quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Os plátanos (2)

Precisava de um caderno de folhas limpas, só vejo uns quantos todos escrevinhados, conversas inacabadas, jardins abandonados, as ervas a crescerem livremente, nada de bonito, nada de bom.
Alguns até são de outras pessoas, reconheço a letra da minha filha, usurpados a quem lhes dá o uso correto, e não para mim.
E esta divagação que encontro, começada a meio duma página, mesmo no final de outra história, e com o fim na contracapa. Percebo que é a mesma porque está com uma destacável tinta roxa.  Nem percebo a letra, nem interessa. Se não fôr tudo lixo também não passarão de voláteis pensamentos, comentários exclusos, mecânica artesanal, metros quadrados de colchas e cachecóis, feitos a pensar em ninguém, ou em alguém muito especial que nem sei, sequer, se existe!
Há! Precisava de um caderno de folhas limpas, uma caneta que escrevesse sozinha, uma aplicação para o computador.
Releio umas quantas palavras, e, insisto, da letra não se percebe nada, onde pus eu o fim desta memória, ou aquela história tão bem escrita de um homem que abre a pasta onde estão os seus poemas, e os despeja na sanita. Não, não era assim. Era uma coisa mais bonita. Espalhava-os na calçada molhada, debaixo de chuva, para que dos seus versos indeléveis não restasse nada, para lhes pôr um fim!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O Grito (2)

Era uma sala sem nada. Só as paredes brancas, o teto e o chão.
 Primeiro ouviu-se um fraco gemido, do homem acocorado num canto. Os braços em volta das pernas encolhidas, a cabeça escondida pelos joelhos.
 Depois um lamento. Um lamento quase musical, um som em surdina, tépido, ainda assim incapaz de emanar qualquer espécie de calor.
 O homem levantou lentamente a cabeça e espreitou o espaço vazio. Quebrado o mutismo continuava a sentir-se completamente sozinho porque a sua voz doce era como se não existisse, e só ele a ouvia.
 Depois um grito. Um grito lancinante e feroz, uma coisa animalesca, um urro selvático, um rugido pragmático, um incêndio que qualquer de nós tem por dentro.
 Levantou-se em movimentos rápidos com os pulmões abertos em berros insuportáveis e descontrolados.
 Queria mexer em objetos, ou, quem sabe, arremessá-los contra alguém de quem não gostasse, e que, por um mero acaso, se materializasse à sua frente.
 Pôs-se de gatas para sentir o chão com a palma das mãos, com as pontas dos dedos.
 As suas mãos afagavam o mosaico frio, e assim foi andando, de rastos, o grito a esmorecer, e, em gestos lentos, acabou por encontrar o seu canto,  um leve cheiro a vida, levíssimo e surpreendente.
 Sentou-se.
 As pernas encolhidas, os braços em volta delas, a cabeça escondida entre o corpo e os joelhos.
Depois um  lamento, depois um gemido, depois o silêncio.