sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Saramago

Todos os dias passava na Estrela, passava no Largo do Rato, no Rossio, com o filho muito direito ao seu lado, de mochila e boné.
Levava os braços atulhados de compromissos, de um lado a mão do miúdo, pequena e quentinha, do outro, a sua mala, a lancheira dele, e o livro do momento, preso entre a ilharga e o ante-braço.
O livro, com os movimentos do corpo e o trepidar do autocarro, ia inclinando, cada vez mais instável.
Num instante se chega ao destino, e assim foi, desceram os degraus com todo o cuidado, mas o livro lembrou-se de resvalar definitivamente, caindo logo na primeira poça de lama, mesmo ali à sua frente, entre o pé de um candeeiro e uma roda de carro.
"Ah, vida! Agora esparramou-se-me o Saramago no passeio!"
O miúdo, solícito, agachou-se para o apanhar, e agarrou-o por meia dúzia de folhas, salvo erro, da página cinquenta e dois à noventa e quatro, e entregou-lho assim, sujo e desconjuntado.
Vamo-nos sentar naquele banco, e limpá.lo. Empresta-me um guardanapo dos teus.
Quando chegaram à porta de casa, tinha  as mãos tão frias que rodou a chave com dificuldade.
Lá dentro , o gato cumprimentou-os, de cauda no ar, contorcendo o corpo, tentando passar o seu pelo cinzento, suavemente, pelo aroma da chuva que traziam agarrado aos sapatos.










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