segunda-feira, 30 de abril de 2018

Q

Desceu as escadas a correr, já ia no passeio, lá ao fundo, próximo da tília, quando a mãe lhe gritou da varanda: "Não te esqueças do #queijo, Mila!"
Antes de se enfiar nas lojas,  correu  rua abaixo para chegar à praia.
Quando chegava, às vezes tirava os sapatos e as meias, e descia para pisar a areia mole. mas naquela manhã não o fez.
 Ficou no pontão, cerca de dez minutos, sentada num banco  virado estrategicamente para o horizonte.
 No verão, a marginal encheria  de todos os credos, e feitios e cores, satisfeitos com o calor revigorante do sol que oferece reflexos brilhantes a toda a gente, mas no inverno, os bancos evitavam-se, eles próprios instalados em poças de chuva acumulada no chão, com as ripas de madeira  ensopadas, nos quais, se nos sentarmos, molhamos a roupa toda.
A brisa é desagradável, fria e forte, parece vento gelado, por isso a maioria das pessoas  não os utiliza.
Mila contemplou o oceano.a pensar nas palavras simples que aprendera por ali.
 Quem diz por ali, diz nos barcos, ou no adro da igreja, ou lá em cima, no topo da serra circundante,  a ver os sonhos por ali abaixo, a embater nas telhas.
 Iam e vinham, entravam e saíam-lhe pela cabeça, pela boca, pelos ouvidos, as frases fragmentadas.
Não tinha muito tempo.
O necessário e suficiente para dar como certo que, no primeiro, o ruído inexpicável do mar é indiscutivelmente mais forte, os gritos das gaivotas, mais poderosos, mais intensos e solitários.
 Nessa manhã, voltou, subindo, como sempre, as escadas, devagar. Levava o saco vazio, mas pesadíssimo, com o pensamento dela, os seus haveres, os seus pertences, pedras pesadas arredondadas pelas ondas, e adquiridas ainda agora.
Se se atrasasse, o que teria de ouvir:
" Não estejas esses minutos, com a roupa molhada, observando a estrutura desigual e  negra das nuvens, o céu carregado de manchas cinzentas que tapam quase todo o azul, ou o bichito aos teus pés, numa correria para fugir, atrapalhado.
E não te ponhas a escutar o pingo que a torneira da cozinha insistirá em pingar, se não fôr arranjada, marcando a passagem sincronizada e irritante do tempo, que debita palavras sem sentido como fazem  as crianças de berço, ou como velhas senhoras, instaladas nas suas salas..., Mila!"
Ou talvez lhe perguntassem apenas:
 "Mila, onde estão as compras?"






















Queijo

Cravou coisas no #queijo,
nem comeu para
lhe cravar coisas na casca.
Lacunas comestíveis,
corações de queijo.
Quando a faca caíu,
sem nem sequer cortar
um naco (claro),
pisou a ponta da toalha,
com o taco da bota,
que resvalou,
o queijo voou, o copo
caiu, ficou em cacos.
Nem comeu para lhe
cravar coisas na casca.
Nem comia.
Cravava- lhe pequenos
cortes na casca.
Levantou-se da cadeira
pisou a ponta da toalha
com o taco da bota,
que resvalou, o queijo voou
o copo ficou em cacos.
que caíram sobre
o gato.
















sábado, 28 de abril de 2018

Euridice

Euridice sabia.

A vizinha, a D. Agostinha
a viver paredes meias
com ela, a tão bela,
tantas vezes a avisou
"Já lhe disse, D. Euridice,
#Orfeu não virá!
Não o fará, como prometeu.
Eu a ajudo-a a viver
o dramazinho, D. Euridice.

Faz ideia, a senhora
de como cai para o mar
aquela aldeia e ele a ter que
a segurar?
O trabalho que isso dá?
O tempo que leva?
E aquela voz que têm...!
Irresitível!
Perdoe, D. Euridice, mas foi
o próprio que me disse:

"E como cantam...,até
se me arrepiam os cabelos!
e é natural, D. Agostinha
minha bondosa amiguinha,
um homem não é de ferro,
quanto mais um Deus!"

Pois não encontrou escamas
nas badanas da toga
ou lá que merda de fatiotas
são aquelas que ele usa?
Orfeu não virá, D. Euridice,
como prometeu.
Já lhe disse.







sexta-feira, 27 de abril de 2018

Navegação

A água caí,
continuamente,
da fonte,
mas se olhar
lá para o fundo
verei um mar
de palavras.
Coloco as mãos
em concha
para matar a sede
enquanto tento
ouvir
o que o ele me diz
mas é tão difícil,
porque está
longe
e por ser um discurso
de água salgada.
Devo manter-me
assim, quieta,
o corpo idealmente
hidratado,
a existência tranquila,
debaixo do sol
morno
ao pé desta secreta
nascente,
ou, pelo contrário
devo atrever-me,
corajosamente
a navegar numa
previsível
e perigosíssima
tempestade?






terça-feira, 24 de abril de 2018

Kansas

Naquela época eram vigorosos pais de família, mas agora andavam curvados, acompanhados um do outro, os dois velhinhos.
Ele hoje ia sózinho, e, pelo que me disse, calculei assim que o vi a pesquisar no corredor da fruta, não era difícil, a esposa ou teria morrido ou estaria doente.
Não sei que estranhíssimas associações de ideias eu fiz, completamente soltas, mas ao falar com ele, lembrei-me de uma jovem senhora que trabalhava na farmácia, por esses anos, com uma grande cabeleira loura, desproporcionada.
Um dia observá-mo-la, eu e uma amiga minha, a levar um horror de peso em sacos de compras. Ao marido, conhecia-mo-lo de vista, encostava-se muito à esquina do café, a ver as raparigas que por ali andavam.
Atrás disto, e não sei porquê, fui buscar um outro, que delirava. Entravam-lhe pessoas pela janela do quarto, insólitas, assustadoras e engraçadas.
Eram os medicamentos, ou a doença, não sei, mas permanecia vivo assim.
Tal e qual.
Era muito divertido, admiravam-lhe a sabedoria no intervalo das alucinações, mas era impossível não sorrir perante aquilo.
E então se o ouvinte tivesse um humor perspicaz, e apetência para relatos Quixotescos, melhor ainda.
Ele era do tempo dos livros, e para nos ensinar, procurava neles o que tinham para nos oferecer.
Precisava  lá chegar.  O seu corpo  estava desesperado, estabelecendo  prioridades degradantes, e era por isso, e só por isso, que o avôzinho, estava nú a querer sair do quarto.
Mas, nem tudo correu mal. Duas ou três daquelas figuras mecanizadas chamavam-lhe, generosamente, professor.
Também no #Kansas sobem para as camas altas, as crianças, para dormir, muito longe daqui.

























segunda-feira, 23 de abril de 2018

S. Jorge


S. Jorge não
conseguirá salvar
a criança que está
lá em cima
sentada na beira
do buraco de ozono
a correr um perigo
incrível!
Balança distraídamente
as pernas
e agarra-se, com as mãos
pequenas
à superfície de uma
parede imaginária.
O seu corpo inclina
perigosamente
cá para baixo
tentando espreitar
o movimento possível,
ou das nossas expressões
de ontem,
reinventadas,
ou dos simples passeios
no meio
das árvores velhas.








sexta-feira, 20 de abril de 2018

O Belo e a Monstra

Num dia perfeitamente vulgar, em que o Belo ficou em casa sem fazer nada, por motivos de #greve, e andando a passear no jardim, viu uma  Monstra e apaixonou-se por ela.
 O contrário também aconteceu, o Belo captou a alma sensível da Monstra debaixo daquela fealdade toda, e a Monstra encontrou no Belo coisas muito ruins que mais ninguém conseguia ver, mas como dizia, quando se apaixonaram, ele foi o primeiro a declarar-se,
"Não me importo que sejas horrível. Amo-te muito."
A Monstra sorriu, fazendo o sorriso mais detestável que alguma vez se viu, o cheiro nauseabundo do seu hálito espalhou-se  sobre as flores, as abelhas caíram no chão de patas para o ar como se tivessem enfrentado uma chuvada, e com as garras apertou-lhe a mão delicada, enquanto lançava grunhidos de felicidade.
O seu contentamento, a sua alegria, foram tão grandes, que produziu pequenas descargas elétricas, as escamas eriçaram-lhe de felicidade, e a cauda rodou sobre si própria, em rápidos movimentos descontrolados.
"És feia que doí, mas tens uma alma tão grande"
A Monstra através de uns roncos insuportáveis, deu-lhe a entender que ele apesar de belíssimo, era imensamente estúpido e cretino e mau, o que assentava que nem uma luva na sua vontade de praticar o bem. Transformá-lo-ia, com o tempo nalguém, talvez mais feio e sujo na aparência, talvez, até, lhe caíssem uns dentes, ou uns dedos, mas os seus pensamentos maléficos acabariam por desaparecer.
Perante esta resposta afirmativa, este consentimento, o Belo ajoelhou-se como é de bom tom, para a pedir em casamento, mas, com tanta emoção junta, e como se dobrou sobre o estômago, parou-lhe a digestão e vomitou.
Foi, para a Monstra, a derradeira prova de amor.





quinta-feira, 19 de abril de 2018

Fuga

Há tantos outros e outras
que, como eu,
passam férias junto ao mar,
não em casinhas de sonho,
mas apenas entre os caixilhos
das suas janelas.
Tal como os insetos, procuramos
a #fuga numa fresta,
que nos alivie daquele
rodopiar frenético
junto ao vidro enganador,
o corpo no ar
suportado pelas asas,
e as asas incapazes de receber
dos olhos a informação
de que aquela superfície,
apesar de transparente,
é intransponível.
E quando finalmente
nos libertamos duma opressão
que não entendemos,
fazemos um vôo rápido,
quase uma linha reta,
ficando a planar,
incomodando,
sobre a felicidade
dos indivíduos de pele besuntada
que, muito merecidamente, relaxam
achatados, nas areias.

terça-feira, 17 de abril de 2018

Dália II

Escrevo, #Dália
numa folha qualquer.
Quando o exercício se
torna mais rápido,
páro,
porque o papel em branco
é mais sedutor
do que propriamente
as palavras.

Dália

A D. Perpétua ouviu um estrondo e associou-o imediatamente à vizinha. "Queres ver que é ela outra vez?"
Foi à varanda, encostou a barriga ao gradeamento, inclinou o tronco para a frente, e chamou-a: "D. Dáááália!"
Não obtendo resposta, a D. Perpétua tratou de a ir auxiliar. Era frequente a mulher subir ao telhado, e de lá lançar umas telhas..
Desfez a cama, prendeu os dois lençoís um ao outro com um nó, e desceu por eles, porque era mais prático do que ir pelas escadas e ter que dar a volta ao quarteirão. mas, quando os seus pés tocaram o passeio, lembrou-se que não tinha dado comida ao Tareco. Este resgate demorava normalmente, algumas horas, e por isso voltou a subir.
A porta da casa dela não abriu, como habitualmente, pelo que teve de lhe dar um pontapé bem forte, que a deixou escancarada. Abriu o frigorífico para tirar o bróculo mágico que sabia estar ali guardado, a quatro graus centígrados. mas, malogradamente, não reparou que já estava fora do prazo de validade, e por isso, o seu efeito era muito fraco.
Quando a D. perpétua viu o legume acalmou, e até ficou um pouco chorosa, sentada encostada à chaminé, e a dizer que precisava de ajuda para dali sair, mas foi sol de pouca dura,
Assim que a D. #Dália  gritou: "Atire-se, que eu agarro-a-a", trouxe o chapéu do meu filho para a apanhar!", a outra lança lá de cima uma viga de madeira que, para além de a esborrachar ainda lhe cortou o corpo em bocados, sendo que metade da cabeça ficou colada ao vidro do meu carro que estava estacionado ali perto.
Não fora este incidente e nunca teria sabido desta história.









segunda-feira, 16 de abril de 2018

CC

Certa de que o fim da vida é o mais banal de todos os acontecimentos, a velhota parou no passeio, balbuciou qualquer coisa, deu meia volta e  atravessou a estrada sem olhar.
Vinha de lá o elétrico, descia a calçada, ao condutor foi-lhe impossível parar a máquina a tempo, nem ela tinha agilidade para lhe fugir, e aquele monstro amarelo deu-lhe uma pancada fatal.
Foi recolher uns cacos de vidro refletores do rio, do outro lado, junto ao lixo, e quando nos deparamos com objetos com tão magníficas caraterísticas, lindos, distraí-mo-nos do resto do mundo, não ligando importância a elétricos luzidíos que descem as ruas, às vezes para nos matar.
O olhar da mulher estava fixo naquilo, e era por isso que o seu coração batia descompassadamente, e agora que já os trazia consigo, dentro do saco, a importância do resto das coisas ficou reduzida a nada.
Enquanto isso, #Claudia Cardinale, curvava-se ainda mais para tratar das flores. Ela sabia, calculo, que se tivermos algum cuidado e conhecimento sobre o assunto, conseguimos obtê-las, de espécies diferentes, todos os meses, e isso é bom para quem gosta de flores.



sábado, 14 de abril de 2018

Âmbar



De autor desconhecido,
a torre erguia-se, já completa,
na periferia da cidade.
Erigida a obra,
a primeira primavera
passou-lhe por cima,
e roubou quase todas as folhas
às árvores dos terrenos circundantes,
e raras restaram nos troncos
vivos, mas nús.
As que fugiram,
as folhas,
o vento transportou-as
para as colar ao monumento,
sem que ninguém disso
se apercebesse.
Os papagaios,
há muito adaptados ao ambiente,
soltavam penas verdes,
que formavam pequenos círculos,
colocados de tempos a tempos,
nas paredes.
Os anos foram passando,
surgiram as dúvidas na comunidade
artística, os artistas
que reuniam bastas vezes,
vestidos excentricamente
a rigor,
e ele via-os ao longe
os seus gestos disparatados,
o quadriculado das vestimentas,
conversando com aqueles outros,
os outros,
os que duvidavam,
racionalmente, duma obra
que inclinava com o tempo,
que mexia,
duvidavam, muito naturalmente,
da sua
sustentabilidade.
E enquanto tombava a construção,
e as pedras se movimentavam,
impercetivelmente,
mas magnéticas,
recebendo nos braços, todos os
troncos,
todas as folhas, e algumas flores.
escondia-se ele debaixo da terra,
olhando, com os seus olhos tímidos,
as pontas em #âmbar
dos sapatos.














domingo, 8 de abril de 2018

Urticária

Sobre os pratos,
entre os braços
e os garfos e as facas
e as vozes,
pairava uma ideia
inocente.
Depois serpenteava
enquanto nevava nos copos,
e ao longe o sol queimava,
em velhos troços de estrada.

Era eu que imaginava
poemas descabidos,
fracos,
sem genialidade nenhuma,
enquanto o vento transformado
em nada,
rodopiava pelas bocas
e pelos botões
dos casacos,
pelas pernas esticadas
para aquecer.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

sarampo

Quando acordei, um ganso passeava pelo teto do meu quarto.
As suas patas, com membranas interdigitais, faziam de ventosa na superfície branca, e ele avançava como se fosse normal passear por ali com o corpo virado ao contrário.
Aquele ruído, "clak, clak", das patas a desprenderem-se eliminando o vácuo, despertou-me completamente.
"Eh! O que estás aqui a fazer?"
"Eh, não. Eu tenho nome! Sou o #Sarampo."
A lata do animal! Aparece sem ser convidado e ainda se põe com exigências.
Mas antes que eu pudesse responder, atravessou a parede e desapareceu.
Aguardo uma próxima vez que me visite para o confrontar com tamanho abuso da liberdade.
Isto só visto. Se eu contar, ninguém acredita.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

5 de abril (por acabar)


#Ronaldo entrou, mas teve que empurrar as outras palavras
todas um pouco para o fundo da página para lhe darem espaço.
Depois, sentou-se numa pedra. Era um hábito seu, sentar-se numa pedra, agarrar num galho
com a medida certa e com a sua ponta desenhar no chão, distraidamente, um ou outro traço
sem sentido.
Caía da fonte a água, gota a gota, mágica e perfumada, por causa de algumas flores cuja essência era libertada apenas quando os pingos mergulhavam, matematicamente, na superfície transparente
e formavam círculos cheirosos.
Procurou estar atento, se procurou! Muito atento, ao frémito das folhas que falavam, uma competência mais que natural, já que a brisa as agitava, ou então porque as sentia debaixo dos pés descalços.
 E repetida, e invariavelmente, neste preciso momento, atirava o pedaço de ramo seco
para longe, e, caminhando, pensativo, saía calmamente do texto.













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quarta-feira, 4 de abril de 2018

4 de Abril

Olhei  por cima dos óculos,
já a uma distância razoável
do amontoado de rascunhos
imperfeitos
espalhados sobre a mesa,
quando deles emergiram aquelas
#quatro criaturas
medonhas,
nunca antes mencionadas
por ninguém.


Foi o movimento impercetível
das palavras no tampo,
que me chamou a atenção,
despertou o meu interesse
e olhei para baixo,
ainda a tempo de ver desaparecer
os seus corpos maleáveis e vivos,
como dragões,
por entre os versos inacabados,
por entre os pedaços de prosa,
em bocados.

E assim como desapareceram
na fração do segundo
seguinte
plenos de força, se reanimaram,
sem me darem  o tempo
necessário,
para tomar medidas,
para que os seu corpos voláteis
não fizessem arder, completamente,
as folhas.
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segunda-feira, 2 de abril de 2018

...


Uma imagem ridícula
seria agora ver
as nuvens
largarem pequenos
apontamentos
em forma de gotas
minúsculas.
O céu baixaria
formando um chapéu
de abas largas
acinzentando a cidade
e acabaria por desvirtuar
a grande #odisseia
dos bocadinhos
de papel
lançados para longe
pelo vento.

Os dedos de quem
escreveu
a chuva miúda,
impertinente,
ou o nevoeiro a
penetrar nas ruelas,
não existem.










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