quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

O Gago

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(Houve um dia
em que senti com nitidez
a respiração quente de
uma multidão de gagos
sobre mim).

A bela Sintra hoje
tinha na sua manífica
cabeça
um chapéu de feltro
cinzento e de abas largas,
com uma florzita violeta
a um canto
que, convenhamos,
nem sequer era
uma violeta verdadeira,
Só servia
para arrefecer ainda mais
os pinceís
com que pintava as coisas
debaixo da chuva.
mole.








terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Frio

Era uma vez um menino que andava a passear no jardim, quando viu um boneco de neve.
Ao aproximar-se, deparou com o ar triste da construção, o que lhe fez pena , porque lhe pareceu que devia estar com muito #frio.
Então, lembrou-se de ir a casa buscar alguns agasalhos para o cobrir,e assim fez, deixando-o muito quentinho.
No dia seguinte teve um grande desgosto. No lugar do boneco estavam as roupas, um monte de neve, e a cenoura, que antes lhe servia de nariz, caída no chão.
O desespero da criança foi tão grande que se sentou ao lado, a chorar, e estava nesse lamento há um tempo, quando ouviu alguém a falar:
"Psst! Sou eu! Estava uma brasa, desmanchei-me todo. És mesmo pateta, puto!"
O miúdo olhou em volta e não viu ninguém, encheu-se de medo e fugiu dali para fora.
Já lá vão tantos anos, e ainda hoje, em adulto, não bebe bebidas com gelo, com receio de ouvir vozes do além a chamarem-lhe parvo.





sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Bunhuel


Lembro-me bem da primeira vez que vi um. Verde, com uns óculos redondos, de aros pretos, muito grossos, a sair por um buraco na terra.
Tinha começado a chover, e o meu pai recordava, debaixo do alpendre, os saudosos tempos em que punha a minha avó no telhado, a hidratar, quando demos com ele, a sorrir para nós, meio escondido  atrás de uma árvore.
O meu pai explicou-me. 
"É um #Bunhuel. Deve ser ele que anda a roer os troncos das oliveiras. Alimentam-se de azeitonas de Elvas. Vês os dentes aguçados que ele tem? Parecem muito fortes mas na verdade não são. Só conseguem trincar os miúdos até aos quatro anos. O resto já é muito duro para eles.
Ah...! E não tenhas medo se ele te agarrar e abanar muito até veres estrelas. Gostam de brincar"
e continuou, parecia saber tudo sobre as criaturas:
"São míopes desde tenra idade, por isso usam óculos. Só os tiram para dormir, e nessa altura colocam-nos em cima da mesa de cabeceira"
Infelizmente, nesse momento, a minha mãe materializou-se ao pé de nós, aos urros, e o meu pai nunca mais abordou o assunto.


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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Zíngaro II

Caríssimo Senhor
Recebi a sua carta, faz hoje trinta anos, mas, por falta de tempo, só agora lhe estou a responder.
Não sei, sequer, se ainda está vivo. Espero que sim. A minha mulher, por exemplo, já foi.
Estava aqui a arrumar uns papeís quando deparei com a sua carta, e, junto a ela, um pacote de sementes de girassol e logo me lembrei da magnífica tarde que passámos juntos, a dar comida às araras.
E como está o senhor #Zíngaro? Naturalmente, já fará companhia à minha esposa lá no céu. Estamos todos a morrer, é o que é!
Ainda ontem estive no cemitério, e conheço aquela gente quase toda. 
Enfim, não falemos de coisas tristes, só lhe peço, encarecidamente, para pedir aos seus que me avisem se ao senhor se lhe acontecer alguma coisa menos boa, para eu não faltar às cerimonias.
A amizade é para sempre.
Abraços













Zíngaro


Na encosta sudoeste
a norte e a nordeste
vivem comunidades
de pirilampos.
Enquanto os pirilampos
se entretêm
com as lampadazinhas
que trazem no...,
#zíngaros apanham
míscaros à desgarrada.
Há oliveiras.
Há um cão e uma bruxa.
Esdrúxula.
( Ambos só dizem
palavras de cão.
Pão, cotão,
legislação, e até cabrão,
mas em relação à última
estam a ser ensinados
a não dizer).
Quando amanhece
os mosquitos desaparecem
e os piricoisos
apagam as luzes.




















segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Xelim

Indução,
força motriz,
#xelim,
cotovia.
O pássaro trazia
a moeda
no bico
e deixou-a cair
imediatamente
a seguir
aos meus pés.
Apanhei-a
e guardei-a no bolso
café, almoço
os desenhos
geométricos
e o arrebatamento
visível apenas
no canto
superior direito
onde ascendeu
uma centopeia
cujo corpo
ganhou vida
uns momentos
antes
por causa
de uma palavra
riscada.






sábado, 17 de fevereiro de 2018

Verso

No mais ínfimo pormenor
os #versos se escondem.
Podem estar no lixo
acumulado numa viela
na cintilação da água
ou nas pétalas de uma
específica flor.

E levanta-se o poeta
e vai para a rua
com os olhos misteriosos
colocados em toda a
superfície da pele
buscando no invisível
a tal beleza infinita.

Quando chega a casa
senta-se em frente ao computador
ou, eventualmente, pega
numa caneta e num papel,
e, consciente dos seus gestos inúteis,
descreve o que lhe pareceu ver,
ou sentir.
Mas qual a intenção,
o propósito?
Ele sabe, convenhamos,
(até com um sorriso nos lábios),
que a nós, de nada nos serve.






quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Tambor III

Era uma vez um menino que queria um tambor, mas a mãe não tinha como lho dar porque era muito pobre.
Houve tempos em que ela, com os seus três filhos e o seu amado esposo viveram felizes, mas o gorila das montanhas tinha-lhe sequestrado o marido, já lá iam uns  anos, e desde então, a sua vida tinha-se modificado totalmente, passando de paraíso na terra, para uma valente merda.
É claro que, quando a criança falava do tambor, a mãe, deprimida, tinha ganas de lhe dar uma nalgada, e o miúdo ressentia-se psicologicamente.
Na escola já andava muito triste, e quando lhe perguntavam o que tinha, ele só repetia, " eu quero um tambor, eu quero um tambor, eu quero um tambor..."
Os professores, e outras pessoas igualmente atentas, e de boa índole, e também um pouco agastadas com a lenga-lenga do miúdo, juntando-se para as despesas, deram-lhe , então, o ambicionado objeto, o que fez a criança chorar de alegria, quando o recebeu.
As lágrimas emocionadas do menino contagiaram os presentes, e começaram todos a chorar, e aquelas pequenas gotas de água salgada uniram-se para formar o que é hoje considerado o maior lago artificial da terra, com neblina.











Tambor


A indumentária
ainda tinha algum préstimo
desde que, quando a vestisse,
fizesse, em simultâneo,
umas piruetas.

Farto de estar sózinho
entretinha-se
nestes preparos,
por um lado a encantar e a divertir,
e por outro,
a assustar de morrer.

Dentro do roupeiro
que ocupava uma parede inteira
guardava coisas inúteis
por exemplo
duas bengalas,um #tambor
um fato de palhaço pobre
e a caixa das tintas com que pintava.
uma grande boca.
que ajudava ao disfarce,
encarnada,
sobre a sua,
sempre a sorrir.













quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Seda


O vento
atravessa o tecido
vaporoso
embatendo com os seus
dedos descontrolados
na superfície
da pele.
Abraça aquele corpo
fixando-lhe cristais
de gelo
entre a bela camisa
que o cobre,
(a #seda leve, resistente
e macia),
e o cabelo
igualmente brilhante,
que, aliás, também
esvoaça
numa madrugada
qualquer bastante
fria.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Mineiro



Todo o santo dia ouviu as pessoas a dizerem-lhe que estava parecido com um #mineiro, sem perceber o motivo, mas quando chegou a casa e se espreitou a um espelho, também se achou parecido.
 Ainda tinha cravada na testa a lanterna que a mulher lhe arremessara, de manhã, num acesso de raiva, e que, por azar, permanecia ligada.
Já tinha acontecido com uma faca, e, na altura, sangrou bastante, mas, talvez por ser uma faca, não deu tanto nas vistas.
O pior de tudo é que o puto já tinha o mesmo vício da mãe. Às vezes, tinha que tirar peças de lego das narinas.





segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Kramer

 #Kramer é dono de uma fábrica.
No outro dia calhou em conversa eu estar a comentar com ele o meu cuidado para não atirar nem um papelinho, ou uma beata, para o caudal de um rio, há anos que tenho estes cuidados, a preservação da natureza e tal..., ainda falei da separação dos lixos, e muitas outras coisas, todas ridículas.



domingo, 4 de fevereiro de 2018

Joanete 2

Uma bela história para crianças, daquelas de moral irrepreensível como todos gostamos, mas de que se fala pouco, foi escrita por um ilustre contador de histórias de um século já passado, e chama-se: "Os Joanetes da Joaninha".
Não esqueçamos que estes animaizinho têm muitas pernas, com os respetivos pés, e o autor, eximio, consegue muito bem fazer-nos sentir na própria pele o enorme sofrimento em que a Joaninha vivia.
De tal maneira a inquietavam essas protuberâncias, a ela, um animal tão fofinho, que, na cozinha da sua própria casinha, contornava os pés da mesa para lá não bater.
Um dia, não bastava o que tinha de padecer por causa daquela deformação, ainda lhe foi entrar pela janela, uma daquelas criaturas malignas que tinham o hábito de sobrevoar a casa.
Quando entrou provocou uma corrente de ar gelado, e a Joaninha ressentiu-se do frio, sobretudo naqueles pequenos ossinhos, que tanto lhe incomodavam o exoesqueleto.
  Aquela figura aterradora dentro da sua própria casa provocou-lhe muito medo, e começou a fugir, mas uma daquelas saliências prendeu-se na beira de um móvel, e ela caíu desamparada.
A criatura, aproveitou-se imediatamente da vantagem, e tentou esborrachá-la, mas a Joaninha, aproveitou os #joanetes para rodar sobre si própria, sem ficar de pernas para o ar, lembrou-se que tinha asas às bolinhas, e fugiu a voar.











Joanete

Os #joanetes, às vezes, atingem proporções incríveis. o que acaba por ter consequências que ultrapassam as questões da medicina..
Conheço alguém que só se apercebeu da dimensão do problema quando começou a ter dificuldade em atravessar as portas.
Também começou, no inverno, a ter frio no joanete, principalmente o do lado direito. É certo que acabou por encontrar uma solução relativamente eficaz. Não foi a ideal, hoje em dia já se vendem uns acumuladores de calor especiais para o efeito, mas, à falta de melhor, tricotou um agasalho inspirando-se no que usam os cães mais friorentos.
Outra situação confrangedora era o facto de afagar as pernas de quem se sentasse ao seu lado. è certo que se podia revelar um acaso agradável, mas a maioria das vezes a compreensão das pessoas mostrava-se limitada, o que o deixava deprimido.
Iniciou, então, um processo de falta de integração na sociedade.
Consciente da dimensão do problema, o que é uma vantagem, muitos há que não conseguem assumir as suas próprias dificuldades, consultou quem de direito, e acabou por recorrer à cirurgia.


sábado, 3 de fevereiro de 2018

Impressora

Conta-se que já era tarde quando atravessou o jardim, de regresso a casa.
De repente, por detrás de uns arbustos apareceram duas #impressoras de dentes arreganhados, prontas para atacar.
Ele pousou as compras no chão, suavemente, enquanto assobiava para as acalmar, e tirou do saco os rolos de papel higiénico.
Então, com uma rapidez de super heroí, enrolou-as no papel até ficarem completamente imóveis.
Mas elas não estavam sózinhas, e outras duas apareceram do nada,  com o seu ar raivoso e selvagem.
Felizmente tinha comprado feijão frade. Assobiou mais uma musiquinha, abriu a lata, meteu os feijões na boca, e cuspiu-os com toda a força que tinha nos maxilares, e que era bastante.
Poucos sabem disso, mas para as impressoras o feijão frade é letal, basta o simples contacto com as partes metalizadas ,quanto mais feijões cravados nos olhos,  ou isso, e por isso caíram redondas no chão, sem respirar.
De uma vez aniquilou quatro. É impagável a dívida que temos para com este homem, que ainda hoje, e apesar das investigações, não se sabe quem seja.
O meu grande obrigada a esta pessoa anónima.




sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Húmido

Para que não se perca, vou lembrando, de tempos a tempos, como eram então os dias.
Eram chuvosos mas não assim tão frios, e eu usava, orgulhosamente, uma gabardina de um cinzento escuro, que tinha encontrado lá por casa, e que contrastava com a minha pele, que ainda hoje, tantos anos passados, se mantém de enorme brancura.
Nesta zona #húmida, que é Sintra, as árvores, os arbustos, a serra, parecem absorver melhor do que em qualquer outro lugar o seu verde. Talvez ajudem a este sentimento as plataformas de musgo, que se formam nos recantos menos soalheiros, e que usávamos na altura, como carpetes macias.
Nessa época a chuva não me incomodava, em boa verdade, nem a chuva nem o sol intenso, se o houvesse, ou cheias, ou secas, ou outros cataclismos. O que me importava era estar passeando debaixo das árvores, ou por caminhos de terra, ou pisando, pelos passeios, as folhas orvalhadas dos plátanos.
E para que se saiba, para que não se esqueça, e embora tenha tido muitas e diferentes gabardinas depois disso, continuo igual, apreciando mais que tudo, a brisa nos galhos ou o movimento ondulante das cortinas.