domingo, 27 de outubro de 2019

#Fidelidade

Violeta visualizava
uma ideia
dentro de si,
nem via as árvores verdes
nem as aves voando.
Só de vez em quando
via o outono através
das folhas que jaziam
no chão.

(E mesmo as folhas
Violeta via-as porque
atravessava com os olhos
os vidros
da viatura enorme
que rodava com ela,
de cabeça  encostada
às voltas da estrada.)

Só contava os passos
que faltavam
para chegar a casa
quando
ia e vinha entre estações,
e via as gaivotas equilibradas
nos vãos das escadas
pássaros vadios,
vagabundos que viviam
a sua vida por ali.










sexta-feira, 25 de outubro de 2019

#Duplo

Januário foi dar milho aos pombos, e enquanto o fazia, sentado entre os dois pés da estátua, olhava de viés para para os lados, não fosse a políca aparecer do nada para o tirar dali.
Tinha visto o tapete da vizinha estendido sobre uma cadeira, achou-o horrívelmente feio. aborreceu-se com o padrão castanho, e esperou. Assim que  sentiu os saltos da mulher no mosaio, espreitou, viu-a a apalpar o entrançado para ver se já estava seco, e gritou-lhe do andar de cima, "esse tapete é horroroso, deixe-me que lhe diga!"
A mulher confirmou que também não gostava assim muito dele, encolheu os ombros aborrecida e meteu-se outra vez dentro de casa.
Januário, gostava daqueles animais esvoaçantes a remexerem-se em seu redor. arrolhavam pelo ar, enfiavam-no numa nuvem de asas, às vezes,
Quando o viam, começavam a aterrar ao pé dele, primeiro uns, depois outros, até serem imensos, e largarem uma ou outra pena dos seus corpos alados, e estas, por sua vez, também ficavam por ali a dançar.
Laura puxara de uma cadeira debaixo da mesa da cozinha, e ainda de pé, com a mão nas suas costas pesadas, de forro #duplo, pôs-se a pensar. "É feio, realmente", e recolocando a cadeira no sítio, decidida, deu meia volta para ir à rua  imediatamente comprar um mais bonito.
Quando dispersavam, deixavam o ar vazio, e assim, ali sentado, podia dar um sentido às coisas. como se a companhia dos pássaros não tivesse a mesma troca de palavras do que outra companhia qualquer, a mesma idiossincrassia de conversar com os movimentos do ar agitado pelas asas.
A proibição não lhe era suficiente, já pagara multas, já mudara de estátuas e  jardins, de sítios ermos, até o dia em que tinha de se ir embora para outro lugar.
Laura passou no passeio com um tapete enrolado num tubo e enganchado entre um dos braços e o tronco. Mesmo à sua frente, pousou o objeto longuilíneo no chão, encostando a parte superior ao muro, para tirar dos olhos um fio de teia de aranha que a vinha a incomodar, um daqueles que se suspendem em locais sem qualquer lógica, e que se prendem às pessoas que circulam.
Quando o viu, abandonou o objeto do outro lado da rua, atravessou o asfalto, de raros movimentos de automóveis, e dirigiu-se a ele para lhe dizer que já tinha comprado outro, estava ali encostado, de cores vivas e brilhantes, pronto para alegrar o ambiente da sua casa.
Ao sentirem-na tão próximo, as aves debandaram dali, para irem pousar bem longe e Januário seguiu-as sem sequer responder à mulher.






quarta-feira, 16 de outubro de 2019

INão tenho pressa nenhuma de acabar isto. Vamos com calma

Não foi com grande vontade mas preparei-me com apetrechos  para a chuva e saí de casa resignada.
Se é assim tão necessário levar a chave, eu levo a chave à senhora, pronto, irei.
Na rua, já não chovia, mas a água tinha-se acumulado por todas as reentrâncias, buracos e zonas côncavas, instalei-me fora de uma poça e fiquei atenta à passagem de um táxi sem passageiros.
Nem dois segundos se passaram, e alguém faz uma travagem brusca ao pé de mim, nem percebi de onde veio, um automóvel pára, deslizando duas das rodas sobre água à minha frente, molhando-me, o condutor abriu a janela do meu lado, tirou o cinto de segurança e esticou-se todo sobre o banco do pendura para falar comigo.
_Para onde quer ir, senhora?_
_Bairro do Fogo. Vou entrar pelo outro lado porque aqui há uma grande poça de água._
-Não vai não senhora, entre por aí, é proíbido entrar pelo outro lado,_ Mas eu fingi não ouvir, dei a volta ao carro, sentei-me no banco de trás e acomodei-me.
_Bairro do Fogo. Mesmo na praça principal, sff ._
O homem resmungou qualquer coisa impercetível e avançou por entre o tráfego. Passou a grande avenida, virou à direita, contornou três quarteirões inclinados e chegou ao topo da cidade. Vai daí, apontei-lhe com o dedo.
-_Ali, vê aquele clarão alaranjado?_
O taxista torceu o pescoço para traz olhou para mim como pôde devido à posição em que se encontrava. Mostrou-se enervado
_Acha que eu não sei onde é o bairro do Fogo? Não tenho categoria, querem lá ver! Ainda ontem cá passei, Pois fique sabendo que tenho cá família!_
-Nada disso. Eu própria só venho cá entregar uma chave.-
_Ah!_ Pareceu ficar mais tranquilo._Onde deseja ficar?_
_Mesmo no largo._
O táxi contornou uma ruela e. assim que o fez, o cenário abriu-se revelando uma praça de tons alaranjados. Nada fazia destoar esses tons que, diziam, tinham a ver com as montanhas em frente, que se erguiam rugosas e sem vegetação, como duas enormes amêndoas recortadas no horizonte.
O automóvel parou junto a um passeio e eu saí de lá de dentro, depois de pagar a corrida com o meu cartão de crédito.
_Até logo!_ despediu-se o bizarro motorista. _Estarei aqui para a levar de novo, no regresso, assim que estiver despachada._ E arrancou a alta velocidade.
Na praça, várias pessoas passeavam, conversando umas com as outras. Todos os homens vestiam de negro, e as mulheres tinham roupas caras e bonitas, muito coloridas, mas todas de tons alaranjados ou castanhos, ou amarelos, uma ou outra peça encarnada, mas não se viam azuis, ou verdes, ou qualquer outra cor que quebrasse o aspeto terroso e abafado do ambiente.
Dirigi-me a duas senhoras que por ali passeavam.
_ Por favor, sabem dizer-me onde fica a rua da Empatia?_
Sorriram uma para a outra, com ares de cumplicidade.
_Ali ao fundo, na esquina da esplanada. Sempre em frente.Vem entregar a chave, não é? Boa sorte!_
agradeci e segui o meu caminho, sem entender muito bem o que se tinha passado. Contornei as mesas da esplanada e, passados alguns metros, cheguei ao meu destino. Número doze. Toquei à campaínha.
Um empregado, impecavelmente vestido de negro, abriu-me a porta.
_Vem por causa da chave, não é? Tenha a bondade de me acompanhar._
Segui-o pelo corredor, um pouco perturbada por todos revelarem saber o motivo da minha ida ali.
No topo do corredor existia uma grande e pesada porta de madeira, que chiou quando o homem carregou num botão do comando e ela se abriu.
Entrei e a porta fechou-se atrás de mim.
_Trouxeste a chave?_ Junto a uma enorme janela de cortinas bordeaux, completamente corridas, estava uma velha senhora de baixa estatura e rechonchuda, sentada numa cadeira que quase parecia um trono. Fazia malabarismos com quatro pequenas laranjas que atirava ao ar com grande perícia.
_A chave. Dá cá. Atira-a daí, que eu apanho_
_Mas..._
_Vá, despacha-te, que eu não tenho o dia todo._
Assim fiz, e ela, com a maior desenvoltura, apanhou-a no ar e adicionou-a ao seu número de circo, sem nunca se atrapalhar ou deixar cair algum dos objetos com que brincava.
_Podes regressar à tua vidinha._
_Foi um prazer._
_Vai, vai, vai..._
A grande porta abriu-se, e eu saí, seguindo o corredor em sentido contrário, que desta vez se encontrava deserto. Finalmente na rua, voltei à praça de terra batida, onde as pessoas continuavam a passear com #tranquilidade.
As senhoras com quem antes tinha falado ainda por ali andavam circulando nos seus fatinhos de saia e casaco de tons creme e cor de mel, e as suas joías douradas, brincos, pulseiras e colares.
_Por favor, a praça de táxis, onde é?_
_Não há._Riam-se uma para a outra, como se eu tivesse acabado de pronunciar uma boa piada.
Nesse momento, um automóvel pára, mesmo em frente a mim.
_Táxi?_
O motorista que me levara umas horas antes, fazia-me um largo sorriso e abria-me a porta para eu entrar.
_Por esse lado, não. É proibido. Entre por este, se faz favor._
Entretanto, a chuva recomeçou.