sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Só uma impressão

Ao fazer uma pesquisa pelos canais de televisão,depois de um exigente dia de trabalho, acabei por travar o gesto maquinal de carregar no botão do comando, ao ver no ecran um programa de "bricolage". Eu, que até gosto do tema, fiquei a vê aquele canal.
A senhora que falava era esquisita, não era nova nem velha, nem feia nem bonita, mas isto é um aparte. O que interessa é que nos ensinava a fazer pequenos bonecos para construir um presépio, não me lembro exatamente em que materiais, mas andavam entre o cartão e o feltro, aqueles que usamos na escola, antes até do ensino básico. Mas isto é outro aparte.
A mulher cortou, colou, pintou, fez a nossa senhora, aproveitou os restos da pele do burro para fazer o manto da virgem para nos ensinar, também, a poupar no material. As peças para o menino Jesus foram um desafio difícil, por ser tudo tão pequenino!
Pareceram-me lindamente aquelas horas de entretém. Também eu, às vezes, me ponho a comer bolachas e a ver programas parvos de televisão, o que é bem menos produtivo do que fazer presépios.
Depois de várias horas, das quais só vimos vinte minutos, o tempo inútil foi disfarçado na montagem da coisa, vinte minutos de cabeças cortadas, colagens, secagens, um ou outro palavrão nas gravações, imagino, não que aquela senhora não o diria. Até sorriu quando espetou uma agulha num olho! Como dizia, vinte minutos depois apresentou-nos o resultado final da sagrada família para maiores de seis anos.
Até aqui tudo bem, gostei de ver. Pode ser uma forma interessante de fazer passar um tempo vazio.
Depois da obra acabada, não sei quem limpou o chiqueiro que ela fez, mas isto é mais um aparte dos meus, a mulher foi às compras, a comprar roupa para os filhos, e eu, a olhar para o écran, e ela, virando-se para a câmara enquanto segurava pelo cabide uma camisa de criança, terminou o bendito programa com uma conversa amistosa e um alegre sorriso.
"Hoje", afirmou, " foi um dia muito produtivo"!
Quando olhei melhor para as figuras do presépio, percebi perfeitamente, pelo semblante da vaca, que estava a gozar comigo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Não me ocorre

Porque é que encontrei
o Pai Natal tão triste
sentado à beira Tejo
no paredão?
Com a sua indumentária encarnada
o saco das prendas sem nada
o gorro e as botas,
tudo molhado
do suor da transgressão.
Porque estava um calor do caraças
estávamos em pleno verão!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Os plátanos (1)


 Tinha acordado com uma impressão nos olhos, , abriu-os, e viu a carita do gato.
A Maria, pequenina, tentava  chegar às bolinhas dos plátanos,  que do jardim se debruçavam sobre a varanda, nas traseiras da casa. Os plátanos, nús no Inverno de Sintra, pendurados no castanho. A boneca, deitada no chão molhado, com os braços esticados, os olhos tanto vazios como implorando, e a Maria ainda tinha outra brincadeira. Apanhava a água da chuva em tachinhos de criança, para depois  fazer uma bela duma sopa, com umas folhas de jasmim, e um pouco de terra do vaso.
Foi passear de mão dada com a mãe, e a mão da mãe, à altura dos seus olhos, envolvia a sua. 
Iam pelo passeio, e havia daquelas árvores por todo o lado. Umas viam-se inteiras, imponentes, outras espreitavam por detrás das casas velhas, todas cheias de bolinhas!  Os seus troncos enormes ocupavam grande espaço no passeio. A calçada toda torta por causa das raízes.
Sentou-se direita na cadeira, e enquanto esperava pelo lanche balouçava as pernas, ao ritmo de uma canção que lhe estava na cabeça e ia apreciando as luzes brilhantes da pastelaria, em contraste com o nevoeiro lá fora.
Chegou a casa e voltou para a varanda. Da varanda ouviam-se os pássaros e pouco mais, às vezes a avó na cozinha a fazer a comida, um ou outro automóvel mais barulhento, cujo ruído a casa não abafava. Come! Papa tudo!
E a boneca de ontem, sem articulação nenhuma, tesa como um parafuso, os braços sempre esticados, os cabelos húmidos, o musgo, a pedra.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Números


Acordava com o telemóvel que punha para despertar às seis e dez. Seis e dez equivalia  no seu relógio a talvez umas cinco e cinquenta e seis ou cinquenta e sete, porque o tinha adiantado uns minutos imprecisos, um tempo que não desse para somar ou subtrair, porque saber a hora exata, estupidamente o atrasava. Corria para apanhar o comboio, com medo de tornar fatal um segundo que fosse. Um segundo era o suficiente para lhe estragar o dia, porque o comboio, a uma hora demasiado certa fechava as portas e iniciava a sua marcha, primeiro vagarosa, e depois veloz e barulhenta, e teria que esperar umas dezenas de minutos pelo próximo. Chegava pois à estação invariavelmente, cinco ou dez minutos mais cedo. No verão, às sete horas já começa um bonito dia, no inverno pode chover a potes, e, para além da noite escura, não se aguenta o frio.
No escritório picava às nove em ponto, e depois ia tirar um café na máquina dos quarenta cêntimos, trabalhava duas horas, interrompia para beber outro, e trabalhava mais duas à espera da hora do almoço.
O meio tempo da tarde passava melhor. Meio dia estava cumprido, e as dezoito horas mais próximas, o momento de dizer até amanhã ao pessoal, e regressar a casa, para o relaxe duma novela ou dum debate de futebol. A mulher faria o jantar, em princípio, claro, porque ultimamente falhava uma ou outra vez, com a desculpa de ter outras coisas para fazer, ou a desculpa do cansaço. Às vinte o telejornal, depois um zapping pelas novelas, e a seguir procurar pelos canais um bom filme de polícias e ladrões, para às vinte e três e trinta, meia noite, se ir deitar, e, se ainda tivesse energia, talvez, quem sabe, faria sexo rapidamente, porque ao outro dia tocaria outra vez bem cedo, o prepotente despertador. 
Parabéns! Disseram-lhe um dia no emprego. Atingiu o tempo mais desejado, aquele porque todos esperamos, o dever cumprido, o direito à reforma.
O quê?
Estamos em dois mil e desasseis, passaram trinta e seis anos, senhor!

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Férias

O sol entra pela varanda já ao fim do dia.
Lá em baixo, na esplanada, um homem feliz e descomprimido imita uma galinha, e,  enquanto faz por cacarejar, rola a pança gorda e luzidia à volta dos filhos.
Os cães passeiam na calçada ao longo da areia, levando as famílias presas pela trela. Por vezes param um pouco, e os donos podem vasculhar o expositor dos chinelos, ou a barraca das malas de couro malcheiroso. Um ou dois puxões vigorosos e acabou-se a pesquisa dos vestidos tipo toalha, tipo cortina, tipo padrões insuportáveis, que "que eu quero fazer uma mija naquele poste ali à frente"!
Os miúdos aproveitam a boa onda e papam gelados e churros. Estão felizes porque o pai fê-los rir com aquela história da galinha, e também porque amanhã há mais praia.
Por detrás do bulício da marginal sobrepõe-se o mar que me vale. Calmo. Ouço-lhe as ondas reconfortantes.
Mais uma semana de tamanho relaxe e bem estar, e serei eu a fazer de chimpanzé, ou de burrié, ou de varejeira, par dar alegria a miúdos, ou a graúdos, ou a quem quer que seja!

Dez minutos de inverno (ou malha de arroz)

Eram uma vez
catorze e trinta e três
e chuva lá fora.
Para a ouvir
tirei o som à televisão
nem me interessam
os cabrões
que lá estão,
prefiro a água a correr
nos canos
que têm um nome
que toda a gente sabe
e eu não!

Catorze e quarenta e três
dez minutos de palavras,
descontroladas, enervantes,
um pouco de vento,
não muito
e chove torrencialmente!
E chuva fria!

Quando eu mandar
na meteorologia
um dia....
sairá uma lei
ou um decreto
uma ordem de serviço
um panfleto
uma brochura
uma merda de um papel escrito
e a partir daí
só haverá verão!

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O jantar do departamento

Quando cheguei, mulheres de cabelo fino e mãos grossas desfilavam pelo mosaico brilhante. Nas unhas pintadas, arranjadas na cabeleireira, espelhava-se o seu modo de vida irrepreensível, o bom casamento endinheirado e feliz, o amor dos filhos e do marido. Aquele núcleo exemplar, o cabelo louro de alguns benjamins, um fator diferenciador nestas terras de gente escura, de olhos e pele bronzeados do sol quente.
Talvez para mim o mais incómodo fossem as opiniões soltas. Tinha acabado de falar com alguém de uma enorme intransigência em relação aos outros. Comentava que os hospitais não deviam receber toxicodependentes, ou outros que tivessem decidido por si pôr em risco uma existência saudável, como se pudéssemos mandar para casa todos os irresponsáveis. Talvez o enfermeiro da triagem perguntasse: "o senhor comeu demais? Então se a culpa é sua, vá vomitar para casa!" ou "se fuma não temos nada que tratar a sua infeção respiratória, ou atentou contra a vida,foi pena não ter morrido", separando os fracos e mal comportados dos fortes e direitos, um mundo irrepreensível composto por homens e mulheres de atitude exemplar.
Encostada a uma mesa, a colega x discursava a sua intransigência em relação aos milhões que fogem da guerra." Eles que fiquem e lutem"! Não pude deixar de a imaginar de metralhadora às costas, com um chapéu a condizer comprado por uma bagatela, e a queixar-se do incómodo das varizes, ou dos dias penosos do período, como sempre a vejo fazer.
O mosaico brilhante espelhava então tranquilidade, ouvia-se o burburinho das conversas, a mulher do cabelo comprido e do vestido bonito conversava. Dizia não perceber as donas de casa que passavam todas as peças de roupa a ferro. Ela, no que se revelava ser mais prático e mais económico, dobrava atoalhados e lençóis, e depois, eventualmente,dava-lhes apenas um cheirinho de alisamento. Que grande parvoíce!
Concordei. Sim senhora, que estupidez, e embora estes eventos sejam organizados para concordarmos uns com os outros, confesso que não me foi difícil. Foi tão expressivo o discurso, e teve tanto ênfase, que me pareceu efectivamente serem estas senhoras dos grupos mais cretinos do mundo.
As paredes decoradas davam eco ao barulho de fundo das conversas.
"Estão a gostar? Tudo a correr bem"? Tinha-se aproximado a diretora. Tudo Doutora,muito Doutora, muito bom jantar. Todos sorriram, claro! A diretora afastou-se, o rabo vagaroso debaixo do carrapito.
Quanto a uma das mães de filho louro, continuava a conversar. Agradável. Quando se entusiasmava um pouco a voz esganiçava-se-lhe num timbre desagradável, pormenor que não pude deixar de associar às mãos grossas, disfarçadas pelas unhas arranjadas irrepreensivelmente, que espelhavam o mosaico brilhante, o mosaico a esta hora já com alguns pedaços de comida, ou pingos de bebidas espirituosas a colar aos sapatos.
Havia umas botas verde alface que foram o calçado mais falado do serão,e a meio do acontecimento colocou-se-me uma questão: Porque não fiquei eu em casa a comer a grotesca bifana que deixei temperada.
Já o mosaico brilhante tinha ataques de riso, o rosê farfalhudos a fazer das suas, de mistura como espumante meio caro meio barato, guardanapos já lixo, maquilhagens intactas, outras menos eficazes iam destapando as rugas, e as mãos grossas de unhas impecáveis, cubos de gelinho perfeito, ou lá como se chama aquele horror que engorda as unhas.
A voz esganiçada, os filhos nas melhores escolas, e os melhores maridos que de alguma forma também lá estavam, eu pelo menos, pude imaginá-los sentados nos carros,ou de óculos escuros encostados às motas, alguns ao telemóvel.
As mais velhas e menos encantadoras senhoras tinham pelo menos os filhos bem sucedidos, engenheiros e doutores, de gavetas imaculadas.
"Então, gostou"? Perguntou-me a diretora à despedida.
" Mais ou menos Doutora, a comida estava uma valente merda"!