sábado, 29 de setembro de 2018

Dois Soís




Gostava de ver os dois soís a esmoreceram,
juntos, do outro lado do mar,
era tão bonito,
com os cães a segui-lo
e depois sentavam-se ao seu lado,
a observar.
até desaparecerem por completo
as duas bolas de fogo no horizonte,
e eles se enfiarem todos pela noite dentro.

Por tudo e por nada se riam, como perdidos,
ou porque tinham abelhas nos ouvidos,
ou simplesmente do ruído dos automóveis
que passam na estrada.
ou, mais raramente,
do #escape das motorizadas àquela hora da noite.

É sempre  um efeito inesperado que exerce nas coisas,
aquela escuridão.
Ás vezes, também propicia arrepios de medo.

Tudo são sombras indefinidas,
não há visibilidade nas fracas luzes amarelas,
nem se podem pisar umas folhas secas
sem as ouvir,
como um eco, e eu a ver
a silhueta do gato recortada,
primorosamente, na parede parda.

Não há cor.
Só uma sombra escura em forma de gato inquieto.

E, se por acaso, algum pássaro se mexesse
nos galhos mais fracos,
ajeitando as penas para dormir?

São esses miseraveis,
os primeiros a deixar cair as folhas
pelo outono trepidante abaixo.

Sentava-se num muro
de pedra. propositadamente colocado
ao fundo da rua, com os animais em volta,
e balançava as pernas, silenciosamente.
até o dia nascer.












quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Berretaba

Foi um crime muito violento, daí ter sido tão noticiado na época.
Duas cenouras entraram, armadas, aproveitando uma janela aberta nas traseiras da casa, e mataram-nas, a sangue frio, com vários golpes de faca.
Surpreenderam o casal, sentado no sofá, a ver um programa de televisão muito interessante sobre o sofrimento dos legumes em tempo de seca,
Bebiam, distraídos, o café
A espuma do café ia desaparecendo para dar lugar ao líquido, em fabulosos processos químicos, apanharam-nos pelas costas e desferiram sobre eles vários golpes de faca.
O alho françês escondeu-se, mas a rama percebia-se por detrás da porta.

O jantar não podia ter sido mais romântico.
Logo no início, quando comiam as entradas, ele meteu os dedos dentro do prato gorduroso, e  atirou-lhe para cima, nervosamente, um pedaço de cogumelo salteado, tentando acertar-lhe no bolso lateral da camisa.
Ela, corando, respondeu à provocação cuspindo-lhe  pequenos pedaços de queijo para os olhos .
Foi o suficiente para sentirem uma química muito especial entre ambos.
Mas só perceberem que seriam um do outro para o resto das suas vidas, passados uns largos minutos, quando sorriram com a belíssima cor da #beterraba incrustada nos dentes e na língua.
Então riram tanto, e tão alto, que os vidros, os cristais e as outras louças, durante vários minutos, tilintaram violentamente, o que se comunicou ao resto do edifício, e percorreu todas as ruas possíveis, até preencher a cidade com o chinfrim mais encantador alguma vez ouvido por aquelas paragens.





terça-feira, 25 de setembro de 2018

A Amêndoa Dourada (da série "Era uma vez")

Era uma vez uma menina muito pobrezinha no que respeita a bens materiais, mas muito rica de sentimentos. Quantas meninas não há assim neste mundo?
A mãe tinha morrido quando ela era pequena, quantas vezes isso acontece, e ela viu-se obrigada a ajudar a criar os seu irmãozinhos, todos mais pequenos do que ela.
Um dia, quando fazia "o comer" para a família, já que o pai não a podia ajudar porque trabalhava de sol a sol, e mesmo quando estava de folga não lhe apetecia interromper o telejornal para fazer de sopeira, encontrou uma amêndoa no chão.
E reparou nela porque brilhava como se estivesse revestida a ouro, e foi esse brilho que lhe chamou a atenção. Parecia um sinal divino de qualquer coisa, que ela, naquele momento, não entendeu, mas que mais tarde haveria de perceber do que se tratava. Talvez o sr. prior a pudesse esclarecer quando fosse à missa, no domingo de manhã.
Dito e feito, quando chegou à igreja dirigiu-se de imediato ao padre e relatou-lhe o sucedido.
"Minha doce Lurdinhas, não te deixes iludir. O que encontraste é apenas uma amêndoa com banho de ouro, sem qualquer significado transcendental.", e a menina ficou muito triste e baralhada, de tal forma que até se esqueceu da lengalenga que tinha que pronunciar, juntamente com os demais crentes. E quando digo "demais", é porque eram mesmo demais para uma igreja tão pequena.
Para uma criança tão habituada, desde tenra idade, a proceder como um adulto não lhe foi difícil mexer os lábios fingindo acompanhar os outros, mas, quando saíu para a rua deu largas à sua tristeza e desatou num choro convulsivo, prevendo que a sua vida, a partir daí, continuaria a mesma merda de sempre.
Muito naturalmente,  se se tratasse de uma #avelã, a história teria tido um desfecho diferente, para  melhor, mas quem sou eu para a modificar?



domingo, 23 de setembro de 2018

Inicial, ou #Zamora

Ainda vinha muito ao fundo, já eu sabia que era ele.
Tinha  passos de corcunda, pequenos e frágeis, como se tivesse medo de cair, ou como se o corpo não acompanhasse a sua vontade de se mover.
Quando  me detetava, parava o  andar vacilante e acenava-me com a mão direita, enquanto o braço esquerdo pendia, inanimado, ao longo do corpo magro.
Era um homem velho, ou, se quisermos ser mais delicados, por um lado, e por outro seguir as normas da boa linguagem, respeitadora e atual, um idoso.
Um idoso sem história, que passeia, dentro do que as suas capacidades lhe permitem, pelas ruas de Lisboa.
Já nem as gargalhadas que deu, em tempos, tinham a mesma sonoridade.
Eram fracas, tão fracas que , quando ria, ninguém reparava que se estava a sentir bem disposto. Simplesmente não se ouviam, sob aquele ruído infernal da cidade, ou sob os gritos de alegria das crianças no recreio da escola.
Essas crianças que haverão de crescer, tão rápido que elas crescem, até os seus risos deixarem de ter força, abafados pelo ruído dos automóveis, dos autocarros, ou de outras escolas, onde pulsa a vida, e onde brincam os futuros homens e mulheres, que um dia alguém verá lá ao fundo, a dobrar a esquina, com os passos claudicantes, e os olhos azulados pelo tempo.
E terão um dos braços caído ao longo do corpo, e uma das mãos acenará para alguém que, se lembre, como eu,  que #Zamora existe,  ou alguém que, venturosamente, os possa também conhecer.








Yamaga

Um Concerto em #Yamagata

Sentou-se a ouvir a beleza
extraordinária,
e eu,
como inseto inoportuno,
ando aqui a rasar-lhe a cabeça
em voos incomodativos,
enquanto pensa,
ou então,
pouso descaradamente
em cima da mesa.

Vogava  eu num feixe de luz
que lhe está a travessar o quarto,
neste momento,
desde a janela até
à parede diametralmente
oposta,
quando senti a obrigação
de me aproximar,
para a ajudar
a voltar a este mundo
caso se tornasse
necessário.
Foi só por isso
que a fui aborrecer.

Assim que entrei,
embateram à entrada
dos meus ouvidos,
e desfizeram-se imediatamente.

Como não as percebi,
também não as podia reproduzir,
nem tão pouco descodificá-las,
e então,
queria gritar-lhe qualquer coisa,
e não me saía
nem uma das suas muitas
frases genialmente
alteradas.

Só mais tarde verifiquei
que são completamente
intransponíveis,
talvez pela forma eficiente
como estão agregadas,
e, também, porque
não são propriamente palavras.

Portanto, todo o esforço
que pudesse ser feito,
para as agarrar,
resultaria em coisa nenhuma.

Na verdade,
eu que tinha uma vida
de poucos dias,
mas possuia a faculdade
de criar asas rapidamente,
que remédio,
dum verde brilhante
ou uma outra cor qualquer,
aleatória,
mas com aquela tal
beleza extraordinária,
é quando vejo o sol
a pôr-se,
a desaparecer do espaço
inteiro e fechado,
como se o tivessem alugado,
indevidamente,
para uma festa particular
e soturna.

E foi então que entendi,
de forma muito clara
e impossível,
um ligeiro e frágil
tudo ou nada

Era, quem sabe,
o seu sangue que bombeava,
incerto,
no meu próprio coração
e que acabou por adormecer,
por causa dos elementos
misturados
em proporções inadequadas.





sexta-feira, 21 de setembro de 2018

#Wells, o Homem Monstruoso

O homem monstruoso
sentou-se à mesa,
com os óculos grossos
escorregados
até à ponta do nariz
e deu início à refeição
que acabara de preparar.
Tinha à sua frente
um copo,
e os talheres,
meticulosamente
arrumados, um de
cada lado do prato.

A música enchia-lhe
o espaço inteiro,
e, pela janela,
se quisesse,
podia tocar as árvores.

Era só esticar os grandes
braços disformes.

À tarde,  no tempo delas,
o homem monstruoso
ia colher rosas no jardim.
Para comer.

E era quando os gatos
se roçavam nas suas pernas
arqueadas,
e mais nada se mexia.
Apenas eles
e os pássaros que fugiam
da sua figura horrenda,
partindo, apressados,
para destinos mais quentes
e mais bonitos.

Depois dessa fuga,
era inevitável.
Haveria de sentir o pulsar
das primeiras brisas de outono
e o seu suposto
movimento nas sombras.

Mais tarde,
bem mais tarde,
já seria o vento violento,
ou a tempestade,
que lhes determinaria a vida,
a elas, às sombras,
ou ainda,
a criação previsível de fantasmas
sobre uma tela de tintas
misturadas.

Ao fundo, no rio de margens soltas,
pelas correntes,
gritos noturnos deslizavam
na superfície da água.




quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Purple Rain

Purple rain,
purple rain...

Quer dizer..., o candeeiro tinha a lâmpada avariada, mas afinal é composto por  uma só peça, não se pode comprar nada separado, funde-se a lâmpada, pois..., lamentamos, mas tem determinada durabilidade, e tal. 
Tenho que comprar outro.
Depois, à saída, mandam-me pôr o lapinhos ridículo, que eu fanei por acaso, lá numa mini caixa.
Para Bem do Ambiente, está lá escrito. 
Ok. Tirei-o logo da mala como se queimasse. Livra!
#U2 para eles, também.





Sem Título, ou Páginas soltas dos diários da dra Andreia


Quando deu por ela,
o teclado estava à
sua frente,
pronto para ser usado.

Não sabia como tinha
ido lá parar.
Tinha largado
a sanita
à qual estava tão bem
abraçada.
e esse seu objetivo
anterior,
o de limpar  um recanto
mais difícil,
da casa de banho,
enquanto ouvia U2,
evidentemente,
esfumou-se,
que é como quem diz
desapareceu,
foi ultrapassado.

Nada de imaginar
romances desvairados
e os seus respetivos
desfechos desoladores.
Não é possível
acreditar em
semelhante parvoíce.
Pessoas e lavabos,
e amor aos molhos,
só porque lhe tinha
os braços em volta.
Mas está tudo maluco,
ou quê?

Passou pelo espelho,
acenou levemente
a si própria,
que é como quem diz
cumprimentou-se,
estranhou, foi
ter os olhos raiados
de vermelho,
e sentir uma sensação,
no coração,
como se os vapores
do Cif limão
lhe tivessem provocado
alucinações
por causa
de vapores tóxicos.

E mais não sei.













terça-feira, 18 de setembro de 2018

O Tiro

Firmino levou um #tiro que o atravessou de um lado ao outro, mas não o matou
Pelo contrário, ficou com uma saúde de ferro.
Para além disso, ainda ganhou o poder estremoso de entreter as crianças.
"Ora anda cá!"
Subiam a uma cadeira, ele amparava-as para não caírem, e elas espreitavam pelo orifício que ele tinha na nuca, e que fora deixado pela bala, seguindo, inclinado e oco, até à testa.
E que alegria, a dos meninos, poderem, por entre a sua cabeça, ver o lado de lá da estrada!
"Embora ver a paisagem através do avô?", combinavam, entusiasmados. os seus próprios netos.
Nos dias de sol, o Firmino colocava-se bem de frente para o dito, e os miúdos riam-se com a bolinha de luz que era projetada na parede. Rodava o pescoço para a fazer mover, e eles davam cristalinas gargalhadas.
No dia em que foi chamado ao hospital para marcar a data e outros preliminares da cirurgia reconstrutiva, tinha pensado a equipa responsável colocar-lhe terra e umas sementes de coentros naquele pedaço de cabeça a preencher, ele recusou terminantemente.
"Deixe lá!" Insistiam, "é para o seu bem. Já viu que depois tem coentros sempre fresquinhos? E se tomar os medicamentos conforme prescritos, dão o ano todo!"
"Obrigado, mas não. Não consigo trocar ervas aromáticas pela alegria de tantas e tantas crianças.
Lamento."
E saíu do consultório para nunca mais lá voltar.






segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Setembro

O homem chegou-se
à beira do rio,
inclinou-se
sobre a água, e,

com a mão em concha,
apanhou um folha
de  #setembro
que circulava,
devagar.

Os seus olhos
abrangentes
rolaram pelo cenário,
procurando
a árvore
a que ela pertencia.


Queria devolver-lha.
Insistir
para que  vestisse
outra vez,
o seu manto
intransponível.


Não suportava
antevê-la,
imaginá-la,
inevitavelmente nua
dentro de todos
os invernos,
e com as raízes
mergulhadas
no gelo.












,









Setembro

Com a mão em concha apanhou uma folha de setembro, que circulava na água, devagar.
Em breve.

de vez em quando, mais, se calhar, do que seria conveniente, ligo o modo palhaço. É uma opção pouco popular, até se nota nos comandos muito usados pelas pessoas, que a tecla está menos gasta.


Quando não me lembro dos meses que têm trinta ou trinta e um dias, digo cá para os meus botões uma lengalenga:

Trinta dias tem
novembro, abril
junho e #setembro.

Nunca quis aprender aquela ceninha que se faz com os nós dos dedos.
Irrita-me, não sei porquê..., mas atenção, tenho grandes amigos que fazem isso a toda a hora, e não me chateia.
Até acho graça. Pergunto assim, do nada, "Quantos dias tem setembro"
E peço, educadamente: Faz lá aquela ceninha com os nós dos dedos...!"
Depois, depende do tipo de pessoa com que estou a falar.
Uns, começam num desatino, sem parar, é preciso desligá-los no interruptor que têm nas costas, e deixá-los arrefecer um bocado. Outros recusam-se e até se aborrecem comigo.
Mal educados, alguns.
Enfim, há de tudo um pouco.


domingo, 16 de setembro de 2018

#Risco



Aquele homem, o único habitante lunar conhecido, o velho com um saco  às costas que qualquer pessoa pode observar de cá de baixo da terra,  usa um penteado ridículo.
Sei porque se chega à minha beira, quase lhe toco, preso à cintura por um enorme cabo de aço, que guarda, muito bem escondido, dentro de uma cratera, metodicamente enrolado, precisamente na outra face da lua.
O #risco perfeito sobre a têmpora e parte do cabelo virada para cima acompanhando o arredondado da cabeça  denunciam-lhe o couro cabeludo completamente liso.
Nos dias de muito vento, e apesar da fixação pormenorizada a que o sujeita todos os dias, em frente ao espelho sideral, levanta quase em riste, como a bandeira das praias em tempo de nortada.
E por me ver rir, às vezes sem controlo,  por ser demasiado cómico, o velho da lua ameaça-me constantemente com o saco.



Nau

Procurava companhia nos objetos
sem vida
nas pessoas sem rosto
nos animais sossegados
enroscados numa cadeira
a apanhar o sol tardio
e húmido da manhã de nevoeiro.

Só deu pela  reviravolta quando
sentiu os bonecos inanimados
da televisão
acordados inesperadamente.

Atràs do ecrã
naquele dia lindo de névoa
espreitava o ladrão de
todas as vírgulas possíveis.

O larápio entrava sorrateiramente
no discurso e roubava-as
para depois as enfiar na face de alguém.
Como setas.

Esse rosto cravejado de
pequenas unhas falciformes e sujas
arrancadas ao texto
que ficou sem nenhuma
metia dó.

O derrotado escorregava
por ali abaixo
sem controlo
Nem uma ficou para amostra.

Entrou como quem entra
descomprometido
e  percorreu as linhas com os olhos.
Identificou-as rapidamente
localizou-as
recolheu-as
e fez aquela maldade ao outro.

E os livros nas estantes riam-se
que nem uns perdidos
embora só nalgumas passagens.
Noutras ficaram sem fôlego.
Gostavam daquele jogo
de arco e flecha.


Não brinques com o fogo
cantavam em coro as bolhas bolorentas
entre as bolachas e o café.
Muito bem.
Assim farei cor de rosa.


Foi quando  a água da garrafa borbulhante
nos pediu a todos
o máximo  silêncio. Por favor.

Soaram os tambores.

E tudo para  traçar um #risco pequenino
no papel
que mais parecia uma vírgula.









sábado, 15 de setembro de 2018

Quinze

O minha gata Fedra já era adulta, quando caíu de uma altura razoável,
porque foi apanhada desprevenida com o estalar de um foguete mesmo ali ao lado,
e que ressou nos seus ouvidos, explodindo.
Mas, enquanto ia no ar, arqueou o dorso, deu ali umas voltas,
sei lá como fez para aflorar o chão nas quatro patas e aterrar direitinho
Era a quarta vez que lhe acontecia uma perigo daqueles,
tão próximo da fatalidade, e só lhe restavam, portanto, mais três vidas.
Anos depois, ia fixada na perseguição de um rato,
atravessou a estrada em corrida,
mas um carro saíu da curva,
e só teve tempo para dar mais velocidade ao seu corpo elástico
e escapar por um triz.
A penúltima vida gastou-a , no inverno chuvoso do ano que passou,
andou pelo quintal debaixo de uma tempestade, e,
como já não era muito nova para se aventurar em explorações,
com tão rigoroso tempo, contraíu uma pneumonia.
Teve a sorte de ser muito bem tratada e, mais uma vez, se safou.
A minha gata Fedra vive agora só com uma vida.



sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Pérola

Mergulhamos
e o nosso amante
de mil braços
envolve-nos.

A superfície do sol
forma #pérolas macias,
a areia cai, em grãos,
que brilham no chão,
que, por vezes,
se estendem em calor
até
à imensidão do
absolutamente nada,
e os versos morrem,
tragados pela água.

Os seus restos mortais
desfazem-se em espuma.

As nossas gaivotas esperam
por nós
em todo o lado
e quando nos vêm, gritam.

Estão na calçada
dos quadrados dos vários
círculos cinzentos
desenhados
na pedra.

Ou nas aldeias brancas,
ou sobre os nossos penhascos,
ou sobre as nossas casas,
ou sobre os nossos barcos
de pesca,
ou sobre o nosso mar,
porque é outra vez
o nosso mar que
nos persegue.





quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Grão


Só te levantas quando comeres o #grão, Vasco, já sabes...
E o Vasco pôs-se a contar:
Um grão
dois grães
três grões.
enquanto os passava para o outro lado do prato.

Estava a criança neste preparo, quando o Gigante, o único gigante daquelas terras, passou, olhando atentantamente para tudo o que o rodeava.
Reparou, com os seus olhos de lince enorme, que dentro de um apartamento, num prédio de muitos andares, estava aquela criança triste, debruçada sobre a mesa da cozinha, e teve pena dela.
Inclinou-se o mais possível, provocando uma enorme sombra, e perguntou-lhe: " Como te chamas?"
"Vasco", respondeu o miúdo
"Não gostas de grão, Vasco?
E com a unha suja de restos de árvores e alguns pedregulhos de granito, que para ele era simples #grãos de areia, enfiou o dedo mais pequeno pela janela, e puxou o Vasco que foi içado, muito confortável, entre a pele do monstro e um ramo de eucalipto.

O miúdo deliciou-se com a viagem que fez, os mares, os montes e tudo mais, vistos do alto. Que maravilha!
Mas de repente ouviu um enorme grito, que o assustou, e começou a cair em modo desenfreado, de lá de cima.

"Então adormeceste em cima do grão, Vasco?
Come!
E o Vasco acordou, e pôs-se a contar:
Um grão
dois grães
três grões.
enquanto os passava para o outro lado do prato.

sábado, 1 de setembro de 2018

Entre o #postal_de_férias e as férias

Hoje em dia já todos nos habituámos, mas lembro-me bem que foi uma época muito conturbada, sobretudo para as crianças.

Eram elas que, saíndo de casa, noite cerrada, mais confundiam os candeeiros com a lua, e mordiam, enraivecidos, tudo e todos,  principalmente, os  amiguinhos mais pequenos, presas fáceis, mas também, nos casos mais graves, pais e professores.
Em casa, notava-se-lhes um nervosismo perigoso, e as famílias temiam pelos seus animais domésticos e pelos idosos.

Mas nem  todos reagiram desta forma, apesar de tudo, a menos má para a formação das suas personalidades.
Havia os que ficavam  tristes. Muito tristes.
Sentavam-se nos cantos, com os joelhinhos encolhidos em frente ao queixo, sem dizer uma palavra,
Podiam olhar-nos com os olhos secos e brilhantes, ou então, com eles molhados das lágrimas de tanta incompreensão e mau estar. Era francamente desolador.

Veja-se o caso de uma miúda que ia de mão dada com a mãe, carregando consigo uma grande confusão. a cabecinha sensível completamente baralhada, o ar desnorteado, mais intenso do que o seu costume. Vinham de regresso a casa depois da explicação de aritmética, das aulas de natação e de esgrima, como era habitual, e é claro que a senhora atravessava momentos de grande preocupação.

"Ó, meu anjo, não fiques assim. O sol quando nasce não é para todos, é o q' eles `'tão a fazer com isto. Não vêem a tristeza destes meninos? A saírem de casa de noite? Queres um geladinho, ou um pastel de bacalhau? Ou melhor..., queres um gelado de pastel de bacalhau  e queijo da Serra?", e fez o ar mais entusiasmado e sorridente possível, na tentativa de contagiar a criança com a sua alegria.

Mas nada entusiasmava o desânimo do seu coraçãozinho.

Só muitos anos depois, já em adultos, e graças ao trabalho conjunto de diversos especialistas, os problemas foram ultrapassados, não obstante ter deixado graves sequelas.