sábado, 26 de março de 2022

#Espanto

Cidália queixou-se de Etelvina.
Já o tinha feito anteriormente, mas nunca tinha relatado os acontecimentos a Maria, dizê-lo a Maria foi a primeira vez.
Por duas vezes pedira ajuda a Simone, todavia Simone não lhe dera grande importância, os seus afazeres eram muitos, e em ambas as vezes deixou o assunto para esclarecer mais tarde. 
Cidália era muito gorducha, falhavam-lhe os joelhos gastos pelo excesso de peso e acrescidos das fragilidades ganhas com o passar dos anos. Os chinelos estavam-lhe grandes em comprimento para que lá coubessem em largura os pés edemaciados, e assim arrastava devagar pela pela casa seu o corpo grande.
Etelvina era mais velha dois anos e tinha uma cara comprida e magra.
Maria abriu os olhos de #espanto.
Cidália sempre vivera tranquilamente não esperando coisa nenhuma, e muito menos nos últimos anos.
Etelvina foi confrontada por Maria e, enquanto isso, dava passadas leves e nervosas entre a cadeira e o sofá e apoiava os dedos curvos, ora no tampo da grande mesa, ora na arestas do aparador. 
Maria abriu a porta e gritou por Simone. 
Simone entrou no recinto e confirmou as queixas.
Cidália garantiu as ameaças  de Etelvina, as palmadas nos ombros, o puxar dos cabelos, a perseguição rápida e eficaz. Numa casa de banho, às vezes no quarto, fixara-se nesse quotidiano e atentava de manhã  à noite uma oportunidade de a encontrar sózinha.
Cidália lançava-lhe palavras tremidas de receio, enquanto Etelvina a empurrava firmemente, sem vacilar, ou lhe puxava o cabelo, ou lhe colocava os olhos baços a dez centímetros dos seus.
Maria olhou Cidália, sentada numa cadeira, com as pernas afastadas, a barriga proeminente e o vestido azul. Depois olhou Etelvina e depois olhou Simone, insistindo em esclarecer.
Etelvina negou.






sábado, 12 de março de 2022

Um #Quinteto Informal


Preciosa da Silva tinha combinado um encontro com Raquel.
Havia já uns dias que  tentava encontrar-se com a amiga de modo a devolver-lhe uns pertences que lhe pedira emprestados fazia uns tempos.
Tendo combinado às cinco da tarde para um lanche informal, e já  um pouco atrasada, meteu para dentro de um saco os três objetos que precisava transportar.
O primeiro era um #perliquitete, com umas belas aplicações de triptonéscia, uma peça  muito útil na pulverização de estórnios, e os outros dois eram salmendros, um de maiores dimensões e outro bastante mais pequeno.
Com a agitação  que provocam as saídas apressadas, e que é comum à maioria dos mortais, Preciosa não teve os devidos cuidados no transporte de peças tão sensíveis, não as protegeu da trepidação do caminho, envolvendo-as em papéis e plásticos, e elas foram a embater umas nas outras até chegarem às mãos da dona.
As amigas cumprimentaram-se, sentaram-se ambas à mesa de uma casa de chá, mesmo em frente a uma grande janela, e Preciosa, antes que a conversa animada lhe fizesse esquecer o propósito do encontro, tirou do saco os três  objetos que colocou em frente a Raquel para ela os guardar na sua mala.
Raquel quando viu o periquitete sem a sua esmórnia fez uma  cara que revelava grande contrariedade. 
_Então a esmórnia do periquitete? Deves estar a brincar comigo!_ proferiu, questionando Preciosa.
_Hoooo!_ respondeu a outra_ Não sei. Deixa cá ver._ e dizendo isto, meteu o antebraço todo dentro do saco para ver se a esmórnia do periquitete tinha caído lá para o fundo, ou tinha sido o gato Romeu que, em casa, a tinha partido sem ela dar por isso. _ Está aqui_ concluiu, satisfeita.
Mas Raquel estava muito aborrecida, e pior ficou quando olhou para o salmendro grande e praticamente toda a triponéscia que o cobria, nuns belos relevos florais, tinha saltado e já  não se encontrava na superfície do magnífico objeto em forma de sisitício.
_Olha para isto! _Raquel quase espumava._Estragaste tudo!_
Pelo canto do olho, Preciosa viu uma criança aí com os seus sete anos, um menino muito bem aprumadinho, vestido com fatinho azul de entona, com o nariz  colado ao vidro e rindo-se à gargalhada, enquanto batia com o dedo na montra apontando para o periquitete.
Foi a gota de água, a cereja no topo do bolo, quando Raquel seguiu com os seus olhos a direção do olhar da amiga e também  se deparou com a criança.
Após a fúria, Raquel teve um ataque ansiedade e tristeza, percebendo que nada, mas mesmo nada, poderia devolver-lhe em condições tão raras e preciosas peças, e começou  num enorme pranto. 
Quanto mais Raquel chorava, mais o miúdo se ria, e Preciosa não  sabia o que fazer, pelo que foi chamar o menino lá fora.
Sentou-o numa cadeirinha e puxou outra para si, pediu um café e um pastel de nata, e ficou ali sentada a vê-los nos seus variados estados de alma, até anoitecer.
No fundo do forro da sua velha mala, ainda hoje permanecem pedaços e migalhas de triponéscia dourada, embora Preciosa já tenha morrido.