quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O frigorífico

O objetivo tinha sido apenas tirar o leite do frigorífico para encher um copo e beber, não era suposto estar a reparar como ele se tornara tão grande, ele que tinha sido adquirido com o objetivo de refrigerar a comida de uma família numerosa.
E ao espreitarem o que havia dentro das janelas iluminadas, ou um ou outro movimento que podiam observar, imaginavam-se a viver outras vidas que não as suas.
Dali via-se a vila a descer a encosta até mesmo à praia. Nos dias de chuva as telhas molhadas e escuras, e os seus reflexos cor de chumbo e nos dias de sol nem é preciso imaginar muito para as ver a brilhar.
A fonte pingava.
Porque não falas, Mila?
A porta do frigorífico rangia.
Mila! Vem para cima! E foi! Levantou-se do banco, as folhas também desprendiam das árvores, a cair para o chão com o vento. Subiu as escadas a correr.
Chamei-te Emiliana porque queria gritar Mila, daqui da janela. Imaginei-te a seres aquilo em que realmente te tornaste. Uma linda menina!
Mila, porque não falas?
O horizonte entrava pelos olhos de Mila e expandia-se já dentro do seu corpo, e aí, nessa altura, as palavras não eram sequer possíveis, não são possíveis, às vezes, as palavras.
A fonte pingava e o luar iluminava de forma a não deixar perceber, e Mila, incapaz de falar pensava, "porque não me beijas antes, agora? Nem preciso falar para que entendas a vontade que tenho, o meu arrebatamento!"
Ah! Copo de leite! Dás-me essa tarefa cansativa de conservar a limpidez dos olhos, desacompanhados assim do rosto.
Mila! Mila!
Subiam de mão dada, estafados, aquietavam-se no silêncio cortado pelos pingos da fonte. A praia, por não estar assim tão perto nem se lhe ouviam as ondas, e o oceano era apenas uma faixa de outra cor.
Mila, porque não falas?
"Não vou dizer que te abraço todos os dias, ou vou? Não vou dizer que o teu corpo aquece o meu como nenhum outro."
Debaixo da árvore, Mila deitada de costas.
A mãe, da varanda, acenava, e ele ao fundo da rua, ambos chamando por ela.
"Ouve com as tuas mãos, se quiseres."
Até os gritos das gaivotas, distorcidos pelo vento pareciam querer chamá-la, Mila, Mila!
O frigorífico...! Esse enorme monstro de metal com o leite lá dentro, o leite que sobe e desce por escadas dolorosas, até à porta que dá para o largo, que se mantém igual. O chão empedrado, a árvore, o banco, e as pessoas animadas a passear.
Olha! Aqueles ali, vês? Deram um abraço enquanto fazem o jantar! Mila, porque não falas?
"Por acaso ia agora dizer-te que me fazes arder em febre? Ou por acaso não sentes que somos donos do mundo, aqui em cima! Que temos tudo para nós! Alcança o que conseguires, vê o que os teus olhos te deixarem ver, mas por favor, concentra a tua atenção nesta água em gota. É um som único! Repara!
Porque não falas, Mila?
A mãe também perguntava. Tu nunca falas, Mila! Queixava-se do mesmo, a mãe.
Um saquinho de compras e é um martírio. É chegar aqui arfando devagar.
Agora o frigorífico tão grande.
Fala comigo, Mila! Não fiques a ouvir em silêncio o ruído do meu velho motor a trabalhar.