sexta-feira, 20 de março de 2020

Inocência

Eram precisamente dezoito horas quando se lembrou.
Sabia as horas exatas porque ouviu o sino da igreja e contou as badaladas, como fazia sempre.
O sino confortava-o, como um testemunho da presença humana na atmosfera, maior testemunho do que aqueles que cirandavam, de pés rentes na terra pelas ruas da cidade.
Também o ajudava a medir o tempo, a localizar-se, como se a medida do tempo fosse de algum modo importante.
Como, como, tudo era como se qualquer coisa, como se o que via não fosse exato e preciso, como, eram, de facto, as badaladas do sino.
O sino voltou a tocar. Uma vez. E uma vez indicava as meias horas que o ajudavam a situar-se. Entre as oito, entre as nove, certo como as batidas de um coração.
Eram precisamente dezoito horas quando se lembrou. Como se o sino fosse capaz de lhe lembrar a #inocência das crianças sem maldade, como se ele ainda fosse pequeno e o sino badalasse pela aldeia da sua avó.
Como se ainda lá estivesse observando as rãs no charco, de cócoras e joelhos esfolados, comendo uma fatia de pão com doce de tomate.

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