quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A Rã

Já há uns dias que andava meio aborrecido com a esposa, mas nessa manhã, quando acordou e se virou para o lado, verificou que a mulher se tinha transformado numa rã.
_Ahhhh!_
_O que foi, querido? Tiveste um pesadelo?_ e a senhora estendeu a sua pata verde e húmida para lhe fazer uma festa.
Levantou-se de um pulo, vestiu-se o mais rápido possível, e saíu sem sequer fazer a barba ou tomar banho.
Na rua circulavam rãs do tamanho de pessoas, e no café onde foi beber uma bica, também só se viam rãs. Umas liam o jornal, de perna traçada, outras estavam sózinhas e silenciosas, e outras ainda coaxavam animadamente.
"O que é que se passa, meu Deus? Será que me fez mal o caldo verde que comi ontem ao jantar?"
Foi então que ouviu uma voz que lhe disse o seguinte:
_ Como vês, depressa ficamos no lodo. Para saíres desse charco terás que "amar pelos dois"_
_Mas quais dois? Não estou a perceber nada!_
_Quaisquer dois. Não te faças de estúpido! Por seres assim é que te acontecem essas coisas!_
Passou então o dia a pensar no assunto, e verificou que a voz, fosse lá de quem fosse, tinha toda a razão,devemos sempre fazer as coisas por dois, seja amar, ou odiar, ou o que  fôr, e, foi com esta convicção profunda que chegou a casa, ao fim do dia. Talvez por isso,a mulher, felizmente, já tinha adquirido o seu aspeto normal.
Mas quando, aliviado, se chegou ao pé dela para a cumprimentar, reparou que dos óculos ainda lhe pendiam meia dúzia de limos.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Quebeque (EI)

A cinco passos da porta,
chove.
Lá dentro, vinte e poucos graus,
mornos.
E que belas imagens do #Quebeque
e dos Açores
nas páginas centrais
de uma revista,
de viagens, obviamente,
aberta sobre o colo,
e, claro, sobre os pés traçados.
Somente
o tempo a mudar de minutos
para horas
e a mudar
de impecável para belíssimo,
e, às vezes
uma chávena
de café quente,
sempre um café quente...
Grande coisa prever,
agora,
que os candeeiros acenderão
ao fim da tarde
e perpetuarão artificialmente
o casaquinho no saco para
o fresco da noite.


.
.


terça-feira, 29 de agosto de 2017

Pinto (EI)

A galinha Fricassé sempre desconfiou daquele ovo.
Mas, apesar de apresentar um aspeto completamente diferente, resolveu chocá-lo, também a ele, uma vez que fazia parte da meia dúzia que trouxe do supermercado.
É claro que não se espantou absolutamente nada quando os animais eclodiram e lhes encontrou diferenças.
Olhou para os seus meninos e verificou que quatro eram pavões, um outro era um belo sapato em pele genuína, que calçou entusiasmada, e por último uma pequena avestruz, qual deles o mais fofo e ternurento.
A verdade é que quando cresceram e se tornaram adultos, os seis prosseguiram a sua vida o melhor possível, as tartarugas ainda hoje trabalham nos correios, o Pipas é gestor de uma grande empresa e o #Pinto está a acabar a faculdade, e embora toda a gente o confunda com um limão, o que é natural, isso não o incomoda,



segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Ombro (2015 publicado em EI 017)

A cabeça a mil, inconstante e livre, e á nossa volta tudo permanece incompreensível e tranquilamente no seu lugar.
Nem damos por isso, nos momentos em que os astros saem do sítio, e a nossa visão inquieta confunde a escuridão com a luz do sol, e o mar é água e terra, e nuns minutos pequenos, a vida encantadora e leve, e ás vezes inútil, e às vezes fecunda, equilibra com o peso da morte.
Depois é esperar um pouco, calma, haverá um tempo em que tudo poisará suavemente e ocupará o seu espaço devido, o corpo entrosado com os seus átomos finitos, o desassossego sossegado por momentos, e há quem faça isso, que ofereça todo o peso que carrega nos #ombro(s) e diga: levem! Levem as minhas folhas soltas. Este é o meu grito, o produto da minha inquietação.
Se quiserem deitem para o lixo.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Lima (EI)

_Foi com esta #lima das unhas, da vossa avó que Deus tem_ contava ele pela centésima vez_ e que ela me levou enfiada numa banana, antigamente não se comiam lá essas merdas! Agora é tudo à fartazana, tv por cabo, mangas, papaias..., que eu e o Zé Porco serrámos as grades da cela. Dez anos naquilo! E os guardas a perguntarem que barulhinho era aquele, e nós moita carrasco, nem uma palavrinha! Que devia ser do vento, ou uma bicheza qualquer, o caruncho xô guarda, deve ser o caruncho.
Hoje é que me arrependo. Deixei a lima lá dentro, e a vossa avó, que tinha muita estimação naquela coisa, tinha-a comprado em Fátima, diz que era a lima da Nossa Senhora, obrigou-me a ir lá buscá-la, e eu fui, mas já não estava lá. Devem tê-la fanado_.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Kelly

Num cantinho inspirador
e cheio de pó
vivia projetada
a sombra
do cadáver de um aranhiço
de pernas longas
e corpo minúsculo.

Diametralmente opostos,
tendo em conta a reta que tracei
(infinita, pelo que sei),
e que servia, por assim
dizer, de espelho,
apercebi-me, olhando
deste ponto,
que o animal estava
morto,
tanto de um lado como
do outro.

Antes de morrer
o bicho Kelly
segurava um livro
nas patas enroladas
(o único que lhe esgotou
a probabilidade matemática
de mais junções
de palavras),
que permaneceu inerte
naquela prateleira
empoeirada.

Mas no momento
em que eu reparava
na sua imagem
invertida
(a do livro, claro está)
a tender, agora,para um
ligeiríssimo
movimento circular,
pôs-se o gato a discursar
forçando, abusadoramente,
a realidade.
.



quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Iodo

Aromas precisos
sentidos apurados
à beira-mar,
com os olhos fechados
excluindo quaisquer outros...
ruídos
que não sejam os do sol,
e do sal,
e dos búzios rolando
na espuma
traduzindo afinal o silêncio
das rochas molhadas,
e altas,
ou a falácia do iodo
contido nas algas.

Juan

Porque os miiúdos ouvem tudo, percebendo a maioria das coisas, #Juan tinha a perfeita noção do que os adultos faziam quando viam um desenho de criança. Agarravam nele, olhavam-no demoradamente, primeiro diziam, está muito bonito, estava sempre bonito mesmo quando não estava, e depois ficavam atentos e concentrados numa avaliação mais rigorosa dos pormenores.
Por isso se entretinha a ludibriá-los, desenhando, nuns dias, árvores e flores coloridas com um sol disparatadamente amarelo na parte superior da página, e noutros, monstros abomináveis, de garras e presas afiadas, e, ao finalizar os últimos, preenchia-os enchendo  o papel com uma chuva de riscas cinzentas, carregadas até quase partir o bico do lápis.
Um dia, apenas por questões de variação, resolveu misturar o feio com o bonito, e ao lado de uma árvore de copa verde, mas vazia, colocou a família de mãos dadas, substituindo um dos elementos por um ser horrendo, mas inexpecífico, como, aliás, eram todos, por estarem mal desenhados.
Como cada um deles deduziu tratar-se não de si, mas de outro, sendo que havia uma tendência maior, por motivos obvios, para reconhecerem naquela figura traços da avó paterna, Juan foi considerado, finalmente, um puto equilibrado.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Uma Barata

Este é o caso particular de uma barata que não era nojenta.
Arranjava-se, muito bem arranjadinha, usava maquilhagem e belas fatiotas compradas em lojas de alta costura, e passeava-se, vaidosa, mas sempre no seu perímetro de confiança, dentro da sua zona de conforto.
Um dia, curiosa, resolveu subir uma parede, mesmo ali, motivada pelo odor maravilhoso de um caixote do lixo do primeiro piso, e cujos donos eram um bocadinho desleixados.
Lá se atreveu, a escalada era, como previra, bastante fácil, e foi por ali fora, ao som do tilintar de milhentas pulseirinhas que trazia nas patas, e que batiam umas nas outras com os seus rápidos movimentos.
Quando finalmente atingiu o chão da cozinha em questão  viu uma senhora, um bocadinho desgrenhada, que preparava comida com a sua grande barriga encostada ao lava louça.
A mulher nem reparou como ela estava bonita. Deu logo um enorme grito e chamou o marido para a vir ajudar.
O homem lá veio, contrafeito, porque teve que interromper um debate televisivo sobre as pífias da política internacional, aproximou-se, e o nossa princesa inseto só teve tempo de ver uma sola de chinela a crescer desmesuradamente sobre ela, até lhe tocar nas antenas e formar uma sombra tenebrosa em todo o seu redor, e muito rapidamente o seu exoesqueleto estalou, fazendo aquele ruído asqueroso característico dos exoesqueletos a estalar, e ela morreu esborrachada, o que constituiu para aquela família, bem como constituiria para maioria das pessoas, mais uma estrondosa vitória.

domingo, 13 de agosto de 2017

Vanuatu

Sentado,
enrolado sobre si próprio
num canto do universo
sob uma nesga de céu
foi assim que adormeceu...
num corpo desconfortável,
e sonhou tremendos pesadelos
de relatos impossíveis
porque ninguém para os contar,
e neles, morria aos poucos
sem verem nunca os seus olhos
Vanuatu ou Zanzibar.

Sofia

Sofia todos os dias atravessava o salão.
Não podia pisar os mosaicos brancos.
Era um jogo que fazia sempre.
Andava com o máximo cuidado
acertava o passo, concentrada,
para não pisar sequer as arestas ou os cantos,
e, quando se cansava,
a distância entre as portas,
a primeira, por onde entrava,
e aquela por onde tinha de saír, era enorme,
sentava-se no chão.
O vestido, rodado, encarnado, formava um balão.
As paredes eram altas, muito altas,
preenchidas por quadros, e Sofia
primeiro ajeitava a saia,
de forma a ficar redonda,
e escondia as pernas lá dentro
só deixando visível a ponta dos sapatos,
e era dali que observava o vitral ao seu lado,
o zénite nas cores vítreas dos anjos e dos santos.
Depois, levantava-se e prosseguia o seu caminho,
sempre a evitar os mosaicos negros,
mas todas as manhãs, invariavelmente, a mãe,
a acordava deste sonho, beijando
a sua pequena cabeça de cabelos brancos.