sexta-feira, 30 de julho de 2021

Eu ontem ia dizer-te uma coisa, daquelas triviais.
Ia dizer-te, "sabes quem eu vi a conversar animadamente, nem sabia que se davam tão  bem..."
Haverias de querer saber, querias saber de tudo o que  me interessava, de tudo o que me aborrecia, dos meus receios, das minhas aspirações.
Eu ontem ia dizer-te uma coisa sem importância,  das que preenchem os dias tranquilos, das que sustêm o amor, tão elásticas e tão aparentemente  indestrutíveis como as teias que fazem as aranhas e que  perduram num tempo infinito, nos cantos das casas velhas, ou entre os arbustos, indiferentes à passagem das estações. 
Eu ontem ia dizer-te qualquer coisa sem importância, para falarmos os dois, companheiros inseparáveis de problemas,  ou de alegrias, ou de tudo o que há para viver neste mundo, eu ia dizer-te uma coisa, eu ia dizer-te uma coisa, mas já  nem me lembro o que  queria dizer-te, era uma coisa qualquer sem importância...


domingo, 25 de julho de 2021

Sem #Filtros

Já me ia embora, quando, de lá de dentro, do fundo escuro da casa, a ouvi pronunciar uma frase qualquer.
Saí para o terraço e dei com os passaritos a olharem-me da gaiola.
Dizia que era a sombra das aves que, por vezes, se atravessava nas folhas de rascunho, de pequenos apontamentos, que habitualmente deixava espalhados sobre o tampo da secretária.
Não era certo, mas diria ser daquele lugar, em frente à janela, que  via o jasmim esperando pacientemente  a chuva, 
e o pássaro olhando, deslumbrado, a árvore salvavidas, velejando do lado de fora das grades.
Apresentava-me folhas manuscritas, em letra indecifrável.
Olhava-me implorando qualquer coisa que eu sabia não lhe poder dar. 
Eram tão rápidas e vaporosas que nem o gato, habituado ao incompreensível, e que  normalmente dava conta de tudo, parecia percebê-las. 
Raramente vinha cá fora ver as flores. 
O canário enchia o chão de cascas das sementes que  atirava sacudindo o bico, e eu, ao dar um ou dois passos, fazia com elas estalassem ligiramente debaixo dos meus pés.
De vez em quando gritava. Sempre que lhes imaginava as asas etéreas sobre a impressora, subindo rapidamente para a página vertical e aparecendo e desaparendo repetidas vezes, mas eu, de pensamento racional, fazia questão de a informar o quanto duvidava da sua passagem.
Depois, queixava-se do quarto virado a norte e da constante falta de sol.







domingo, 11 de julho de 2021

Toque

Hermínia lavava a roupa no tanque do quintal, quando ouviu alguém  abrir o portão do lado oposto da casa.
Apreensiva, abriu a torneira incorporada na parede, passou as mãos por água limpa, secou-as no avental e, a medo, contornou uma das paredes laterais da casa.
Sentada nos degraus junto à porta principal, encontrava-se uma pequena criatura, de pele verde e com uma grande cabeça, e de nariz minúsculo e olhos salientes.
Parecia, também, não  possuir boca, mas quando Hermínia o questionou sobre o que estava ali a fazer, a verdade é que uma grande boca se abriu como que por milagre e até foi possível perceber-lhe os dentes afiados.
Infelizmente, o seu linguajar era indecifrável, o que tornava o esclarecimento das coisas bastante difícil, mas Hermínia, na sua qualidade de artista plástica conceituada, embora em fase de  decadência, desenhava extraordinariamente  bem, pelo que convidou o estranho a entrar e a sentar-se na poltrona azul, enquanto ela ia buscar o material para poder comunicar com ele.
Com grande profissionalismo, Hermínia desenhou o cenário  em que se encontravam, fez uma enorme seta direcionada à figura do viajante, que também incluira na resenha, e foi encolhendo os ombros para que ele entendesse a interrogação.
Não  há  coincidências,  em boa verdade, e se as há é precisamente porque se dá uma qualquer coincidência  das que não existem, mas deixemos isso para depois, em todo o caso o nosso heroí verde era também, no planeta de onde provinha, um conceituado pintor e logo lhe pediu a caneta emprestada e fez o esboço  do corpo de Hermínia cortado em pedaços e guardado em sacos de vácuo acrescentando uma seta que apontava para a parte congeladora do frigorífico.
Conversa puxa conversa, e eles ali ficaram, toda a tarde, a mulher fez um chá e foi buscar uns bolos à hora do lanche, nos quais ele nem tocou, e, através  das folhas em branco do bloco de papel, contaram inúmeras coisas um ao outro enriquecendo-se mutuamente com novos conhecimentos.
O homem verde mostrou-lhe, a traços largos, a família que deixara no seu planeta, a nave espacial do presidente, onde figuravam, pendurados,  vários quadros pintados por si, e outros cenários de especial relevância. 
Hermínia ofereceu-lhe vários pequenos mimos para ele levar para os filhos, mas ele só aceitou um pacote de rebuçados e outro de gomas, que meteu dentro do organismo, através  de um bolso que não parecia estar lá, mas que se escondia inserido na pele.
Pareceu ficar muito entusiasmado com a coleçao de frascos com ervas aromáticas  pelo que Hermínia lhe deu tomilho e alecrim.
Já  a tarde ia avançada e o sol descia no horizonte com alguma rapidez, quando Hermínia ouviu claramente um #toque de trombeta. 
O estranho visitante pareceu ficar nervoso e levantou-se, começando a abrir todas as gavetas até encontrar os objetos pretendidos. Uma faca afiada e sacos o mais limpos possível.
A muitos anos luz daqui, lá para o fim dos fins da via láctea, neste preciso momento, uma mulherzina verde acaba de colocar no centro da mesa já posta um tacho de guisado cheiroso e fumegante, enquanto as suas crias rebeldes e esfomeadas batem uns nos outros com os talheres. 



Violeta Inacabada


Um #toque de deslumbramento,  
era o melhor dos refúgios para Violeta, 
que entrava nas nuvens mais baixas 
para refletir o quanto amava o seu nome de flor.
Era só colocar as pétalas viradas contra o vento 
e tomava-se da capacidade de percorrer pequenos espaços, 
pousando ora nas telhas quentes, 
ora nos muros indolentes, ora nos terraços cinzentos.
Violeta amava tanto o seu nome que desprezava as outras, 
as naturais, crescendo sobre os microondas, 
suspensas dos tetos, ou espreitando, meses e anos, 
adormecidas junto às janelas onde não  bate o sol, 
confinadas a um espaço tão pequeno, 
um vaso de fracas proporções, 
e de gestos tão assustadoramente lentos, 
que se diria estarem imóveis. 









terça-feira, 6 de julho de 2021

dnrht

Doméstico estava sentado num banco de pau, com um cotovelo apoiado na mesa improvisada com caixotes, o único mobiliário que podíamos ver naquela pequena casa. A um canto, duas crianças  brincavam com um trapo que outrora houvera sido uma touca do avô Natércio, mas que agora era o único brinquedo que os dois irmãos  possuíam.
O velhote resistira a todas as pragas possíveis, e ali estava, olhando o filho que por sua vez olhava o infinito.
A bela dama aproximara-se da porta, batera delicadamente com os nós dos dedos na madeira, esperara uns segundos, mas como ninguém  abria, voltou a bater, desta vez com um pouco mais de força.
Dentro da barraquita, Doméstico, alheio a tudo, não  ouviu bater. As crianças,  tendo herdado os genes do avô, e concentradas na sua brincadeira tão  bem elaborada, e que consistia em acertarem um no outro com a velha touca encharcara,  não  ouviram nada também, tal como o idoso que dormitava no chão, enrolado num cobertor tão sujo como ele próprio. 
Isabel insistia em que lhe abrissem a porta, mas os  nós dos seus dedos já sangravam, e não conseguia fazer-se ouvir. Olhou à sua volta e descobriu um tronco de eucalipto que lhe permitiria dar uma pancadas mais fortes, até, se necessário  fosse, rebentar com a porta.
Natércio acordou revigorado da sesta. Talvez por isso, se apercebeu do barulho e agarrou no cajado que tinha sempre consigo, para avisar o filho tocando-lhe com a sua ponta nas costas.
Ninguém poderia supor, ao ver tão frágil criatura, a determinação  que tranportava consigo,  mas a generosidade, por vezes, alimenta-nos de uma força  extraordinária e a verdade, verdadinha, é que a delicada senhora partiu a porta em dois e viu-se aterrada no meio da casa.
A família de Doméstico bem conhecia a quela criatura angelical e santa. Sempre que por ali passava era para os ofertar com pequenos e úteis presentes.
Isabel largou o tronco do eucalipto no chão, que rolou até  acertar em Natércio.
_Olá, Doméstico e família. Como passasteís nestes últimos tempos? Tivesteís muita fome? E frio? E doenças? Trago-vos o que  consegui surripiar no castelo. O Dinis controla tudo o que eu escondo no regaço. Têm queijo da serra, pão, vinho, e um #ouvido para o idoso. Para a semana trago o outro._
_Obrigada, gentil senhora! Crianças,  cuidado! Não  acertem na D. Isabel!_ mas o aviso não foi a tempo e o projétil já  encontrara as faces da bela senhora.
A bondosa dama não  relevou o acontecido e prosseguiu aproximando-se de Natércio. Içou um pouco a saia comprida para melhor lhe tocar com a ponta do sapato.
_Levantai-vos da enxerga, para que vos enrosque este ouvido na orelha direita. Isso. Agora dizei-me. Estais-me a ouvir? Sim? Formidável!
E vós, criancinhas? Desejais acertar-me outra vez nas faces? Podeis, pobres anjinhos de Deus._
Doméstico tinha o peito quase a rebentar de gratidão. Bastava, pressentia, que Isabel ainda os agraciasse  mais uma pequena coisa, um amendoim por exemplo, e rebentaria mesmo, na verdadeira acepção das palavras, e os seus órgãos  internos espalhar-se-iam, despedaçados, pelo recinto.
E foi quando a bondosa raínha levou a mão ao bolso, exclamando:
_Trouxe destes já descascados, Doméstico. Ora comei uns quantos aqui comigo._
D. Dinis, que brincava às escondidas com dois ursos no pinhal de Leiria, ouviu, claramente, o grande estrondo.