. .

O vento assustador gritava aos nossos ouvidos coisas infinitas, 

silvava palavras eternas, 

essas palavras que também tinhamos o cuidado de  soltar 

quando se enrodilhavam  na vista desfogada,

ou recolhê-las, quando ficavam soltas por aí,  por essas estradas desertas.

O vento era um aliado poderoso, nosso aliado de sempre,

mas, quando se zangava, socorria-se com violência da sua invisibilidade 

e quase nos fazia cair. 

Longe do mar em chamas, longe do metal gelado das tempestades, 

procurávamos  nos pinheiros, a prestimosa cura,  

a redenção no granito consistente, na policromia dos seus cristais, 

cristais esses que nos obrigavam a franzir os olhos para melhor os ver.

O chão, repleto de agulhas, segmentos de reta sobrepostos em forma de língua, 

tentavam falar, 

mas, para isso, era necessário antes silenciar os mamutes camuflados atrás da densidade dos montes

teimando em assombrar o mais medroso de todos os caminhantes, 

a criança pequena dos reflexos de solidão, brincando com 

as raras entradas de sol insinuante 

debaixo dos esquilos e das manchas moribundas.

Para nós, era claro como água, límpido, transparente, 

que havia versos escondidos nas nascentes, palavras sequiosas de existir, 

ligadas tão poeticamente umas às outras, invencíveis e imortais, 

espreitando por trás das giestas em flor, turvas de nevoeiro.

E  eram os nossos nomes que vinham nos silvos do vento,  

nos murmúrios abstratos da água e era o que gritavam, os gritos  adejantes das aves.