quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Um #Gesto Normal

Andavam os anjos e as fadas madrinhas na sua rotina normal, correndo para o comboio, dentro dos automóveis no trânsito a praguejar uns contra os outros, muito irritados, ou nas compras de última hora, antes de chegarem a casa para um jantar rápido com as famílias, na sua azáfama habitual  e distraída, quando alguém reparou que , do céu, se aproximava qualquer coisa.
À medida que o vulto estava mais visível, puderam perceber que se tratava de uma pessoa normal, daquelas que só se viam nos filmes, ou nos livros, ou noutro qualquer mundo fantasioso.
Que se soubesse, concretamente, nunca ninguém tinha avistado semelhante ser, muito embora houvesse por todo lado representações suas, mas, tal como os dragões ou os minotauros, por exemplo, nada de o ver ao vivo. As pessoas normais pareciam não existir, só mesmo na imaginação de cada uma e de cada um.
Quando a pessoa normal aterrou sobre a estrada, fez, aliás,  uma aterragem perfeita, foi perdendo velocidade suave e gradualmente, até estancar completamente e sorrir para quem a observava,
os anjos foram-se juntando, encolhendo as asas ao longo do corpo para melhor se arrumarem uns nos outros e as fadas largaram os  afazeres que tinham com os seus protegidos, formando todos um círculo imperfeito à volta da criatura.
"Eu sou o Albano, Sou uma Pessoa normal"
Na plateia, alguém não gostou do que ouviu
"O quê? É só isso que tens para nos dizer? Isso já nós percebemos, Vê lá...!"
E para maior provocação, fazia #gestos com os punhos cerrados, como quem, a qualquer momento, lhe poderia espetar um soco na cara.
A multidão, influênciada pela criatura alfa que se encontrava no meio deles, começou a apanhar pedras para atirar ao Albano, mas, felizmente, acertaram-lhe no capacete, e ele, antes que se fizesse tarde,  ligou o motor e descolou até não se ver mais do que um ponto no horizonte.






terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sem Titulo

Combinavam sempre ali, à porta do cinema.
e por isso era impossível não imaginar os estofos
macios
e o calor da sala.
O cartaz anunciava um filme por ver.

O hábito acompanhava-os pela escuridão
sem destino ,
às voltas pelas ruas dos passeios silenciosos,
dos portões, onde, de repente,
os cães apareciam a  ladrar, guardando as vivendas.
"Não te aproximes"

E eles saltavam das pedras da calçada, rindo do susto,
prosseguindo com os tacões das botas ressoando
no asfalto.

Àquela hora, raros carros passavam,
Os seus risos misturavam-se na atmosfera,
como estrelas cristalinas,
com a beleza indiscritivel do que não se exprime
por palavras.

#Bertolucci, num cartaz colorido e convidativo,
tinha ficado para trás,
muitos passos atrás, para além da lua
cheia,
que prateava todas as coisas que não eram
de prata.

E a estrada sem cor ganhava tons  inesperados,
e dobravam-se as árvores sobre as suas sombras,
murmurando...


segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Humilde Homenagem a #Eça_de_Queirós e a Todos os Outros

Do seu corpo extinguiu-se a chama, restando num pequeno monte, as brasas incandescentes praticamente a morrer.

A tinta permanente seria transformada, pelos métodos usuais de transformação, cada um na devida época, evidentemente, em palavras que ficam.

Ideias cinza, que se misturam no universo, como as cinzas que lançamos do alto de uma falésia, para que as sua partículas sejam absorvidas  pelos olhares em metamorfose do  futuro, esse mesmo futuro que acaba por nunca sair dos nossos pés,

Quaisquer uns. Que as absorvam , não importa a distância.

Um homem constroí as palavras, inventa personagens, prolonga a tinta permanente, o computador, a aldeia, o velho pescador sentado à porta de casa com o mar em frente, com convicção.

O velho aquece o corpo numa fogueira moribunda, como referi. Aquece os pés, de que também já falei, e de onde o futuro nunca sai.

Haverá sempre alguém incompreensivelmente insatisfeito com o estilo virtuoso, a paixão.

Foram, no entanto, criadas as condições ideais para que a poeira se transforme em gigantes Adamastores , alterando tudo.

E o que não existia, nasceu, da simbiose desse mesmo pó com as divagações, as matérias que lançámos para voar, quando estávamos nas rochas a sentir o vento.

 E, se nos concentrarmos muito, mas mesmo muito, ouviremos  as gargalhadas solitárias sobre o tampo da mesa, de onde brotaram, expontânea e simultaneamente, as ondas, as tempestades e todas as paixões.













sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Quinze Dias

Fazia quinze dias
que os limpava,
muito bem limpos,
e depois ficava a observá-los,
embevecido.

Alguns tão bonitos e reluzentes
outros, rugosos, de cor indefinida,
e a todos levava ao ouvido
para verificar se  mantinham
o seu chamamento
intacto.

Ouvia as vozes da água,
lá no fundo,
e das gaivotas em estado gasoso.

Ouvia o sal na superfície
das rochas, e na sua,
que eram iguais,
de mil cristais bruxuleantes.
em dias de tempestade.

Quando assim era,
a tarde entrava pela noite fora
e ele ficava perdido no tempo,
esquecendo as horas.

Nem se alimentava, não tinha fome
que justificasse levantar-se,
quase nada o faria interromper
a observação dos mesmos.

 Mantinha, inexplicavelmente,
desde há quinze dias,
o cabelo desalinhado e sujo
a #braguilha desabotoada,
os dentes por lavar,
e um dos maiores oceanos
dentro da sala de estar.

Os búzios sonoros que tinha
sobre a mesa,
colocados  uns em frente
aos outros, marcavam,
de certa forma,
alguns dos pontos de interceção
das ondas.

Não era necessário falar
com ninguém.







quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A Mulher da Gabardina ou " O Último #Zuavo em Dia Errado

Parecia aquela mulher da gabardina, que sempre esperava o autocarro quando eu passava em frente à paragem.
Podia ser logo pela manhã, com a sua frescura a entrar-nos em força pela pele, ou à tarde no meio das horas em que poucos andam na rua, ou mesmo à noitinha, quando as sombras começam a desvanecer e a cidade ganha tons prateados, até imergir na noite encantada dos candeeiros artificiais.
Podia ser qualquer hora, que lá estava ela, ou de pé, encostada com o ombro direito à estrutura metálica, ou sentada, fingindo ler.
Ou tinha as pernas cruzadas e as palavras cruzadas no colo.
Nunca lhe vi a cara.
Só a indumentária, as botas altas, até ao joelho gordo, a gabardina gorda, a mala gorda que transportava sempre consigo, cheia de tralha.
Coisas que lhe caíam pelo caminho, da sacola que transbordava, eu ia apanhando.
Acabava por vê-la sempre ali.
Chegava primeiro, e punha-se à espera uns segundos antes de mim.
Usava sempre gabardina, de verão e de inverno, porque chovia para lá do tempo conhecido.
Esse tempo era o curto  intervalo entre nós.
 A gabardina da desconhecida não precisava era  ter aquela cor tão morta, tão cor de água turva, ou baça.
Uma réstea de qualquer coisa que agarramos sem existir.
Lá estava ela, e eu, divididas.
Como se um machado certeiro nos separasse em duas metades iguais.
Os seus dedos gordos, onde um grandioso anel se sentia sufocado e tentava respirar, arrumavam as coisas muito rápidamente, e eu, deslumbrada pela perícia das suas mãos, deixava-me ficar a olhar, embasbacada.
 Sentindo-a como, muito provavelmente, se sente a presença de um fantasma.
Perdia ali pelo menos uns cinco minutos, de cada vez, mas nunca lhe vi a cara.
 Nunca a olhei diretamente com medo de não lhe encontrar os olhos.
 No seu lugar, podiam estar dois berlindes de pedras rosáceas fazendo reflexos hipnotizantes.
Um dia, deixei de a ver.
Foi quando um pássaro desconhecido, de asas largas e bico comprido, foi encontrado morto atrás de um banco de jardim.
Repousava numa grande poça de lama, onde navegavam  três botões de madeira vogando calmamente junto às margens do beje ondulante.
Quando veio o bom tempo, e o sol secou as coisas molhadas,  encontrei, meio enterrado na terra argilosa, o meu anel dos encantos.








Poema Para Um #Zuavo Desconhecido

Corria a deixar
passar o tempo
nebuloso da doença.

Coisas tão pouco atraentes,
como o ruído
das obras do vizinho
sobrepunham-se
 às horas de espera,
ou melhor,
cobriam-nas com um cobertor.

Trazia sempre uma cápsula
de veneno,  no bolso,
para o caso de ser necessária.

Os homens atiravam pedras,
havia muitas pedras naquele chão,
boas para serem arremessadas.

Atchim,
faziam os patos no jardim.

Bastava olhar lá para fora
e ver o contraste das últimas
folhas de fogo
sobressaíndo das hastes,
no fundo dos fundos
do céu plúmbeo.

(Haverá um tempo
em que nem essas
sobras de sol
estarão disponíveis
por entre as nuvens
negras.)

Durante o inverno detestável,
que o deixava sempre nú
como se fosse uma
árvore.


O que rodava entre os dedos
metidos nas luvas de lã,
e apertados pelo tecido
grosso do casaco,
não era, afinal,
uma dose letal
que acabaria com...

Só se rebentasse nas suas
mãos.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Rudolfo em #Yaoundé

Rudolfo ia andando
até à fonte
com a certeza de que,
mais uma vez, a água
estaria sem força,
caindo em pingos,


Pelo caminho tinha tempo
para pensar numa solução.
Ás vezes,
levava uns recipientes
para armazenar
o maior número possível
de adjetivos
que se insinuavam
pelos poros da terra
até ali chegarem.

Ou usava um bloco
de notas
e apontava tudo
o que lhe viesse à cabeça,
desde
os ruídos secos das folhas
a serem calcadas
pelas suas botas,
até ao frigir
das que ainda estavam
nas árvores
em movimentos
de ventos incertos
entrando
nos seus ouvidos
em notas  separadas
como a solidão inteira.

Se chovesse prata,
por estes dias,
os caudais encheriam
novamente,
veríamos imagens de coisas
que já nos aconteceram,
e que alimentariam
quantos
dedos compridos
quanta poesia ainda
por inventar.



Fumo


Gostava muito mais dos dias que começavam tranquilamente.
Quando se atrasava para o trabalho ficava irritado para o dia inteiro. já não podia fazer o trajeto com a calma  que gostava, tinha que acelerar o passo, deixava de ser um passeio matinal revigorante para se tornar uma correria desagradável.
Se, por sorte, o atraso não era grande ainda se tolerava, mas se o tempo passava a correr, o autocarro demorava a vir, ou qualquer outro transtorno, e os minutos voavam no relógio sem controlo algum, e ele chegava esbaforido, a ver os colegas a olharem-no com cara de caso, esses dias tinham tudo para correr mal até ao finzinho da noite, em que colocava o gorro com um pompom amarelo para se ir deitar.
Ao dia zero de um mês de inverno rigoroso, saíu de casa, muito cedo.
 Andou uns metros pelo passeio sujo ainda de sobras de folhas de outono, e atravessou o jardim com toda a calma do mundo. Tinha muito tempo.
Passava ele numa passagem estreita, entre uma oliveira e um rododendro de flor branca, quando percebeu que alguém estava por ali a fumar, escondido, porque ,apesar de não se ver vivalma, cheirava intensamente a fumo de tabaco.
"Psst" Ouviu nitidamente, percebendo que o som vinha de cima, do topo de uma das árvores mais próximas.
Olhou para cima, e viu um melro a fumar, olhando para ele com olhos de chimpanzé, e muito concentrado.
Nunca tinha assistido a semelhante coisa, nem sabia, tão pouco, que os pássaros fumavam, e então, resolveu tirar-lhe uma fotografia, para mostrar a um ornitólogo seu amigo e de muita confiança, nascido em #Yaoundé, mas criado em Carcavelos onde, desde tenra idade, se enfiava no lago para correr atrás dos patos e das garças.
Perante descoberta tão fabulosa, resolveu telefonar para o serviço avisando que não contassem com ele, mas o animal deitou o cigarro para longe, e, num vôo rasante, roubou-lhe o telemovel.
Não podia deixar de dar parte à polícia.  Infelizmente, demorou-se uma eternidade na esquadra, preenchendo burocracias e tentando descrever o melhor possível o ladrão.
Nesse dia, chegou duas horas depois que lhe foram descontadas no magro ordenado.







sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Sem uma #Verruga


Sempre que podia, trepava o monte,  descia-o do outro lado, e refugiava-se no vale escondido de pessegueiros e oliveiras que cresciam, abandonados e selvagens, e em cujos troncos se enrolavam livremente as hastes das videiras.
Sentava-se na pedra habitual, comia a sua bucha, agitando a bengala quando se irritava com os versos que insistiam em não nascer, ou quando as abelhas se aproximavam demais.
Tinha a cara  atravessada por centenas de rugas, umas mais superficiais outras mais fundas, que se cruzavam, sem qualquer simetria ou padrão.
Quando  a Avó Clara era viva, e era ela que tinha as rugas incrustadas na pele, e ele era tão pequeno, a que morreu no sono tranquilo, um dia deitou-se e não acordou mais, como se o corpo velho ficasse apenas a descansar ali, para sempre, sem os óculos tartaruga  que depois permaneceram, durante meses em cima da mesa de cabeceira, chamava-o pondo as mãos em concha, debaixo do alpendre da cozinha: "Manel, olha o almoço", mas sabia que ele não ira responder.
 Ela voltava para dentro, limpava as mãos ao avental, remexia  o lume feito no chão, para o manter vivo, e ele crepitava debaixo das panelas e soprava o seu fumo negro de encontro às  paredes.
 Entendia muito bem que o Manel se perdesse nos caminhos, ou debaixo das árvores.
Nos dias de feira, passavam os homens e as mulheres em cima das carroças cheias de produtos para vender,
Pelo estrada de terra, já iam apregoando coisas para começar cedo a cativar as pessoas que por ali andassem em movimento:
Ele ia atrás, na sua bicicleta, a marcha era lenta, e às vezes punha um pé no chão para se equilibrar. Nem estava ali para comprar nada, apenas para mais tarde, chegar a casa e escrever palavras inimagináveis, e nunca antes ouvidas no mercado da aldeia.
Subiria a um banco, na semana seguinte, e declamá-las-ia para toda a gente.
Entre os livros da escola, metia outros. Sempre.
Teria que esperar que se recolhessem, o irmão, a mãe, a avó Clara, que o chamava pondo as mãos em concha, e que morreu no sono tranquilo, sonhando com as estevas compactas a produzirem um polén azul inusitado de dentro das suas flores, para escrever.
Debaixo do colchão guardava muitos dos versos, em papéis soltos.
Havia tardes que observava as ervas secas, e os gafanhotos, que se mantinham quietos até ao momento de o seguirem na sua marcha, pela beira do rio, passando a pontezeca,, e chegando outra vez ao  quintal.
Com a ponta da bengala, fazia-os saltar.




nnnn

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Bichos

Aborrecida que eu estava
de não ter ideias,
olho pela janela, distraídamente,
e vejo, com nitidez,
um #ultimato a trepar uma
árvore.
Nesta zona aparecem bastantes,
mas é preciso estar com muita
atenção
para se toparem os seus corpos
longuilíneos,
que se misturam
nas fissuras da madeira
como se dela fizessem parte..

.
A grande cauda,
enrola-se em hélice,
ou melhor dizendo,
vai rodando sobre um eixo
que a tranforma,
até já não parecer mais
uma cauda.

Os olhos reviram
como os do camaleão

Estende a língua bifucada
e desumana
tão rápida que
até apanhou um pássaro,
desprevenido,
sem, no entanto,
provocar qulquer vibração
nas folhas
ou nos troncos, ou nos galhos,
que permaneceram
iguais.

Depois desceu,
enfiou-se num buraco na terra,
e foi  ondulando pelos
túneis,
até reaparecer do outro lado.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

As Tangerinas (do grupo Era Uma Vez)

Era uma vez uma menina muito má.
Logo quando nasceu, e abriu os olhos pela primeira vez, as enfermeiras perceberam a maldade que havia dentro dela por causa daquele olhar gelado e maléfico.
Quando já tinha idade para ir à rua fazer uns recados, a mãe mandava-a à mercearia fazer pequenas compras, de alguma coisa que faltava à última hora, e era quando a miúda aproveitava para fazer maldades.
Nesse dia, tinha de comprar #tangerinas e outras pequenas merdices que não vale a pena mencionar.
Quando se viu com o saco na mão, percebeu que aqueles pequenos frutos eram bons projéteis para atirar às pessoas. Talvez, quem sabe, conseguisse magoar alguém como deve ser.
O problema era que tinha que chegar a casa ainda com algumas para a mãe não desconfiar, mas como era muito previdente, enquanto as pusera no saco, tinha, também, roubado umas quantas e metido dentro dos bolsos.
Conseguiu acertar numas quantas pessoas, o que a deixou feliz, mas, quando tentou partir o vidro de um carro, o fruto desfez-se com o impacto, e não chegou a causar nenhum estrago.
Frustrada, voltou a entrar na loja e perguntou se podia trocar as tangerinas por cebolas, ou batata doce, por serem mais pesadas, e, portanto, melhores para fazer estragos.
Foi quando viu as meloas, e sorriu de satisfação.
"Levo quatro. Depois a minha mãe vem cá pagar a diferença"
Foi assim que morreu a D. Alice, atingida em plena rua, na cabeça, sem hipótese de reanimação, e foi também assim que sr. António ficou paraplégico durante meses, até recuperar depois de milhentas sessões de fisioterapia.
Hoje em dia, é uma mulher adulta muito normal, e até, mais boazinha do que a maioria das pessoas, facto que a ciência não sabe explicar.


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Os Sapatos de Stan-Lee

#Stan_Lee, um dia foi ao cinema.
A mulher sentada à sua  frente tinha  uma grande cabeleira redonda, tapando-lhe as imagens do filme.
  Movia a cabeça com o rigor de um pêndulo, ou com se estivesse virada ao contrário, presa pelos pés, ou como se a lua ondulasse, suspensa por  uma boa corda de aço, e balançasse ao sabor do vento noturno em noites de lua cheia, ou qualquer outra impossibilidade parva.
 A verdade é que não via nada para a frente.
Num reflexo inconsciente e entorpecido, fez o gesto de inclinar o chapéu sobre a cara para se proteger dos insetos, que aproveitavam a sua imobilidade, e foi-se enroscando para dormir uma sesta no veludo encarnado das cadeiras.
Acabou por adormecer.
Ao fechar os olhos, as libélulas entraram subrepticiamente no seu sono.
Talvez pela sua influência, nem uns segundos depois, já ele imaginava helicópteros, naves espaciais, ou hidroaviões amarando em todas as superfícies espelhadas.
Por causa dessas belezas metálicas, os pássaros verdadeiros iam fugindo, com medo daqueles animais muito maiores e incandescentes.
Eram tantos, que formavam nuvens compactas e a luz esmorecia.
Também as aves solitárias se definiam no céu imenso, imóveis sobre a parte negra das árvores.
Quando acordou, a erva seca que roía tinha-lhe caído da boca. o vento tinha-a levado, e tinha os seus lindos sapatos praticamente desfeitos, como, aliás, lhe acontecia sempre.
Desta vez, um deles tinha um buraco previsível num ponto crucial, ligeiramente desviado de um dos eixos principais do seu esqueleto vaidoso.
Pelo menos assim lhe parecia.
 O outro, o cão estava a roê-lo, fixando-o ao chão com as patas.
O esquerdo, com um arredondado gasto na planta do pé onde o dito suporta mais peso, todo o peso que se carrega sobre as pedras do caminho irregular.
O direito, estava irreconhecível, estraçalhado aleatoriamente pelos dentes do animal, que, acabou por acalmar com as palavras suaves do dono.
Na sala, lá nos confins das superfícies estofadas, alguém riu, nervosamente, durante o tempo todo, mas calou-se quando acenderam as luzes e deram por terminada a sessão, e não chegou, sequer, a ver-lhe o rosto.
Então,  enquanto os outros iam saindo em filas ordeiras, ele  esperou um pouco. e ficou sentado a olhar as solas  com o interesse relativo do costume, era apenas mais uma prova, a juntar às outras, mais uma vez..., de que vivia outras vidas enquanto dormia, e pisava o asfalto e as  rochas soltas, correndo às cegas pelo  nevoeiro cinzento e impenetrável.



As pessoas comoviam-se
com as coisas que viam,
e começavam a chorar muito, muito,
e formava-se um rio
que saía pelas portas
dos velhos cinemas,
o S. Jorge, por exemplo,
descia todas as escadas
que tinha que descer,
acumulava-se no passeio com
lindos desenhos incrustados
na calçada,
e começava a descer a Avenida,
levando folhas, beatas,
pedaços de coisinhas por ali fora,
que rodopiavam nas sarjetas,
e ali ficavam,
tapando as entradas de água,
facilitando
aquele fluxo que se adensava,
que já inundava o Rossio,
acabando por chegar ao Tejo,
onde,
misturado com as àguas turvas e doces
que já vinham de muito longe,
atravessando as lezírias
e outros tipos de terrenos
mais ou menos acidentados,
acabava por se misturar com o oceano
que banhava , por  momentos,
as praias salgadas.







sábado, 10 de novembro de 2018

Uma Velhinha

Os sofás eram muito baixos, por isso a senhora ficou enterrada naquele conforto sem se conseguir levantar.
A seguir foram jantar, e as cadeiras eram muito altas e elegantes, e a mulher ficou pendurada sem conseguir de lá sair.
"Ò Pedrito, ajuda-me aqui, ó Joana, alcança-me ali a bengala,
Viste como o púcaro ficou brilhante, Joaninha ? E a bitola? Aprendeste?
Estou #quilha(da) com isto. Não ouço  nada do que me dizes"
De cada vez que insistiam num aparelho auditivo, ela recusava, o quê? Dissimulava que não ouvia a pergunta.
Uma vez até lhe deram um recadinho com tudo lá escrito  para lhe retirarem a hipótese de fingir não perceber, mas ela, num canto do mesmo papel, desenhando muito bem a frase para que pudessem apreciar a sua bonita caligrafia, e demorando uma eternidade a responder, escreveu:
"O quê? Não entendi."O quê? Não entendi.".
Duas vezes para apurar o desenho das letras.
O primeiro que tinha experimentado, fazia interferência com a televisão, sobretudo nas vozes mais agudas de algumas locutoras de que gostava tanto, tornando-se insuportável.
Ainda ouve uma segunda tentativa em que se cedeu à experiência, mas neste, a regulação do som era impossível.
Os filhos diziam-lhe: Ó mãe pôe à altura que tu quiseres",  mas na posição três, que podia controlar através de um comando que guardava no bolso, não se ouvia praticamente nada, e na quatro já os decibeís atingiam uma potência que lhe chegava ao sistema nervoso central.
À tarde, depois das comezainas, dos risos, ouvia os risos, que tinham qualquer coisa de audível, sobressaíam  do ruído compacto, voltaram a ajudá-la a sentar-se no mesmo canto, baixo mas cómodo e aconchegante, onde, com a boca entreaberta, se deixou dormitar pela tarde fora.


quarta-feira, 7 de novembro de 2018

O Botão

A senhora #Obama sentou-se, desesperada, numa cadeira em frente ao espelho.
Sobre a cama, repousavam quatro vestidos que já tinha experimentado para ir a uma gala que haveria de decorrer nessa noite.
Como todas as mulheres que têm roupa suscetível de ser escolhida, porque também há, por esse mundo fora, uma enorme percentagem daquelas que não a têm  para escolher, sentia-se descontente com a figura que estava a ver, refletida no espelho.
Dois deles já tinha eliminado como hipótese, o vermelho que lhe dava um ar de candeeiro vintage, e o branco, que, com tantas aplicações transparentes no tecido branco,  lhe fazia lembrar, vagamente, um micro-ondas dos anos noventa.
"E este azul?"
Retirou-o do armário e experimentou-o, mas, devido ao facto de ter engordado uns quilos desde a altura em que o comprara, quando tentou fechar os botões, um deles saltou acertando violentamente no olho direito da empregada que por ali cirandava, a fingir que estava a limpar o pó.
"Ai, porra!" disse a rapariga,  no inglês possível para quem tinha vindo de um país da América do Sul não fazia nem dois anos.
Entretanto a pálpebra da criatura não parava de inchar.
"Tens que ir ao hospital", mas o seu seguro de Saúde não cobria acidentes com botões que atingem os olhos violentamente.
Como não estou a ver forma de acabar esta história, agora deveria introduzir outra vez a cena dos vestidos para lhe dar consistência,e tenho uma certa fome, acho que vou jantar.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

muro

É um orgulho poder afirmar que já estive ao pé do #muro mais baixo do mundo.
 Acreditem, que em toda a sua extensão não tem mais do que um palmo de altura.
Menos só um pouquinho e já nem era considerado muro, era uma treta sem nome e que não servia para nada, mas não é o caso deste.
Nem os animaizinhos um muro tão baixo empata, e então passam-no com grande facilidade, as minhocas, as formigas, os besouros, tudo o que ande por lá a mexer, menos os gafanhotos porque saltam até mais alto.
Reza a lenda que quando uma menina ia a passar, tive o previlégio de estar mesmo nesse local, onde dizem que tudo aconteceu, tropeçou naquela saliência, e, ao dar com a cara no chão, viu uma joaninha aflita, de que nem a moscarda tinha dado conta, ao fazer a sua ronda noturna, por estar camuflada debaixo de umas folhas.
Essa joaninha era, afinal, a Raínha das Joanas que andava por ali a passear, uma espécie de fada e anjo da parte da mãe e elfo da parte do pai, mas o cabelo negro azeviche revelava o sangue da bruxa da avó, Joanoca Pé de Cabra, e ela não queria. por isso usava um manto sobre a cabeça.
Quando se deu o acidente, o manto voô-lhe para longe , mas a criança encontrou-o, e entregou-lho, para ela esconder a cabeleira que a envergonhava tanto, e por isso, ainda hoje,  os insetos gostam tanto daquele minimurinho encantador, por representar bondades incríveis das crianças.
Se puder, hei-de lá voltar.











Muro

Para além das redes sociais, também os observadores das redes sociais andavam, evidentemente, ocupadíssimos.
Se uns queriam que fosse construído, outros odiavam a ideia, a ponto de desejarem que o #muro um dia caísse e matasse toda a gente que por lá estivesse perto.
Queriam construí-lo em toda a fronteira que nos separa dos nossos irmãos.
Os que argumentavam a favor, diziam que era apenas delimitar o espaço, como se murássemos a nossa quintazinha para a tornar mais acolhedora.
Tinha, também, a vantagem de, nem as vacas nem os porcos passarem para o lado de lá. Não era a primeira vez que os nossos vizinhos se queixavam de encontrar estes animais lusos espalhados pelos seus campos, que não falavam uma palavra de castelhano. Ou galego. Ou basco, ou outra.
Os que argumentavam contra, diziam, é claro, tratar-se de uma profanação à liberdade e que era inadmissível.
E por falar em quintas, e em vozes que não chegam ao céu, o projeto foi mantido inalterável e deram início à sua construção, numa bela tarde de sol.
Mas  as pessoas quiseram ter parte ativa neste acontecimento, tão do interesse de todos, e juntaram-se no local, os a favor e os contra, os primeiros ajudando a edificá-lo, e os segundos iam destruíndo o que já estava feito.
Às dezanove horas fechavam os trabalhos, para uns e para outros, porque era hora de fazer o jantar e depois comê-lo, e depois dormir.
Felizmente que as grandes enxurradas de Novembro de dois mil e vinte varreram aquela área, e o assunto morreu por ali.








domingo, 4 de novembro de 2018

Enquanto o #Lince Dormita

Pegou nas infinitas possibilidades de escrever
o outono,
porque era esse o seu encanto, apenas esse,
a capacidade de ser reproduzido
e multiplicado infinitamente,
com as cores todas que tem,
e os tons que encantam desde sempre,

.
Quantas vezes já li as folhas secas
ou quantas vezes alguém antes de mim
as mencionou
em grande quantidade
espalhadas pelo chão, num tapete de fogo.
Porque é isso que nos intriga, a nós,
os crédulos, os ingénuos, os patetas,
o fogo que nelas há,
quando se espera que estejam mortas.

sábado, 3 de novembro de 2018

Kodac

Encontraram-no, depois de ter sido esfaqueado dentro da sua própria casa.
Ainda com vida, só conseguiu balbuciar uma palavra: Kodac. E apontou debilmente, para uma estatueta de bronze em cima da mesa. Morreu imediatamente a seguir.
O presumível assassino foi apanhado rapidamente. Corria, desenfreado pelas ruas, com uma faca ensanguentada na mão.
Uma hora depois, e equidistante do local do crime, foi avistado outro indivíduo empunhando uma arma branca e assustando os transeuntes que se escondiam dentro do sistema de esgotos da cidade.
Mas Miguelito era corajoso. Levantou a tampa de metal para espreitar, e o que viu? Uma terceira criatura também armada com o mesmo tipo de arma, e depois outra, e mais outra, e mais outra!  Só então  se lembrou:
 Era o Dia Mundial dos Assassinatos, e decorria na vila uma grande festa comemorativa.
Entretanto, a equipa forense recolhia provas no local do crime. Anastácia colocava uma peúga dentro de um saco esterilizado, enquanto Jonas abanava a estatueta que, ao primeiro toque se estilhaçou como se o Kodac estivesse dentro dela, faz muitos anos, a corroê-la totalmente.
Miguelito atreveu-se pelas ruas perigosas e chegou, esbaforido à beira dos detetives. Anastácia deu-lhe uma galheta.
"Desculpa" disse ela arrependida, "Esqueci-me de tirar as luvas."
"Não faz mal" disse o miúdo sorridente. "Venho diretamente do esgoto. Ele disse Kodac antes de morrer? Então, muito naturalmente foi alguém que se entusiasmou com as festividades."
"É o que calculamos, puto. Tu és esperto. E corajoso. Como te chamas?"
"Miguelito."



jso

Ataca, #Kodac! E o cão partiu numa corrida rápida até chegar ao pé do indivíduo e lhe dilacerar uma perna.
Seguiram caminho.
Ao fundo da rua, num beco sujo e escuro, viu movimentar-se uma sombra. Ataca, Kodac! e o animal voltou a correr desenfreadamente para o local.
Mas quando se aproximou, estancou, de súbito, e começou a tremer de medo.
Quando, finalmente,  o dono do Kodac alcançou o seu cão, percebeu tudo. Sentado entre um contentor de lixo e o sujo da parede, estava o Miguelito, desaparecido há tempos, e muito conhecido por ser o menino mais estúpido das redondezas.


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Gabriela, ou Mais uma História Parva

Gabriela levantou-se pensando que viveria mais um dia igual a tantos outros.
Quando colocou os pés no chão, ao sair da cama, não sabia que, no meio da rotina costumeira, se passariam coisas muito para além do que se pode esperar de um dia normal.
Pelo menos na sua cabecinha de criança perdida, desde sempre, nos bosques  dos livros de contos de histórias de encantar,  tinha, agora, a oportunidade de encontrar, se iniciasse as buscas logo pela manhã, os dois cisnes negros que a perseguiam, para, num futuro próximo, se alimentarem do seu trabalho de poeta, da sua construção, aniquilando a beleza das coisas.
Se não tivesse o máximo cuidado.
Era necessário subir uma grande escadaria.
A altura dos degraus, para uma menina tão pequena, era enorme, mas Gabriela alçava a perna o mais possível, subia-os um a um, devagar, e não desistia.
Percebeu, logo aí, nesse acaso que a vida lhe reservou, que a sua primeira provação era, precisamente essa, verificar que as palavras não são nada comparadas com a grande árvore centenária, de tronco grosso e ósseo e amoroso, que acabara de encontrar no cume do firmamento.
Compará-las com as garças imóveis sobre as pernas compridas e finas, ou com as magnólias na altura da floração, enraízadas na sua cabecinha tonta, na sua massa cinzenta rosada, era pura perda de tempo.
O que eram as recordações, então? E como se marcavam no tic tac do relógio?
Buscava insistentemente, espreitava atrás dos arbustos, pelas grutas, pelos prados, procurava   a Viúva  má e a Águia má, para lhes perguntar.
Depois de subir o mais possível, chegou a um campo de trigo, esperando ver as borboletas que por lá serpenteiam, pelo meio das hastes de palha. Nada.
Como escrevo isto?
Ninguém acreditaria em mais uma menina tola, que, no descampado ardia para que fosse  a sua vez de jogar.
 Quantas gotas de evapotranspiração, tiveram que  cair fazendo plim, e ela sentada numa pedra, à espera que essa palavra horrorosa soltasse a sua gota, para quem não sabe, uma  lágrima que se forma nas plantas, na ponta das suas folhas, quando bebem demais.
Caíram quatro no chão. Pimba! Formando #jazigos de água.
De facto, deixou de  acreditar nelas. Desde esse dia.
A partir daí, e para o resto da sua vida, os seus olhos  ficaram eternamente a lançar nomes para fora do tempo comum, calando aquilo que os outros não querem ouvir.
Era só o gosto, ou o medo, não sei, de entrar na caverna, para lá dentro  receber o eco das vozes, sei lá eu vozes de quem ou de quê:
Gabriela, mostra-nos as voltas que  dás para dançar em liberdade!













#Imbróglio


Lá em baixo, rondam um homem e uma mulher.
Ora um, ora outro, cada um no seu pedaço,
fazem as suas hortinhas, separados por
um pequeno riacho murado.

Ás vezes, andam por lá os dois ao mesmo tempo.
Talvez nem se apercebam um do outro,
ambos cavando abóboras e  outras plantas comestíveis.

Sempre farão algum ruído comum, digo eu,
que possam reconhecer,
para que não se sintam amedrontados
com alguma má intenção, oculta do outro lado.

Construíram, com canas, ou com o que tinham mais à mão,
traves mestras que mal suportam os seus velhos toldos rasgados,
que tinham para lá, na garagem.

Depois, colocam aqueles  grandes recipientes vazios no chão,
com o objetivo de aproveitar a água pluvial.
Espalham-nos como sementes atiradas ao ar, aleatoriamente.

O processo, rudimentar, de armazenar
o recurso da chuva é louvável,
mas o horizonte é violentado pelo horroroso
plástico azul, que esfaqueia, mais uma vez,
a  bela paisagem.

Também cá em cima acontecem coisas desagradáveis.

 As folhas que o vento transportou até aqui,
e que vieram a rolar como quem dança livremente
por todas as estações do ano,
ficaram ensopadas, e transformadas em pequenos montes
de lixo repelente, por aí espalhado.

E não sei mais que escreva que não seja nada.
Fim











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