quinta-feira, 21 de março de 2024

Primavera

Julieta gostava de observar. 
A culpa era da mãe, que desde sempre a mandava estender ou recolher a roupa do estendal.
Quando era muito pequena,  estava tudo tão alto que ela tinha dificuldade em lá chegar,
nem por sombras o seu corpo de criança, de membros curtos, alcançava aquela corda colocada entre duas árvores.
Arranjava estratagemas, velhas caixas e caixotes uns sobre os outros, instáveis.
Subia por duas, ou três vezes até a tarefa terminar.
Um dia, o vento tornou-se tão forte que Julieta perdeu a estabilidade. Agarrou-se à corda, sentia-se tão leve como aquela fronha de chita, ou o seu lençol, que aos seus olhos pareciam balões de festa, os pés minúsculos descolaram-se da pequena superfície redonda do caixote de rede esburacada que a sustinha, a saia inflou, do cabelo nem se fala, mal preso por uma guita sem cor, esse cabelo que se transformou em serpentes voadoras silvando sobre a sua cara de veludo, e ela ficou a balouçar, agarrada pelas mãos ao estendal, como se estivesse também presa por molas a secar.
As rajadas eram tão intensas que a torre de coisas lixo onde se equilibrava tombou e ela ficou sem modo de descer.
Ao fundo, a grande cisterna feita de pedras frias acumulava a água escura, Julieta tinha lá passado ao largo, com um balde de roupa quase maior que ela, tudo era maior que ela, tudo.
Subia não era por causa da roupa, era para ver mais de perto as flores das árvores a largarem as suas pétalas Branca de Neve, e também porque se ouviam melhor os pássaros, alguns entoavam #canções, trinavam versos escondidos atrás dos rebentos das folhas jovens.
 Julieta estava quase a cair,  porque as mãos lhe escorregavam, mas o vento parou de repente.
Julieta gostava de observar, estivesse onde estivesse.
Um tronco de  laranjeira estava a poucos centímetros, um tronco apenas, um tronco salvador. 
Seis andorinhas acabadas de chegar.
A culpa era da mãe,  que sempre a mandava estender, ou recolher a roupa do estendal.
Ela nem dera conta de ter sido socorrida pelas aves, mas, a verdade é que elas prenderam os bicos nos ombros do seu casaco e foi-lhe, então, muito fácil alcançar o ramo inalcançável da árvore.

segunda-feira, 4 de março de 2024

Jade

Jade limitava-se a olhar as flores 
persistentes 
crescendo das ranhuras do alcatrão 
à beira da estrada. 

Já três homens de colete
refletor se abeiravam do tronco
da árvore,
onde encostaram uma escada.

Um deles subiu, na vertical, 
e cortou vários ramos
daquela copa velha,
só para a tornar menos densa,
para que, 
quando açoitada pelo vento,
não tombasse e caísse no chão 
perdendo a sua majestade.

Os ninhos foram respeitados.

E Jade, 
que antes se limitava a olhar as flores
persistentes
crescendo das ranhuras do alcatrão 
à beira da estrada,
passou a estar atenta, também, 
às conversas das aves.