quinta-feira, 26 de março de 2020

A Boneca Diabólica

Para uma boneca, não é fácil ter a perfeita consciência de que se é velho e feio.
Nos meus tempos de glória, é claro que era das mais bonitas e sofisticadas, com os meus braços e as minhas pernas articuladas num sistema de arames e parafusos, sendo que estes últimos são bem visíveis nas minhas ancas, e a minha voz, quando tinha voz, há muitos anos que já não pronuncio um único choro, que me saía da barriga através de uns enormes furos. tudo novidades para a época mas que agora, como tudo o que provém de mim, se revelam antiquadas e imprestáveis.
Espanto-me com a capacidade que tem a minha pele plástica de adquirir as rugas inerentes aos meus oitenta ou noventa anos, nem eu sei bem a idade que tenho.
Faz para aí meio século, levaram-me ao hospital das bonecas, em Lisboa, e de lá vim com uma cabeleira nova, um vestidinho com riscas verdes e brancas, com a engrenagem do meu corpo mais ou menos arranjada, enfim, deram-me um melhor aspeto, mas já foi ha tanto tempo, que voltei a envelhecer, a sujar-me, a enferrujar. Foi nessa época que ela me tirou o vestido para lavar e, como era de prever, uma coisa tão pequenina, perdeu-a no meio daquelas imensas roupas de uma grande família, que tinha no cesto da roupa. e desde aí que estou nua e, como é sabido, a nudez das bonecas incomoda tanto como a nudez das árvores ou mesmo a das pessoas.
Quando as miúdas, estas miúdas que agora são umas mulheres, porque na verdade já estive nas mãos de outras muito antigas,como eu, crianças em tempos difíceis que acabamos inevitavelmente por superar, de guerras, de pés gelados junto às braseiras, quase colados às brasas, ou de lenços na cabeça por causa do sol intenso que tinham que se suportar no caminho da aldeia para a igreja, mas dizia, quando estas meninas era pequenas, divertiam-se comigo, não pelas melhores razões. Chamavam-me a "diabólica" (ainda hoje o fazem), por considerarem o meu aspeto sinistro, com as meus olhos encovados e vivos, as minhas sobrancelhas enferrujadas, o meu cabelo desgrenhado, digno de um filme de terror.
O resultado dessa quase aversão que me criaram, foi o de passar a viver na última prateleira de um armário, entre dois cobertores.
Mas não me importo. Não os posso ver mas ouço-os, ouço-lhes os movimentos, as alegrias, as tristezas, ouço-a a ela, a que me quer bem, de outro modo ter-me-ia já metido num saco preto, imagino-a com as dúvidas habituais, "é reciclável ou não?", ouço-a a sair para trabalhar nestes momentos conturbados e perigosos, quando todos se protegem ficando em casa, e não me importo sobretudo porque tenho sido preservada, posso contar uma história, muitas histórias de vida, porque me lembro e faço lembrar.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Ostras

Estavam todos sentados nas suas carteiras, na sala de aula.
_Eu sei que é uma conversa repetida_,dizia o professor na sua apresentação, no primeiro dia de aulas do ano letivo _mas se estudarem, podem chegar facilmente a amêijoa, e, quem sabe, alguns a #ostra. Não temos que ser berbigão toda a vida. Ou lamejinha_.
E continuou o seu discurso de ascensão para motivar jovens bivalves até tocar a campainha para o intervalo.

Raia

Se há peixes que não me dizem nada, a #raia é um deles.
Aliás, pensando melhor, nunca nenhum peixe me disse nada de especial. À exceção de um "bom dia" ou "boa tarde" por mera educação, não me lembro assim de nenhuma conversa relevante.
Bem, o bacalhau demolhado às vezes parece querer dizer qualquer coisa mas com o barulho do exaustor da cozinha não se percebe bem.
As mãos de vaca é que me roubam as canetas todas para escreverem à família, mas isso são outros quinhentos.

Silêncio

Vou para tudo como se soubesse o fim.
Atravesso o silêncio sem o perturbar como 
se o meu corpo viajasse intergalaticamente e 
não houvesse vento.
Formam-se lágrimas de choque 
que desaparecem pela ação dos elementos.
São os poemas que me acordam 
com imagens da infância, 
esse tempo difuso que ficou para trás.
Vou para tudo como se soubesse o fim.
Viajo sem ter onde me agarrar. 
Não há estrelas, nem sombras, nem palavras,
nem cães a ladrar.

As Janeiras

Este ano preparei-me devidamente.
Assim que os ouvi lá em baixo a cantarem as #Janeiras comecei a lançar pela janela uma série de trastes velhos que tinha colocado previamente em cima da mesa.
Primeiro ficaram encantados com tantas ofertas, mas, quando se aperceberam que o meu objetivo era acertar-lhes, começaram a fugir pela rua abaixo.

A Unidade

Argentina Imaculada Conceição andava às compras para enfeitar a capela, por ocasião das festas da aldeia.
A loja do Sr. Antunes ficava ao fundo da rua e Argentina desceu-a, no seu passinho saltitante e feliz, já que se havia coisa de que gostava era participar ativamente nos preparativos das festividades.
_Bom dia, D. Tina! Então o que vai ser hoje?_
_Quero quinze Cristos na cruz e doze Nossas Senhoras, Sr. Antunes. E uma dúzia de raminhos de flores de plástico, se faz o favor_
_Ah, D. Tina. Este ano já não vendemos Cristos à #unidade. Só ao quilo. Mas olhe, até fica mais barato. Um quilo de Cristos são para aí doze ou treze. Se levar quilo e meio paga menos e leva mais. E as nossas senhoras a mesma coisa. Vai ver. Não fica pior servida. Tem é que comprar as cruzes à parte. E os preguinhos. Depois é só montar em casa. É fácil._

Inocência

Eram precisamente dezoito horas quando se lembrou.
Sabia as horas exatas porque ouviu o sino da igreja e contou as badaladas, como fazia sempre.
O sino confortava-o, como um testemunho da presença humana na atmosfera, maior testemunho do que aqueles que cirandavam, de pés rentes na terra pelas ruas da cidade.
Também o ajudava a medir o tempo, a localizar-se, como se a medida do tempo fosse de algum modo importante.
Como, como, tudo era como se qualquer coisa, como se o que via não fosse exato e preciso, como, eram, de facto, as badaladas do sino.
O sino voltou a tocar. Uma vez. E uma vez indicava as meias horas que o ajudavam a situar-se. Entre as oito, entre as nove, certo como as batidas de um coração.
Eram precisamente dezoito horas quando se lembrou. Como se o sino fosse capaz de lhe lembrar a #inocência das crianças sem maldade, como se ele ainda fosse pequeno e o sino badalasse pela aldeia da sua avó.
Como se ainda lá estivesse observando as rãs no charco, de cócoras e joelhos esfolados, comendo uma fatia de pão com doce de tomate.

Donativo

A palavra de hoje remete-me para a minha infância.
Teria eu uns seis, sete anos quando acolhemos em nossa casa um índio da tribo dos caiapós que andava perdido na Av. da Liberdade, em Lisboa.
Era uma pessoa muito simpática muito embora, para mim que era uma criança, tivesse uns hábito estranhos, tais como dormir no telhado e falar com o cão com uma empatia que eu nunca tinha observado.
Depois das refeições, sentava-se numa poltrona não sem antes pousar os seus pertences, a lança, a grinalda de penas e os lenços de papel que adquiriu já na cidade, sobre o aparador.
Eu, curiosa como todas as crianças, tentava mexer nas suas coisas, fascinada sobretudo com as cores intensas daquelas penas a lembrar vivamente os pássaros das florestas tropicais.
Lembro-me bem da minha mãe, que sempre respeitou toda a gente, estar constantemente a ralhar comigo.
Esticava o dedo e fazia um ar muito zangado, para me dizer: 
"Não mexas que isso é #donativo!"
E eu limitava-me a olhar, encantada.

Mais Um conto de Natal II

Mais Um Pequeníssimo Conto de Natal
"Tudo teve um princípio e haverá de ter um fim",
pensava,
sentada a um canto do colchão,
desviado vezes sem conta,
por causa do terror da chuva a entrar-lhe por entre as placas de zinco.
Hoje não voariam porque não fazia vento,
mas chovia muito, muito,
e já um alguidar e dois baldes recebiam os pingos grossos
que caíam e batiam na superfície da água, salpicando,
de forma inevitável, tudo em volta.
A criança dormia tranquilamente,
na sua vida de aventura,
com a #cara no aconchego
de uma almofada improvisada.
O Natal estava à porta,
à sua porta empenada,
por onde entrava um frio inerte
que sentia nos tornozelos e nos pés.

Mais Um Conto De Natal

#Gáudio Prudêncio Ruivo andava apreensivo com a sua árvore de Natal.
Tinha a nítida sensação que os enfeites que lhe colocara de início, quando a montara, eram cada vez menos e a árvore, que lhe parecera tão linda e bem enfeitada, agora estava quase nua, descuidada, como se tivesse sido decorada à pressa e sem primor nenhum.
A primeira ideia que lhe veio à cabeça foi a de que o gato tivesse alguma culpa no cartório, pois como sabemos, os gatos gostam muito de brincar com as bolinhas e outros penduricalhos natalícios, e por isso não relevou, mas quando contou, bem contadas, doze grandes bolas azuis e seis estrelas prateadas, acabadas de comprar e colocadas de imediato na árvore, e no dia seguinte só havia três das primeiras e duas das segundas, Gáudio Prudêncio percebeu que algo se passava durante a noite, enquanto dormia.
Decidiu, então, ficar acordado até de madrugada para espreitar o que se passava de tão estranho na sua sala de estar.
Eram já altas horas da noite quando ouviu um ligeiro ruído através da porta do quarto.
Pé ante pé, levantou-se da cama e foi espreitar.
Quatro minúsculas fadas vestidas de branco voavam em torno da árvore. Riam, com risinhos cristalinos, e os seus corpos emanavam uma poeira brilhante enquanto, escondendo-se umas das outras, atiravam bolas e estrelas pelo ar. Também os enfeites ficavam suspensos, presos por magia na atmosfera encantada que se formara em torno da árvore de Natal.
Gáudio estava tão maravilhado com o que via que acabou por provocar algum ruído o que assustou as criaturas do mundo dos sonhos e da fantasia, e elas fugiram passando os seus corpos voláteis pelas frestas da janela e levando consigo os adornos de Natal.

Tempo de Balanço

_Só um tempinho, mãe!_
A mãe pousou o saco das compras, resignada.
A criança subiu para o baloiço e a mãe empurrou-a, primeiro, devagar e depois com um pouco mais de força.
A criança ajudava encolhendo e esticando as pernitas para criar maior impulso enquanto se segurava às cordas que prendiam a tábua suspensa no ferro azul.
Só um #tempo_de_balanço, mãe.
Só um tempinho de balanço no baloiço, mãe.

Da Série, Pequenas Histórias Policiais

_Temos aqui um #quiproquó, meu caro Santos, o cadáver apresenta duas facadas nas costas, uma bala na nuca e demonstra sinais de envenenamento pelo que observamos do tom azulado da pele. Mas isso também se pode dever ao facto de ter estado mergulhado no rio com um saco de pedras atado aos tornozelos durante várias horas. A equipa forense nos esclarecerá._
_Mas não terá sido um acidente, chefe?_
_Poderá ser_ respondeu, pensativo_ Ou suicídio, mas não me parece. Há indícios de que alguém queria este indivíduo bem morto. Mortíssimo. Está a apontar? Aprenda com quem já tem muitos anos de investigação. Repare noutro pormenor interessante. Ora tire lá os óculos ao cadáver e coloque-os o Santos. Percebeu? São óculos de ver ao perto. Ora ninguém se suicida enquanto lê. É impossível. Improvável, talvez...Pode ter ingerido o veneno e, enquanto ele fazia e não fazia efeito, prendido os pesos nas pernas, ter-se esfaqueado a si próprio e, até se esvair em sangue, dar o tiro, ir buscar livro para fingir que lia tranquilamente e imediatamente a seguir lançar-se às águas do rio._
_Muito bem visto, chefe. E aquelas ervilhas nas narinas? Serão irrelevantes?_
_Naturalmente, Santos, naturalmente._

Augusto Zimbardo

Estava Augusto #Zimbardo a andar de carrocel com a sua esposa, uma viúva e peras, quando de repente ela se "alevanta" e começa a rodear o cavalo.
Que lhe apeteciam hibiscos, foi o que disse.
Até falou bem alto, aos ouvidos do animal de madeira ou plástico, não sei, nem tem importância. Na altura de o reciclar, logo se vê.
Claro que Augusto saiu logo da sua girafa, ainda lhe fez uma última festa na parte inferior do comprido pescoço, e disse, minha doçura fofa, como te quero bem, amanhã volto, e saíram ambos do carrocel em andamento, ele e a mulher. 
Haverá uzaí? Perguntou Sebastiana Zimbardo com água na boca, a boca cheia de água destilada para purificar os dentes que usava em ocasiões de festa, uma linda dentadura de marfim e apontando para um beco sem saída, mas muito bonito.
Sim, havia e apanharam tantos que o piolho das flores formou nuvens escuras, tão escuras, e a noite caíu e eles também.

Os Patos

Os #patos não sabem nada do
que se passa cá por baixo.
Deslocam os seus corpos gordos 
com as patas recolhidas,
bem juntinho a si
e atravessam o céu azul.
Os patos não sabem, sequer,
que o céu é azul.
Nós, também pouco sabemos deles.
Tantas vezes que pensamos 
nadarem no riacho
e afinal apenas andam, passo
a passo, nos locais onde o
caudal é mais baixo.
O riacho também não sabe nada
do que se passa cá por cima,
se dentro das casas há pessoas
felizes, que choram de tanto rir,
ou outras que choram com
apertos no coração.
O riacho nem sabe que as pessoas
têm coração
e que podem viver amarguradas
ou não.
E os patos, esses não sabem nada.

O Palhaço

#palhaço chora 
mas 
não se nota porque 
a sua boca ri.
Está pintada para rir e
toda
a gente ri com ele. E
uma grande gargalhada, 
imensa, 
sonora, 
preenche o recinto
e o palhaço chora, 
mas não se nota 
porque ainda agora,
mesmo agora,
pintou a cara com 
tinta para rir.

Suselene

O jardim tinha sido projetado ao pormenor.
Havia canteiros de auroláquias venosas em flor, majestosas cilindras prioritárias fazendo agradáveis sombras e por baixo das quais colocaram bancos e mesas de madeira para os piqueniques, tufos de matrafonas intelelectus de várias cores e até um grande #desperdício oficinalis de uma espécie carnívora, embelezava o espaço.
Suzelene não sabia tratar-se de uma planta carnívora, infelizmente não havia qualquer indicação nesse sentido, e resolveu apanhar um ramo dessa belíssima planta para, quando chegasse a casa, fazer um lindo arranjo.
Assim que esticou o braço para agarrar um galho muito bonito, levou uma dentada e começou a sangrar abundantemente.
O desperdício, ao sentir o cheiro do sangue vivo, ficou tremendamente excitado e com vontade de comer pessoas inteiras, e então, moveu alguns dos seus troncos para estrangular Suzelene que, devido à dor profunda que sentia, não conseguiu pronunciar uma palavra para pedir ajuda.
A árvore aproveitou a incapacidade de defesa da mulher e estrangulou-a. Imediatamente a seguir, comeu-a, cuspindo apenas os óculos e os sapatos porque sabia, por experiências anteriores, não digerir convenientemente estes acessórios humanos.

Nós

O comboio atravessou a noite 
#nós íamos lá dentro.
Quando não íamos, 
ouvíamos o seu ruído tão perto 
que nos envolvia nas sobras de silêncio.
Mas era dia, um dia que tinha amanhecido,
um dia, numa hora qualquer, escuro 
e cinzento.
E o comboio atravessava o dia 
como se o dia fosse noite e nós 
repetíamos as palavras 
para com elas deixar um aroma agradável
no ar, um perfume.
O comboio eram muitos comboios que passavam na cadência do seu horário 
habitual.
Atravessavam as noites e nós 
íamos lá dentro, 
cheirosos e felizes e vivos, tão vivos que dávamos conta do comboio que passava atravessando a noite.

A Ovelha Anastácia

A ovelha Anastácia conversava com o pastor.
_Já viste, Aníbal, que lindos são estes campos?_
_Sim, _respondeu Aníbal_ Sim, sim, sim!_ e começou a dançar de felicidade, rodopiando sobre as ervas molhadas de orvalho.
O cão Leão, que lia uma crónica do MST que vinha no Expresso, sentado ao sol da manhã, repreendeu Anastácia.
_Não sabes tão bem que não se lhe pode falar em campos que ele começa neste disparate?_
_Sim, mas é giro. Agora vamos aos zurros. Pastor! Zurros, zurros, zurros!_
E o homem começou a uivar.
_Não é "zurros". Se dizes zurros, ele uiva. Para zurros é "banana". Olha. Vês?_
E o cão Leão, abanando a cabeça, contrariado, endireitou os óculos e voltou a pousá-los no jornal.

O Malmequer

Era uma vez um #malmequer transparente.
Evidentemente que, pela sua condição, ninguém o via, mas ele estava longe de perceber que, quando as pessoas diziam, "que lindas flores" não era a ele que se referiam porque, no meio dos outros, julgava-se igual a eles, amarelo e bonito.
Um dia, uma senhora resolveu apanhar uns quantos para levar para casa e pôr numa jarra.
A mão da mulher passava rasando as suas pétalas, colhendo todos menos ele.
O tufo das flores dava mesmo para a janela da cozinha onde foram depositados num belo arranjo, os seus irmãos, e o malmequer transparente podia ver como estava linda a jarra sobre a mesa.
Dias depois, os malmequeres que estavam dentro de casa começaram a perder as pétalas. Primeiro caíram uma ou duas, e a mulher foi limpando e mantendo as flores na cozinha, até ao dia em que ficaram tão feios que ela os colocou no lixo.
O nosso amiguinho continuava vivo mas muito espantado com a sorte dos seus pares.
Foi quando percebeu que mais valia ser transparente.

Jaimina Quelónio

Quando Jaimina Quelónio nasceu, todas as fadas madrinhas do mundo se reuniram em Lisboa (tanto assim é que mais uma vez cortaram a Av. da Liberdade ao trânsito), para decidirem que feitiços bons haveriam de exercer sobre Jaimina por forma a ela ter uma vida feliz.
A presidenta das fadas, Maga Monga, tinha várias ideias na sua cabeça aérea, mas não quis expressar nenhuma sem primeiro ouvir a opinião dos seus pares.
Após pôr ordem na assembleia, o barulho era ensurdecedor pois não se encontravam havia muito e conversavam, riam e gritavam para se fazerem ouvir, Maga Monga expôs a todas e todos, o feiticeiro Super Parolo estava lá na intenção de aprender a cantar o fado, porque os magos ainda não  tinham acesso a essa profissão e era uma porta de entrada para o mercado laboral, mas como dizia, Maga Monga tomou a palavra.
Pegou, então, num cálice cheio de palavras, bebeu-o e começou a falar:
_Jaimina Quelónio foi designada para ser a criatura mais feliz do mundo e, ao mesmo tempo, parecer aos outros uma tartaruga normal. Cabe-nos a tarefa de a transformar com as nossas varinhas mágicas e as nossas capacidades. Aceito todas as sugestões._
Abóbora Encantada levantou-se imediatamente.
_Proponho que Jaimina possa voar no fundo dos mares, nadar nos céus, e também que se possa transformar em motociclo para melhor lidar com o trânsito, se por acaso viver numa zona suburbana e precisar fingir que é uma tartaruga sem poderes, dessas que andam normalmente por aí._
"Muito bem!" Gritaram em uníssono.
_Está, então, decidido. Dou por terminada a assembleia. Podemos passar ao almoço!_
E dispersaram pelas portas abertas do anfiteatro.
Joaquina Morcela teve que usar ainda a sua varinha mágica para coçar as costas numa zona onde não conseguia chegar com as mãos e quanto a Jaimina Quelónio, não sei se é feliz ou não.

Dulcídio Silva

Dulcídio Silva já imaginava que aquele dia acabaria por ser especial. 
Ao sair de casa cheio de pressa para apanhar o autocarro, esqueceu o chapéu em cima do aparador e de todas as vezes que isso lhe acontecera tinha por experiência que estragava de alguma forma o alinhamento dos astros, cortava a rotina dos seus passos.
Não que fosse supersticioso, ou tão rotineiro que acreditasse que um pormenor diferente dos outros lhe fosse modificar a vida para pior, mas aquela hélice inconcebível que lhe saía do alto da cabeça e que tão bem disfarçava com o chapéu, ou, no inverno, com um gorro de lã merino tornava-se demasiado evidente para quem se cruzava com ele.
Para piorar um pouco as coisas, se fizesse muito vento poderia levantar vôo a meio de uma conversa qualquer, importante ou não, que estivesse a ter no meio da rua.
Quantas vezes, na Costa da Caparica, em dias mais ventosos tivera que se enterrar na areia para não ir parar ao mar.
Felizmente a mulher, atenta, constantemente o avisava, "Ó Dulcídio, olha a ventoínha", mas em ocasiões em que ela não estava presente já aterrara num barco de pescadores, no meio das sardinhas, e uma outra vez, num iate de uns holandeses que até acharam muita graça ao sucedido.
Felizmente, cruzou-se com a dona Arminda que levava à tiracolo uma sacola quase vazia.
Ia precisamente pedir-lha emprestada para a enfiar na cabeça, estava mesmo a puxá-la, desesperado, agarrando a senhora pelos ombros, e pensando que a levaria, fosse a bem ou a mal, quando uma rajada de vento pôs a hélice a trabalhar.
Se olharmos atentamente para o cimo do Cristo Rei, podemos verificar que ainda lá estão os dois agarrados ao monumento.

Diamantina

A Diamantina escorregou-lhe a chávena da mão, a queda ainda foi amortecida pelas cascas de batata que se iam deixando ficar por ali, mas embateu no lava louças com a força necessária para que a asa se separasse do corpo do objeto, cada parte para seu lado, partida, ou antes, descolada sem quaisquer outras danificações.
A Diamantina colocou-se-lhe a dúvida, como sempre para Diamantina nada era de simples resolução, as decisões levavam tempo, às vezes um tempo sem fim.
"#Colo" esta velha peça, tenho as duas partes, intactas, e assim poderei continuar a usá-la todos os dias, com o leite quente e reconfortante que me ajuda a iniciar as manhãs, ou pego nestes cacos, talvez inúteis e imprestáveis, e atiro com eles para o lixo para dar uso a outras que poderei comprar, mais bonitas e melhores?"
Diamantina não soube o que fazer.

Pássaros

Muitos dos 
pássaros que fogem
se refugiam aqui.
O tempo refrescou
e há um elevado grau
de humidade no ar
o que propicia levemente
a propagação do som
cristalino.
Falam.
Dizem coisas cantadas
das quais não entendo
uma palavra.

Alegria

Um turbilhão de ideias
sem fio condutor
misturavam-se-lhe no
pensamento.
Era tal a confusão
que não sabíamos se
havia #alegria ou tristeza
no seu coração.
O certo, no seu coração, era
o sangue e o sangue
(sabemos)
não é nada de especial.
A tinta formando frases,
de início desconexas, desligadas,
faziam as paredes estremecer
e as árvores balançarem
com o vento,
sem razão aparente.
A noite chegava e desaparecia
uma e outra vez e tudo
continuava como sempre,
com o gato saltando
para cima dos apontamentos,
que voavam com o vento
lá de fora.
O gato imóvel de patinhas de lã,
acabava por pesar.
(Nas folhas dos plátanos
acabadinhos de descrever
com o maior rigor possível).
Sete quilos de gato.
E depois, duas...
Duas ou três,
coisas de poema
que talvez ganhem forma
um dia destes.

Fórmulas

A dificuldade de perceber as odiosas #fórmulas das aulas de química, levou-o a desenhar bonecos durante as aulas.
Mais tarde, já no final do ano letivo, começou a associar a cada desenho uma frase curta, que foi estendendo até que as palavras se revelaram verdadeiros poemas ou histórias mirabolantes e encantadas.
Faltavam dois dias para terminarem as aulas, encontrava-se sentado há cinquenta minutos ouvindo a explicação da matéria, tinha já desenhado um cavaleiro montado no seu cavalo sem cela e fazia agora com que os traços do lápis sugerissem a crina esvoaçante e o cabelo do herói em movimento, quando viu claramente os personagens do seu desenho tornarem-se realidade, emergindo do papel para atravessarem a sala de aula e sairem voando pela janela aberta por causa do calor do verão.
Um caso perdido, chumbando ano após ano por falta de concentração.

Amor

Bateram à porta:
_Quem é?_
_É o #amor!_
"Ai, o amor! Finalmente o amor me bate à porta!"
Apressou-se a ir abrir. Ainda deu uma espreitadela rápida na sua figura, através do espelho do corredor, ajeitou o cabelo, tropeçou numa cadeira, disse um palavrão, recompôs-se e finalmente abriu a porta.
_É dos correios, minha senhora. São umas multas da Emel para depois ir pagar. Não fora assim, fingia-se de surda como das outras vezes._

Talvez Nas Honduras

Não havia ninguém
e como não havia ninguém as ervas cresceram, 
as janelas quebraram, 
o corpo tombou, a boca sem sorrisos
pareceu-me cair no chão e fazer
um grande estardalhaço.
E como não havia ninguém 
as pedras deixaram de se ver, submersas
no mar verde.
E como não havia, nem música 
de pássaros, nem nada, não podia 
sorrir, 
nem havia ondas nas praias, sequer,
as faces iam-se-lhe enrugando pela 
passagem do tempo e dançava ao som
de coisa nenhuma e não ria dos rios 
que passavam indiferentes 
às palavras.
E como estava preenchido daquele vazio inconcebível, 
inventava as flores, 
procurava conforto nelas, nas flores de inverno.
E como não, 
como não olhava as nuvens que não se viam, nem chovia, nem fazia sol, nem 
nada de relevante acontecia, 
apenas estava, aguardando.
E como estava, assim, 
apenas esperando, a mente, a mente 
acabava 
por alucinar, 
e não via ninguém de tantos que
existiam e das vozes que cantavam e que 
nem percebia ouvir.
E dormitava...

Vudu

Crisântema descia a rua, apressada.
Não. Crisântema descia a rua, vagarosamente.
Ou, Crisântema descia a rua no seu passo habitual. 
Crisântema descia a rua, sim, certo como são certos os factos.
O problema manifestou-se mesmo no fim do passeio.
Tinha eu inventado Crisântema, a rua por onde ela passava, linda rua florida de buganvílias trepando os muros, margaridas em tufo, de #sentinela às portas das casas, as casas, pequenas vivendas coloridas de jardins bem tratados, mas esquecera-me de inventar o resto do mundo, o que ia para lá daquela esquina, e mais à frente, muito mais à frente!
Então, Crisântema deu um passo a mais e caíu num abismo sem fim, num infinito celestial.
Mas calma, muita calma e tranquilidade porque não morreu já que nunca chegou a existir.
E na queda desamparada com que a ofertei, Crisântema chegou a dizer a palavra, embora sussurrada, quase inaudível, #vudu

Gardénias

É preferencialmente à noite
que me rouba as flores.
Entra sorrateiramente 
nos meus jardins, 
nos meus poemas, 
nas minhas canções,
corta-as dos canteiros,
risca-as dos livros,
as frésias parte-as
mesmo pelo fundo
dos seus grandes pés,
as camélias e as #gardénias
coloca-as no cabelo,
faz novos poemas
e diz que são seus,
da sua criação,
como se tenha sido ela
a ter inventado as cores.
Eu não me importo.
Nunca me importei.
Os arbustos, as ervas,
as árvores,
haverão de florescer
uma e outra vez, e
isso sim, isso é que é meu,
esse renascer infinito
de todas as estações.

Dona Nuance

_Bom dia, #Nuance!_
_Bom dia, Ernestina. 'Tá boa, querida? Já chegou?_
_Cheguei de onde, Nuance? Não saí daqui..._
_Ernestina, não brinque comigo. Onde é que a menina foi?_
_Não deu por mim, aqui ao seu lado o tempo todo?_
_Eu vi-a, mas foi ontem. Hoje não. No seu lugar estava o Malmequer_
_Ah, pois. Não ligue. É dos seus óculos. O médico bem avisou que podia confundir alhos com bugalhos, que é como quem diz, pessoas esquisitas com flores normais_
_'Tá a ver, querida Ernestina. Depois eu é que confundo as coisas. O Hortelão? Vem hoje?_
_Amanhã. Nuance, quer um café au lait?_
_Sim, talvez, não. Não quero. Espere. Não sei se queira ou não. Que dia é hoje? E amanhã? Que dia vai ser?_