terça-feira, 30 de março de 2021

#Xian

#Xian montou no pássaro
que o levava a todos os lugares. 
Tinha sido uma oferta...
Bem que gostaria 
de se lembrar quem lho oferecera, 
mas a sua memória  gastara-se
com o passar dos anos.
O que era certo e sabido é que 
fazia bom uso dele, aproveitava
para, sem sair de casa, ou mesmo
do seu quarto, cortar as correntes
de vento e  pousar nas árvores.

domingo, 28 de março de 2021



Só deixaram as raízes das árvores 
mas elas, de corpo mutilado,
acabaram por morrer.
A terra estranhou o enredado,
agora moribundo
e que sempre a atravessara
pleno de vida,
furando de forma imprevisível
fungos e líquenes 
nutridos pelo sal que o mar
um dia deixara por ali.
As árvores, como já não existem,
já  não  me escondo atrás delas,
e os fantasmas, que antes nelas habitavam,
acorrem, indignados, a outros lugares
conversando entre si
sobre o movimento ondulante dos galhos
onde antes se sentavam para pensar.



quinta-feira, 25 de março de 2021

Não  há  cidade, das que conheço, que acorde tão luminosa como Lisboa. 
Pode ser da largueza do rio, pode ser porque fazemos bom uso das suas colinas e das espreitadelas nos miradouros, o que é certo e sabido é que cidade mais brilhante não  há. 
Eu não  andava à procura  do #Torel. Ainda que estivesse fechado, o ar fresco, o sol a incidir nas folhas mais altas dos enormes plátanos, e o silêncio  da rua eram suficientes para que não  desse por perdido o passeio, mas um velhote com quem me cruzei inesperadamente, tão cedo ainda, encarregou-se de me informar. "Está aberto", foi só o que me disse, sem eu lhe perguntar nada, ao princípio  nem o percebi, só lhe  vi a  figura, de corpo ligeiramente inclinado a dar utilidade à bengala, mas ele repetiu, sem um bom dia, sem nada, só isso, "Está  aberto", melhor bom dia que aquele parecera-lhe impossível, anunciar logo pela manhã, bem cedo, aos caminhantes solitários  estar escancarado o grande portão de ferro, dizer-lhes, "vai lá, começa  o teu dia assim, olhando, não  dês grande importância aos meus passos claudicantes e à minha bengala para caminhar. Ouve só o que te digo: "Está  aberto, o jardim. Vai lá."









terça-feira, 23 de março de 2021

Rossio

Havia algo de diferente na sua geometria. Modificara-se
Uma praça sem flores, eram  as árvores que suportavam tudo, engoliam o bulício através  das folhas e só se livravam dele com a ajuda da chuva e do vento das tempestades. Nessas alturas, era quando, também, aproveitavam para desembaraçar os cabelos esverdeados, que esticavam para o meio da cidade, até onde a sua elasticidade permitia, os galhos  mais fracos partiam, mas eram recolhidos durante a noite, nem chegavam a ser um incómodo.
Havia um homem que dormia num canto invisível, debaixo de uma varanda baixa de um primeiro andar.
Havia pombas incapazes de pousar nas arestas, pernoitar nelas, voavam para longe, para próximo do rio, para perto das gaivotas, reuniam-se na beira do tejo em pequenas porções de areia.
Atravessei o chão ladrilhado por lá mil vezes, na diagonal, havia sol estampado na água azul da fonte, cujo reflexo me cegava tantas vezes quantas o sol embatia na água da fonte azul sem peixes, nenhuns peixes naquela água redonda, quando podiam muito bem nadar por ali, sem dificuldade, na sua forma habitual de existir.
Eram prateados, todavia, não  estavam lá, mas pareciam-me possíveis, tantas vezes, vivinhos da Silva a nadar.
Havia janelas sem ninguém, espalhadas em redor, eram quadrados, paralelepípedos de vidros espelhados cujas linhas se cruzavam com as da luz.
No ponto de interseção dos pensamentos silenciosos, ficava uma igreja em pedra fria com telhados altos e  pássaros sem casa que por ali circulavam.
Para quem caminha de cabeça  baixa, com as pálpebras semicerradas e as palavras expontâneas a percorrerem-lhe a cabeça enquanto atravessam de um ouvido ao outro, inequivocamente interligadas, porém escorregadias, a praça ficou enorme e lustrosa.
Não estava ninguém,  todavia tanta gente caminhava pela praça imitando a minha forma de andar, os meus passos. Pareciam protótipos de mim. Posso sentar-me por vezes, e apenas por momentos, naqueles bancos de jardim que lá estão.










quinta-feira, 18 de março de 2021

cnffjfj

Os jarros acumulam-se
à beira dos riachos,
murmurando intrigas
e rindo do mal.
Espalham-se 
escondendo debaixo
do seu manto 
mil e uma coisas que 
rolam 
quando chove muito
e as águas se 
movem em caudal.
Quando eu sou 
esse vento, 
todas,
mas mesmo todas
as flores
se viram de costas
à minha passagem, 
sobretudo as pequenas, 
as que germinam 
entre as rochas 
e crescem, 
imprevisíveis,
nessa  incrível forma 
de existir,
presas por fios
onde quase não há 
terra,
só poeiras levantadas, 
poeiras, 
poemas intrusos 
como cristais de quartzo 
sujeitos à tempestade
feroz. 

quinta-feira, 4 de março de 2021

Em Casa de Adriana

A casita amarela em frente à sua, e de fachada idêntica porque por ali eram idênticas todas as casas, estava pintada de fresco. Tão fresca ainda estava a tinta, que o gato, ao cheirá-la, tinha encostado o nariz à parede e aparecera depois à porta da cozinha com os bigodes pintados daquela cor.

O animal, de personalidade vaidosa e suscetível, ficara um pouco aborrecido com o seu ar de troça, muito bem a conhecia para  ser possível  perceber-lhe os trejeitos, mas, fingindo uma indiferença total, percorreu metro e meio, mais coisa, menos coisa, dos motivos geométricos e carcomidos  dos mosaicos, para se ir enroscar entre umas quantas almofadas desalinhadas em cima de um cadeirão de madeira velha, costas com costas com a estante verde que continha os livros de culinária, os fascículos sobre plantas ornamentais e outras minudências do quotidiano.


Assim que anoitecia, saltava para o muro do quintal e ficava sobre ele, de sentinela, até à manhã seguinte, sem nunca chegar a fechar os olhos, e, invariavelmente, quando principiava a luz do dia, espreguiçava-se e iniciava uma pequena volta de reconhecimento pelo terreno circundante. Depois voltava.

Hoje, o seu ritual de limpeza, humedecendo a pata com a língua e passando-a pelo focinho repetidas vezes até ele ficar completamente limpo e lustroso, haveria de ser mais trabalhoso.

Duas gotas de café caíram em frente aos pés de Adriana. Foi buscar a esfregona e rapidamente tratou delas, não sem tentar, uma vez mais, remover aquela maldita mancha alaranjada, mesmo ali, dez centímetros ao lado do tapete, e que teimava em  permanecer indelével, isto porque já fora  absorvida há  muito pelos  ladrilhos do chão.

Fechou a porta, que guinchou como se estivessem a exigir-lhe um trabalho muito pesado, correu as cortinas e assim manteve as coisas até o sol deixar de embater demasiado quente, daquele lado da casa.

A um canto do quintal havia um monte de trastes velhos à espera de transporte para o  lixo. Um espelho veneziano entalado entre duas cadeiras obsoletas e cuja superfície espelhada se encontrava carcomida pelo tempo, um alguidar sem asas e cheio de sobras de folhas e água da chuva, sobrevoado constantemente por um sem número  de mosquitos quase invisíveis, mas que se percebiam muito bem nos poentes mais luminosos sob a forma de nuvem trémula e transparente.

Uma buganvília por podar espalhava uma bonita desordem, com os seus braços lilazes em liberdade. Vivia desencontrada de si mesma,  pois tanto se agarrava às coisas e lhes trepava por cima, como se deixava suspender sobre elas.

Já as luzes da rua estavam acesas quando os homens começaram a arrumar os materiais. Fizeram-no rapidamente, talvez por força da prática de todos os dias repetirem os mesmos gestos,  meteram tudo na carrinha e arrancaram, primeiro em primeira, depois em segunda e depois em terceira, e lá foram roncando até ao cruzamento, até se perderem de vista e a sua sombra comprida se desvanecer totalmente.

Tinham enfiado todos os seus capacetes cor de laranja dentro de um saco violeta, ou pelo menos assim se lhe revelaram as coisas, desses tons vivos, numa tarde de sol intenso que teimava em definir estupidamente as cores, sobrevalorizando-as. Mais tarde, num dos últimos momentos em que afastara a cortina para espreitar, vira atirarem com o saco para o fundo da bagagem, mas podia ter-se equivocado, os ambientes demasiado radiantes tendiam a enganá-la fantasiando a realidade.

As horas tinham passado na sua rotina habitual.

Adriana meteu as chaves ao bolso.

O gato, por essa altura, já estava empoleirado no muro, com a vigília iniciada, como era seu hábito, e assim ficou, de olhos abertos e verdes, à sua espera, desde que a viu sair, até que  regressou, enroscada no seu xaile de xadrez em tons de encarnado.

Atravessou a estrada e chegou-se ao muro para espreitar melhor. 

Na casa amarela estava um gato, muito quieto, não  era o seu, porque não  tinha o seu pelo negro carvão, confundia-se-lhe o ar pardacento com o brilho cinzento da noite enluarada, mas o animal, que já  tinha dado pela sua presença e esperava atentamente a sua aproximação, saltou com agilidade para o negrume do buraco entre os rododendros emaranhados um no outro, ou talvez se tivesse refugiado debaixo das tralhas do canto, ou lá muito para trás desses dois arbustos que resistiram a todas as modificações  sem serem incomodados, só uma poeira residual se lhes acumulava nas folhas, de vez em quando, conforme o pó produzido nos trabalhos, mas qualquer chuva brilhante, mais ou menos intensa, era suficiente para os avivar.

Adriana percorreu com o olhar o que a rodeava. Apreciou, com admiração,  o trabalho bem feito. Um imóvel à beira da ruína ficara com um aspecto agradável  e acolhedor, deveria apostar em arranjar a sua, pintando-a, talvez de branco. Se todos os proprietários tivessem o mesmo comportamento, ficaria o bairro mais alegre e rejuvenescido.

Os homens dos capacetes coloridos haviam deixado num canto sobras da velha casa, madeiras ultrapassadas, baldes de tinta vazios, fragmentos do espelho de um velho roupeiro. Não há trabalhos perfeitos e aquele pormenor descuidado, mas facilmente solucionável, não lhes retirava competência  e zelo. 

Em pleno silêncio  de bairro adormecido debaixo dos salpicos das estrelas, porque era sempre rápido, esse tempo que o sol levava a desaparecer totalmente no horizonte, desde que intercetava a terra até  que era engolido por ela,  atravessou a estrada lentamente, já só os candeeiros verticais, colocados equidistantes na rua, restavam para iluminar o lugar, eles e a claridade tímida da lua em quarto crescente.

Adriana ouvia o miar do gato desconhecido, com nitidez, sabia que  haveria de estar escondido no canto da tralha, ou atrás  dos arbustos húmidos, ou seguindo, com a curiosidade própria dos gatos, o veio de terra líquida  que se movia a caminho do passeio, transportando sobras de areia e cimento.

Afastou a folhagem na tentativa de o encontrar, mas o animal calou-se instantaneamente, como se não  quisesse ser encontrado. 

Os gatos eram assim, plenos de mistério,  o seu roçava-se-lhe nas pernas de cada vez que ela calçava e descalçava os sapatos, sentada no lugar dele, no cadeirão, para ir, ou para regressar, e ela contava-lhe, como lhe era possível, as suas pequenas aventuras, ou dava-lhe a sentir as batidas silenciosas do seu  coração.

Adaptou os olhos à falta de visibilidade dentro do cenário escuro e, a cada passo cauteloso que ia dando, julgou sentir na pele os suaves  toques da trepadeira entrelaçada do outro lado da rua, no seu jardim confiante.  Sabia, pela grande maioria dos sonhos que até ali tivera, que não há que recear a escuridão.

 O seu gato já  não  estava no muro quando regressou pela manhã e abriu a porta castanha, meticulosamente  pintada de fresco e  bem centrada na imagem de um dos espelhos.

Entrou. Pousou as chaves sobre a mesa e pendurou o xaile de tecido rude e cor de carvão, enquanto olhava com curiosidade o gato cinzento a dormitar tranquilamente entre a penumbra das almofadas da velha cadeira, colocada costas com costas com a estante em ébano, onde repousavam algumas revistas de culinária, desusadas teias de aranha e outras trivialidades do quotidiano.