segunda-feira, 30 de maio de 2016

A Oliveira


    No cimo do cerro da fonte
    havia a fonte propriamente dita,
    e ao seu lado, uma oliveira.

    Era uma árvore diferente
    porque nas subidas e descidas dos montes
    não havia mais nenhuma,
    e também
    porque a sua copa de folhas pequenas
    dava uma bela sombra.

    A água da fonte era fresca,
    duma frescura natural,
    proveniente dos esconderijos sombrios da terra
    e não de qualquer maquineta elétrica.

    Agarrou no canivete,
    e, numa parte lisa do tronco rugoso da árvore
    sulcou, julgando-o indelével,
    o nome da namorada,
    e, ao mesmo tempo que o fazia,
    soletrava a palavra
    tal e qual gostava de lho fazer ao ouvido,
    murmurada.

    A água caía ineterruptamente,
    e o seu ruído produzia grande parte da paisagem.
    A paisagem era isso
    e o horizonte extendido para lá das casas.

    Aquela oliveira
    tinha o previlégio de ter uma fonte só para si,
    por isso era tão frondosa.
    Por isso,
    e porque num determinado segmento de tempo infinito,
    ficou escrito o seu nome
    num pedaço vivo de casca.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Nem acredito no que me aconteceu. A página, a  primeira página do meu conto desapareceu! Eu não fiz nada, juro!
Alguma coisa fizeste, mãe! Bem..., este programa também não é o que devia ser!
Eu não fiz nada, e foi-se a minha Mila, já é a segunda vez que a minha Mila vai, e hoje, estive toda a tarde a fazê-la crescer!
Escreve antes no blogue, mãe! Escreves em rascunho, e assim não se perde!
Mas acho que  o Joaquim nunca mais passará  a mão pelos cabelos de Mila como passou esta tarde, e o sol nunca mais fará aquele efeito nos telhados. Foi hoje. Estava na página que perdi!
E pior. Agora a Mila perece-me ridícula, e quase me dá vontade de chorar.
Hoje já nem consigo associar a palavra administrador aqui!



sexta-feira, 13 de maio de 2016

Uva (Enciclpédia Ilustrada)

Conta-nos a mitologia romana que um dia Baco foi ao médico por não se andar a sentir muito bem. Já nessa altura estes profissionais de saúde eram facilmente reconhecíveis dos outros, por andarem sempre de estetoscópio ao pescoço. Por isso Baco, apesar de nauseado, cumprimentou a pessoa que se chegava ao pé dele.
_Bom dia Dótor, 'tô tão mal disposto!_
_O senhor exagera, sr. Baco! O senhor exagera! O que é que comeu hoje?_
_Comi três galinhas assadas, duas bailarinas, e quatro quilos de uvas moscatel!_
_E beber?_
_Três litros de vinho! Ai, "tô tão mal disposto!_
_Deite-se na maca e tire essa porcaria da cabeça, se faz favor!_
_Doí-lhe aqui, doí-lhe ali, doí-lhe acoli? Pois....! Para si acabaram-se as uvas, sr. Baco! Uvas nunca mais!_

Testamento (Enciclpédia Ilustrada)

Minhas queridas e amantíssimas filhas:
Quando eu morrer não haverá testamento, porque para vos legar só tenho uma casa velha.
À medida que os anos passam, a morte é mais provável, está mais próxima. Não que a tema, tenho é pena de deixar de existir, já que sou uma apaixonada pela vida, pelas pequenas coisas, pelas grandes causas, e sobretudo pelo pensamento.
Mas o que importa agora é que não tenho nada para vos deixar, a não ser uma casa velha.
Procurei que olhassem para mim como alguém que fosse mais do que a mãe que gosta e cuida, alguém com valores acrescidos, alguém que depois de terminado o seu papel de mãe ( papel que a bem dizer se mantém para sempre, embora com uma dimensão diferente ), continuasse a existir, rica, preenchida.
O que procurei transmitir-vos foi sobretudo força. Essa energia superior à energia física, esse vigor para enfrentar as adversidades. Mas também tentei ensinar-vos o valor incalculável da boa disposição, do riso, o respeito pelos outros, o gosto pela vida.
Resumindo, o que tentei, e acho que me posso orgulhar de ter conseguido, foi que se possa dizer das duas que são mulheres com "m" maiúsculo, o que, economicamente falando, não vale nada. É apenas um pormenor de escrita. Só isso.
De resto não farei testamento, pois para vos deixar só tenho esse "m", e a nossa casa velha!

terça-feira, 3 de maio de 2016

Marta (Enciclopédia Ilustrada)

Duas Martas acabadinhas de sair do forno.

Marta 1
A Marta era uma mulher muito velha, que tinha ido parar ali.
Para lhe serem prestados os cuidados mínimos foi preciso amarrá-la, mas nesse processo rápido, ainda conseguiu arranhar e beliscar dois ou três!
Por segurança tiram-lhes sempre as dentaduras, de forma que os lábios da Marta se metiam para dentro, e ficavam com o aspecto de um vulcão extinto pelo tempo. O nariz, a sair da magreza saliente, apontava, altivo para o teto. Era só o que tinha de altivo, o nariz!
A Marta já não era uma mulher, era uma sobra do género feminino, talvez nem isso, era só uma mulher velha, só uma velha mais nada, já nem era a Doutora Marta, nem a Dona Marta, nem a senhora Engenheira.
Houve um que até lhe chamou avózinha, veja-se o descaramento, e ela, que ouvia bem como tudo, quis arranhá-lo pela indelicadeza, mas, imobilizada, não conseguiu, e teve que se pôr aos gritos: Acudam, Acudam! Ó da guarda!
Depois veio alguém que lhe fez uma festa suave na cabeça, e lhe bichanou ao ouvido: Sossegue, querida, sossegue.
E a D. Marta sossegou. Nada de mais.
É só o episódio de um conjunto de ossos sem nome que foram lá parar, e que tenho o previlégio de batizar como Ilustríssima e Digníssima Senhora Dona Marta Só!

Marta 2
_Marta, despacha-te!
Às onze tens natação, às doze ballet, às treze vamos almoçar aos avós, depois vamos às compras.
Quando chegares fazes os trabalhos. A ver se estão prontos antes da aula de esgrima, porque ainda tens explicação lá para o fim do dia!_
Caga nisso, Marta!
Foge de casa nem que seja por um dia! É o conselho que te dou!

Luta (Enciclopédia Ilustrada)

Os testemunhos de lutas estavam todos no caderno de capa preta. Guardadas as batalhas, mudas e sossegadas, o caderno fechado, no meio dos outros todos, como se nunca se tivesse passado nada.
As últimas lutas quase as perdeu, que isto uma coisa é ser um vigoroso jovem a lutar, outra coisa é lutar já mais cansado.
Por vezes nem sabia contra o que lutava. Quixotesco no meio do cimento, os moínhos de vento a persegui-lo na auto-estrada.
Outras sabia. Lutava contra previsões e possibilidades, certos movimentos, passos errados, só porque iriam dar origem a horríveis situações, tinha a certeza, uma luta de igual para igual contra o medo!
Outras nem lutava. Crescia para o acontecimento e nem dava hipótese de confronto. Ganhava só de existir, de ser forte!
Outras, encolhia-se no seu abrigo, debaixo do caderno preto!