sexta-feira, 23 de abril de 2021

bailarinas, versão 2

Envergando um vestido rosa com bolinhas brancas, parecia a versão acomodada de uma barbie bailarina.
Transportava  música trágica  nos fones que lhe ia entrando pelos ouvidos, enquanto patinava pelas ruas anulando voluntariamente os movimentos ondulantes da cidade.
A sua cabeleira despropositada por vezes raspava o chão, serpenteando, solta, bastava a simples deslocação  do ar provocada, às vezes, pelo  movimento roncador  de um autocarro.
Nas vielas onde não  cabem viaturas tão grandes, era a brisa que se imiscuía nelas, entrava nos recantos onde ninguém cabe, e até nesses lugares quase inacessíveis o seu cabelo vogava com a mesmíssima leveza habitual. Prendia-se nos estendais.
Mais à frente, enrolava-se nas velhas grades dos portões dos palácios de ferro, ou apertava, sob a forma de abraço esquivo, ao longo da avenida descendente, os troncos alinhados das suas árvores. Duas madeixas indomáveis acabaram por se prender num velho cartaz de cartão grosso, atrás de um banco de jardim, com um #anúncio ilegível carcomido pelo tempo.
Atravessava as estações do ano sentando-se  nos canteiros desde que estes mantivessem as flores.
Quando chovia muito, havia  sempre um toldo cor de laranja, onde se abrigasse, com o vestido ensopado a escorrer, vagaroso, para os seus pés.
Ao dançar sobre a passadeira, e após uma eternidade à espera que o sinal tornasse a verde, enrolou, inadvertidamente, os longos cabelos, primeiro,  na copa de uma árvore, e logo a seguir num alto candeeiro mesmo ao lado, sem imaginar que alguém lá se escondia, informe, aproveitando as sombras esguias, o quadriculado dos passeios,ou o recorte assimétrico dos plátanos.
Olhou bem para o alto e viu os morcegos agitaram as asas secas e partirem, de imediato, em busca de um lugar mais sombrio.
Porque o perturbara, informe e esguio, tímido  como as paredes nuas das torres de um castelo, tão ereto como elas, e igualmente guardião dos patos bravos e das cegonhas brancas, as aves que mais ascendem sobre os telhados altos das cidades.
Sentou-se no canteiro das margaridas, com a saia em roda de si mesma e os joelhos fletidos à altura do nariz. Havia por ali uma presença reconfortante que a iluminou.
Uma fada que por ali andava concebeu o trabalho delicado e extraordinário, de cortar tudo com tesouras douradas, quando esse era o caso, o de cortar arestas ou pontas soltas, que, de alguma forma, impedissem a felicidade.
Ela, asas despidas de penas, que se houveram soltado e de imediato juntado aos remoínhos que se formavam entre ruelas circulando em espiral por todo o lado, com as pernas em meias de seda, muito direitas e fusiformes, rodopiava com o cabelo azul em liberdade, que acabou por se enrolar nos poemas que ele, transformado agora em linhas de tinta, escrevia no ar.
As gaivotas iam trazendo palavras que depositavam por ali, sob a forma de guinchos imperscrutáveis.
Por breves momentos, ambos viram um futuro de begónias à altura da barriga, a serem envasadas e desenvasadas conforme a necessidade, e grandes fatias de bolo de chocolate, ele imaginou-se a descansar nos raios de luz que atravessavam as salas, oblíquos, desde as janelas até às paredes do outro lado.
Mas as frases gravadas no ar são efémeras e jamais retornam às mãos de quem as escreveu, ainda que seja uma história de amor.
Eles não  sabiam que nunca tinham existido, nem existiriam, a não  ser na turvação das cores. 



 





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