quinta-feira, 26 de março de 2020

A Boneca Diabólica

Para uma boneca, não é fácil ter a perfeita consciência de que se é velho e feio.
Nos meus tempos de glória, é claro que era das mais bonitas e sofisticadas, com os meus braços e as minhas pernas articuladas num sistema de arames e parafusos, sendo que estes últimos são bem visíveis nas minhas ancas, e a minha voz, quando tinha voz, há muitos anos que já não pronuncio um único choro, que me saía da barriga através de uns enormes furos. tudo novidades para a época mas que agora, como tudo o que provém de mim, se revelam antiquadas e imprestáveis.
Espanto-me com a capacidade que tem a minha pele plástica de adquirir as rugas inerentes aos meus oitenta ou noventa anos, nem eu sei bem a idade que tenho.
Faz para aí meio século, levaram-me ao hospital das bonecas, em Lisboa, e de lá vim com uma cabeleira nova, um vestidinho com riscas verdes e brancas, com a engrenagem do meu corpo mais ou menos arranjada, enfim, deram-me um melhor aspeto, mas já foi ha tanto tempo, que voltei a envelhecer, a sujar-me, a enferrujar. Foi nessa época que ela me tirou o vestido para lavar e, como era de prever, uma coisa tão pequenina, perdeu-a no meio daquelas imensas roupas de uma grande família, que tinha no cesto da roupa. e desde aí que estou nua e, como é sabido, a nudez das bonecas incomoda tanto como a nudez das árvores ou mesmo a das pessoas.
Quando as miúdas, estas miúdas que agora são umas mulheres, porque na verdade já estive nas mãos de outras muito antigas,como eu, crianças em tempos difíceis que acabamos inevitavelmente por superar, de guerras, de pés gelados junto às braseiras, quase colados às brasas, ou de lenços na cabeça por causa do sol intenso que tinham que se suportar no caminho da aldeia para a igreja, mas dizia, quando estas meninas era pequenas, divertiam-se comigo, não pelas melhores razões. Chamavam-me a "diabólica" (ainda hoje o fazem), por considerarem o meu aspeto sinistro, com as meus olhos encovados e vivos, as minhas sobrancelhas enferrujadas, o meu cabelo desgrenhado, digno de um filme de terror.
O resultado dessa quase aversão que me criaram, foi o de passar a viver na última prateleira de um armário, entre dois cobertores.
Mas não me importo. Não os posso ver mas ouço-os, ouço-lhes os movimentos, as alegrias, as tristezas, ouço-a a ela, a que me quer bem, de outro modo ter-me-ia já metido num saco preto, imagino-a com as dúvidas habituais, "é reciclável ou não?", ouço-a a sair para trabalhar nestes momentos conturbados e perigosos, quando todos se protegem ficando em casa, e não me importo sobretudo porque tenho sido preservada, posso contar uma história, muitas histórias de vida, porque me lembro e faço lembrar.

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