domingo, 28 de agosto de 2022

O Mistério da Rua Estreita

No verão, quando o rio perdia a violência e os seixos arredondados das suas margens se deixavam ver, eu e a minha mãe descíamos a rua estreita, e, enquanto eu olhava, atento, para o chão perigoso, ela segurava-me na mão para eu não cair. 
Passávamos pela casa preta, assim lhe chamávamos por causa das tábuas verticais e negras que lhe cobriam as paredes, avistávamos, por vezes, uma das duas velhas irmãs que lá  viviam, ocupada a regar as flores que saíam dos vasos de barro, ornamentando, suspensas, o varandim de grades centrado no primeiro andar.
 As duas mulheres nunca nos cumprimentavam, nem uma, nem outra, eram secas e antipáticas, talvez nem nos vissem, quem sabe... 
Como dizia, descíamos a viela pela calçada irregular, sempre com cuidado, embora os nossos pés praticamente descalços, metidos sómente em velhas chinelas presas entre os dedos, tivessem os passos moldados de tal forma às irregularidades, que íamos descendo, sem surpresas, até alcançar o rio onde, por aquela altura do ano, a água  corria devagar.
Havia uma  escada de acesso toscamente construída, daquelas que nem entendêmos se foi a natureza que casualmente a inventou, ou se a fizemos nós dos nossos passos repetidos, por ali andarmos vezes sem conta. Nessa altura, minha mãe quase me pegava ao colo agarrando-me pela cintura, para que o meu pequeno corpo não  perdesse o equilíbrio nos degraus que se me apresentavam enormes.
Éramos, tenho essas memórias pairando à minha volta, de um entendimento sem palavras, daí eu ter a recordação tão nítida e silenciosa dos murmúrios da água e dos rumorejar que provocavam as  asas dos pássaros entre as folhas das árvores, do sorriso dela e dos seus olhos infinitos. 
Fazíamos das pedras maiores os nossos bancos de jardim, e eu sentava-me a olhar, ora alguns reflexos que se iam formando na superfície líquida, mesmo à minha frente, ora algum peixe que saltasse lá mais para o fundo, próximo da outra margem. Quanto à minha mãe, não sei o que olhava. Via-lhe o perfil bonito a sair dos cabelos desalinhados, os olhos fixos em nada, nem os saltos dos peixes a distraím daquele ponto imaginário na água, nem tão pouco os patos deslizantes a faziam pestanejar.
Por vezes, eu levantava-me e explorava um pouco a zona circundante, ia até onde podia ir, chegava-me à frente o mais possível sem molhar os pés, ou ia para trás e subia duas ou três pequenas reentrâncias de terra, lá no único canto que me possibilitava a vista de algum pedaço  da aldeola, para eu espreitar. Só duas casas, surgiam destapadas por entre os ramos das árvores frondosas que existiam por ali em quantidades quase selvagens.
Numa delas, a mais alta, o homem lá estava, com os cotovelos apoiados no granito da janela. Tinha uma camisola branca de alças brancas e, mesmo nos meses de gélido frio,  permanecia sempre lá, no mesmo sítio, com a mesma roupa, como uma estátua de carne e osso, a observar o fumo do seu cigarro desvanecendo na neblina.
Se me aventurava por caminhos perigosos, a minha mãe aparecia ao meu lado para me conduzir na minha curiosidade, ou, se necessário, para me levar dali.
Depois de um tempo de horas ou minutos, nem sei dizer,  talvez segundos, ou dias, regressávamos subindo a rua. Havia um beco do lado direito e eu tinha uma grande curiosidade em saber onde terminava porque desembocava numa floresta sem luz, ou pelo menos era o que  parecia, mas nós nunca virámos para ali, continuávamos sempre a direito, até eu adormecer.





segunda-feira, 15 de agosto de 2022


Havia sempre qualquer coisa a invadir os poemas, podia ser o mar revolto, ou a luz do sol, ou um dia absolutamente cinzento, ou outra qualquer circunstância  temporal, sim, porque o tempo também os invadia, galgava, como as ondas, as rochas mais imponentes, voava como as gaivotas e pousava na água para se alimentar.
Os poemas,  sólidos enfim... talvez nem tanto, os poemas sentiam os incómodos na pele, os poemas tinham pele bronzeada, brincos de búzios apanhados ao luar, talvez... vento nas folhas verdes, pássaros pousados voando sobre os fios da eletricidade e escrevendo recados redondos abaixo das nuvens desenhadas.
Os poemas sentiam-se ultrajados, instáveis, inseguros,  com as nortadas que os viravam de pernas para o ar, interrogavam-se sobre a existência frágil a que estavam sujeitos, previam a  morte eminente, as palavras de que eram compostos vogando no vácuo, despedaçadas.
Entrementes, as ondas iam desenrolando na praia, o mar insistia em encharcar as palavras, separar os versos, até não existirem. Que medo!
O poeta olhava a trajetória da luz invadindo o vidro do copo e o líquido transparente que lá estava dentro, com os seus poemas submersos.
Ontem,
Na água salgada havia um brilho arrebatador, porventura  cristais de sal, era, tinha sido uma noite de grande luminosidade, de sombras bem definidas nas paredes das casas brancas, havia sempre qualquer coisa a invadir os poemas, não sei...









sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Eu, que tinha os olhos alinhados com a água, 
já  lhe tinha percebido a falta de espaço.
Bastara observar a sua superfície convexa 
para entender que as frágeis ligações dos seus átomos
estavam praticamente a ceder.
As gotas caíam, compassadas, 
uma a uma, 
como é de esperar das gotas que tombam das torneiras mal fechadas,
e caíam direitas, perfeitas,
sólidas como aventamos que os líquidos não possam ser.
O ruído foi impercetível. 
Teria sido necessário o silêncio absoluto inexistente
para que se pudesse ter ouvido um tão ínfimo som.
A última de todas elas, lá veio ela,
foi tão suave como outra  qualquer, 
nem provocou turbilhão, 
nem ondas concêntricas muito grandes, 
nem nada verdadeiramente assustador, a bem dizer.
Mas o mal estava já  feito,
Estavam iniciados os movimentos das moléculas
que deslizaram até ao fim do cilindro gigantesco.

E eu, que tinha os olhos alinhados com a água, 
observei-a a agigantar-se contra mim, furiosa e forte, 
como supomos que a água não deva ser.




terça-feira, 9 de agosto de 2022



A cair sobre o centro da mesa havia uma composição  de flores, 
tão delicadas que nos foram aconselhados movimentos suaves
para que não  perturbássemos a sua harmonia 
com as nossas deslocações  de um lado para o outro.
Leves, então, me pareceram os passos que estávamos a dar, 
mais subtis e silenciosos  do que noutra ocasião qualquer.
Não eram pérolas que elas tinham, mas sim gotas de orvalho,
retidas como que por magia,
interrompendo o ciclo que as fazia evaporar e renascerem no outro dia de manhã.
As sua pétalas translúcidas, eu juro, permitiam a passagem dos raios de sol, 
sem que esse fenómeno fosse apenas a invenção de um homem sonhador.
Deixei de ver, ou sentir, a velha mobília,
só existiam corpos dançantes, 
lembrando o tempo em que as valsas felizes se ouviam pelo salão.
Eu esquecera todos os contos para crianças, 
apenas me lembrava de uma página ao acaso que continha um vestido azul.








segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Ela,
ora aproximava
ora afastava
o seu corpo redondo
do meu horizonte
visível.
Eram coisas da física
velas de um barco
à vela
que empolavam 
com o vento
ou remoínhos 
que se formavam
como doidos
devido aos movimentos
circulares
da massa de
àgua.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022


Naquela 
noite
irradiações 
de luz 
sucederam
a chuva
dissipando
as nuvens
e revelando
um sem número
de constelações


E finalmente,
também 
a grande lua, 
"também"
"lua"
"grande",
"redonda",
"cheia",
tantas
palavras 
inadequadas
para um poema
verdadeiro.