domingo, 28 de agosto de 2016

Qualquer princesa

  Era uma vez uma princesa. Não porque fosse filha de um rei ou duma rainha, mas porque era jovem e bonita, e vivia paixão com outro príncipe.
  O destino separou-os, acontece, e muitos anos depois, já a princesa mulher, rainha, vivia tranquilamente, como compete a uma senhora da sua idade, vinte ou trinta anos depois, tempo curto e comprido, tempo de algum vazio, tempo de instalada felicidade.
  Dos papos nos olhos a rainha retirou que lhe faltava o preenchimento de um pedaço de espaço, que é como quem diz, uma falha.
  Estava diferente no espelho, mas era ela. As gatas eram agora as suas princesas, e comiam peixe no chão da sala, assim como dormiam enroscadas no seu corpo, vestido com a roupa com que tinha andado todo o dia.
  Também ninguém reparava no desmazelo, naquela cabeça sozinha, naquele bichanar compulsivo.
  Um vizinho bebia imenso, o outro, a casa estava vazia.
  Muito anos depois, já a mulher rainha vivia tranquila, como competia a uma senhora da sua idade, vinte ou trinta anos depois, tempo curto e comprido, tempo de algum vazio, tempo de instalada felicidade, agora com as janelas partidas, só tinha a chuva e, conforme o tempo,um ciclo de correntes de ar muito frias.
  E quando entrava não estava ninguém. Só os gatos e a memória injetada na quietude das traseiras.
  " Quando o rio secar, os pássaros vão beber a outro lado e não aproveitarão estes maravilhosos plátanos, e um rio que é antes um riacho. De um lado o muro, e do outro lado os plátanos aparvalhados na margem, acometidos de riso por servirem de improviso para os pássaros.
Cidades de cimento, ciumento e expansível! Incrível! Do nível da qualidade dos homens!"
  Do bom tinha conhecido a vida dos filhos, exigentes na roupa e no aroma dos cozinhados. Também  conhecia os tachos e as panelas como as palmas das suas mãos gretadas, com restos de comida no fundo, um papel e uma caneta num pedaço livre da mesa da cozinha.
  Mínimo! Um bloco de notas com folhas que saem descoladas, e preso ao tampo meio limão apodrecido, e um velho regador, próprio para plantas completamente secas e desprezadas.
   "O mundo e a sua superfície! Quando os pássaros vão beber a outro lado é porque são escorraçados, ou porque não há água no riacho, lagoa, albufeira."
  " Se eu morrer, a minha morte vai limpar isto tudo " dizia muito de vez em quando, até porque morrer não fazia parte dos seus planos.
" Como eu fui feliz, meu príncipe! " ia falando, devagar, pela rua. " Lembras-te do nosso ar angelical? Lembras-te daquelas cordas, fortíssimas rebentadas? E daquela vez, na praia, os chapéus de sol, soltos ao vento, arrancados pela força da águas?"
  Era o que balbuciava pelo passeio, à procura de sobras para os gatos.

sábado, 27 de agosto de 2016

Olhos de Invenção

Na impossibilidade
de ver os teus olhos cor de mel,
e são cor de mel
porque assim os inventei,
imagino-os sem fundo,
e serão os mais bonitos
do mundo
e os meus perderão a cor
quando os teus nascerem,
impossíveis e brilhantes.
Porque,
como eu os definir,
assim ficarão,
provavelmente fabulosos,
desesperadamente frágeis,
comprovando como é fácil
reconhecer existência
nos teus olhos irreais!

manga ( Enciclopédia Ilustrada )

Umas mangas de tecido leve?
Um braço mais comprido
e na manga a faltar tecido?
Ou uma manga..., uma manga...,
em mugido?
Ou uma cheia de cocó,
que ma cagou o bebé,
cheio de caganeira,
tão querido!
Umas mangas de tecido leve?
Ou umas em forma de abrigo?
Ou nenhumas?
Mangas que o verão quente
não permite.
E depois,
coçou o ouvido
com o braço mais comprido
aquele onde à manga faltava tecido,
e gritou,
numa espécie de grunhido,
"Que se lixe, que se lixe!"

Uruguai ( Enciclopédia Ilustrada )

Quando vivia em Buenos Aires ia muitas vezes ao Uruguai, só para comer um chiquito, que é uma espécie de prego, mas muito especial e bom.
Fazia aquele bocadinho de água a nado, num instante (é só um bocadito, no mapa), e chegava lá, um lá qualquer desde que fosse solo Uruguaiano.
Deixava-me secar ao sol, isto se não estivesse um mau dia, senão tinha que recorrer a uma lavandaria, que também as há por lá.
Claro que este processo de secagem nem sempre foi fácil, sobretudo quando levava orgulhosamente vestida tanto a Nazaré, como as suas sete saias, e, será para todos um facto óbvio, a dificuldade de secar tanto tecido. Talvez por isso se usam tanto os ponchos naquele país, de leveza, beleza, e aspereza incomparáveis.
Feito isto, e já de chiquito no bucho, para não me meter outra vez dentro de água a fazer a digestão, ficava por ali a ver as formigas a passar, que é cada formigão que eles têm, de meter medo!
O problema, é que sempre que regressava a BA, era ensombrada por uma terrível melancolia, causada, talvez, pelo cansaço. Então, invariavelmente, apanhava um avião da TAP diretamente para o Porto, só para ter o prazer de me sentar na zona da ribeira, e ver a ponte D. Luís ao fundo

Vela ( Enciclopédia Ilustrada )

Uma vela que acendeu do nada
e a sua chama a tremer sem vento,
sem brisa,
ou outro qualquer fenómeno
que produzisse movimento.
A sua chama, insisto,
numa agitação descontrolada
espalhou para lá do seu alcance
pingos de estearina encarnada
que queimavam
tanto por fora como por dentro.
Era uma vela pequena, mínima,
em nada comparável
às velas dos descobrimentos.
Era uma vela velinha,
sózinha,
bem espetada,
em maleáveis,
poderosos,
e invisíveis pensamentos!

workshop ( Enciclopédia Ilustrada)

O workshop mais interessante de todos os que assisti ( frequentei? Participei? ), foi sobre coisa nenhuma. Paguei só setenta euros. Felizmente fiz a inscrição com antecedência, porque muito próximo da data já custava noventa, e eu não gosto de gastar dinheiro mal gasto.
Depois de entrarem no espaço os envolvidos sentavam-se, calados, a olhar uns para os outros, até mais ao menos o meio da manhã, altura em que se fazia uma pequena pausa para café e bolinhos, que, aliás, desapareceram num ápice, como se fossem a última refeição antes do fim do mundo!
Regressámos ao local, e novamente nos sentámos em silêncio. Isto até à hora do almoço, que infelizmente não estava incluído na inscrição, pelo que as pessoas dispersaram, e eu fui comer uma sopa ao café da esquina, em pé, com a barriga colada à "vitrine" dos pasteís de nata.
A tarde foi bastante interessante.
Estávamos nós a assimilar umas noções já bastante profundas do que é realmente o nada, mantendo-nos apenas a respirar, e a revirar os olhos uma ou outra vez, quando uma das cadeiras resolveu chiar, produzindo um som em tudo semelhante a outros que conhecemos bem, mas de natureza mais fisiológica.
A aprendizagem a que tínhamos sido sujeitos ao longo do dia, e o fortíssimo "CALEM-SE" do mentor, manteve a seriedade do evento.
A meio da tarde, outro intervalo. Bebi três cafés, que eram de borla, e aos bolos já não cheguei, porque voltaram a desaparecer numa fúria descontrolada.
Gostei! Se tudo correr bem em setembro vou a um outro, cujo tema é bastante apelativo: "O idoso transmontano, defeitos e qualidades". Estou ansiosa pela parte prática.

Xenofobia ( Enciclopédia Ilustrada)

O sítio onde trabalho é de bizarrias. No outro dia estava lá um casal correio de droga (de vez em quando aparecem), acompanhado pela polícia e com um filho de quatro anos.
Tenho por princípio não fazer juízos de valor. Ensinaram-mo, tanto o sítio onde trabalho, cheio de desequilíbrios, como o tempo e o seu movimento, inflexível.
Ainda assim comentei com um colega: "Vê lá! Com um filho de quatro anos!"
Ele respondeu-me o que eu costumo responder aos outros: "Não sabemos a vida das pessoas!"
Fiquei envergonhada. Eu a sensível, eu a informada, passando tantas vezes por advogado do diabo, procurando olhar atentamente para o outro lado das coisas, a dizer um disparate daqueles!
A verdade é que ando constantemente a tentar que não me lavem a cabeça por dentro, antes compreender tudo por mim, mas o que é facto é que esse exercício me está acessível, e, por sorte e previlégio, também me foi ensinado desde sempre.
Mas o que tem tudo isto a ver com xenofobia? O miúdo de quatro anos, os correios de droga, um reality show em nome da liberdade, ou o cheiro repugnante que um homem nojento exala? Repito. Um homem.
Se calhar não tem nada!

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Kuduro ( Enciclopédia Ilustrada )

     









Numa série policial que acompanho pela televisão, nem de propósito, e com tudo a ver com a palavra que me foi hoje proposta, o assassino era um professor de Kuduro.
A pesquisa foi complexa, embora, se estivéssemos bem atentos desde o inicio do episódio, nos   fossem dadas várias pistas reveladoras.
O assassino em questão, tinha um padrão para os seus crimes diabólicos. Esquartejava os  cadáveres deitando fora as partes que não lhe interessavam, e os kus espetava-os em sinais de trânsito.
O pormenor mais relevante para o sucesso da investigação, e que contribuiu largamente para a sua eficácia, foi a constatação em laboratório de que esses mesmos kus eram todos bastante duros.
Depois de intrincados raciocínios, elevados conhecimentos forenses, e uma boa dose de intuição, chegaram ao já mencionado professor de Kuduro, que foi apanhado em flagrante no próprio domicílio, a  apalpar a empregada, para ver se valia a pena esquartejá-la ou não.

Impossível ( Enciclopédia Ilustrada )

Na impossibilidade
de ver os teus olhos cor de mel,
e são cor de mel porque assim os inventei,
imagino-os sem fundo,
e serão os mais bonitos do mundo
e os meus perderão a cor
quando os teus nascerem,
impossíveis e brilhantes.
Porque,
como eu os definir,
assim ficarão,
provavelmente fabulosos,
desesperadamente frágeis,
comprovando como é fácil
reconhecer existência
nos teus olhos irreais!

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Tertúlia ( Enciclopédia Ilustrada )

O D. Quixote
ganhou o concurso do laçarote
um concurso de intelectuais
que se ajudam mutuamente
a apertar os aventais.
Queimaram-lhe um livro
e ele, com o Peter Pan no regaço florido,
um Peter Pan sempre com a Wendy na cabeça,
e por aí fora
a verdade é que se juntaram todos
na mansão do Barba Azul,
um homem que perdeu o seu castelo,
que lhe foi roubado pelo rei Artur.
Ou teria sido Achille Talon
a cometer esse hediondo crime?
Passei perto da estante
e ouvi-os a discutir.
Nem se dava pelo Cavaleiro da Dinamarca,
mas Frodo, esse é que dormia
enquanto Gollum, jogava em simultâneo,
às cartas com a abelha Maia
e xadrez com o presidente.
Isso é que é uma tertúlia valente,
a prateleira a tremer de contente,
e Gulliver, esse gigante,
Simplesmente sentado a ler.

Balalaica ( Enciclopédia Ilustrada )

Uma balalaica
e um universo cantante
um grão de areia
uma rocha impressionante
todo o oceano
um peixe em zigue zague
e uma alga basculante.
Duas balalaicas
e dois universos cantantes
dois grãos de areia
duas rochas impressionantes
todo o oceano
dois peixes em zigue zague
e duas algas basculantes.
Três balalaicas........

domingo, 7 de agosto de 2016

Xaile ( Enciclopédia Ilustrada )

Na gaveta havia um xaile, e de lá o retirou.
Procurou o remate, puxou a ponta e desmanchou-o.
O fio saíu todo marcado, dos muitos anos de liga e de meia, presos em malha de arroz.
Lavou a lã, em meadas, e ela num instante secou.
Mas este fio não era lã. Se fosse, as traças tê-lo-iam comido, e os buracos do tecido seriam abismos intransponíveis, seriam a impossibilidade de voltar a dobá-lo em novelo.
Mais um pouco de fio vermelho e teceria um lindo casaco para o filho.
Bem feita, xaile filho da mãe, que eras tão feio!
Para ti acabou!

Destino ( Enciclopédia Ilustrada )

Assim como odiava a intensidade
daquele mar cinzento
temente da sua força extrema
assim o amava ao mesmo tempo
e dependendo
se se via forte com a força dos deuses
ou fraco
com as fraquezas de outros homens
dúvidas,
inúmeras dúvidas pairavam à sua volta
como serpentinas, desenroladas, ao vento.
São ou não o meu destino estas escarpas?
Era ou não
o seu destino a força das águas
e o seu movimento?
Abriria os braços
num abraço vivo, imenso,
ou deixar-se-ia cair
em ritmo lento
procurando reproduzir
a harmonia das gaivotas?

Força ( Enciclopédia Ilustrada)

Não é fácil controlar aquele ímpeto brutal. Só uns minutos.
Depois, força! Muita força!
A seguir, os devidos procedimentos.
Então, essa coisa mecânica, essa objetividade de pontos de aplicação e vetores, acaba por se traduzir num corpo novinho em folha, cuidadosamente colocado sobre ti. Um corpo assim pequeno, como um boneco, mas vivo e quente.
A maior e mais gloriosa força que até hoje fiz, e que me tornou deus por momentos.

Mais Mar

Se insisto no mar
é porque o tenho em volta
e ele me foi chamando
ele e as gaivotas....
e os brilhos
e a água
calma ou revolta
e a luz!
Se insisto no mar
é porque o percorro
pela areia molhada
de norte a sul
de lés a lés
nem há melhor forma
de o conhecer,
é assim
tépido e suave
nos meus pés.
É porque o tenho em volta
e ele me foi chamando
ele e as gaivotas
e os brilhos
e a água
calma ou revolta
e a luz!